Opinião

Imposto de Renda na cessão de crédito

Autor

  • Vitor Flores

    é advogado na Advocacia Tavares Novis mestre em Direito Tributário pela PUC-SP LLM em Tributação Internacional pela Universidade de Leiden (Holanda) e especialista em IFRS certificado pelo ICAEW (Reino Unido).

24 de junho de 2022, 16h12

Os tributos incidentes numa cessão de crédito variam de 0% até 27,5% e, em nossa opinião, não se aplica a tributação de 15% até 43,80% como entende a Receita Federal.

Para a Autoridade Fiscal, na cessão de crédito, a pessoa física cedente deve pagar imposto de renda (IRPF) sobre o correspondente ganho de capital. O adquirente (cessionário) receberá o valor do crédito após o desconto do imposto pela fonte pagadora (IR Fonte), caso o rendimento seja tributável.

Na prática, entre 0% e 27,5% seriam descontados como IR Fonte, e os remanescentes 72,50%, quando cedidos, ensejariam tributação sobre o ganho de capital, variável entre 15% até 22,5%. (16,30% aproximadamente = 72,50% x 22,5%). Num cenário em que o rendimento é isento do IR Fonte, ainda assim haveria pelo menos 15% sobre o ganho. Como resultado, a tributação variaria entre 15% (0% + 15%) e 43,80% (R$ 27,50 + R$ 16,30). Após a cessão, é possível que o credor fique com apenas R$ 56,20 no bolso. Se ceder o título com deságio, o saldo será menor.

Essa forma de tributação está explicada no Parecer Normativo 26 de 2000, repercutida nas Soluções de Consulta (SC) mais recentes sobre o assunto (SC Cosit 674 de 2017 e SC Disit 6.007 de 2019). Ela se apoia em duas premissas. A primeira é a de que o custo de aquisição é igual a zero, então o ganho de capital sempre se igualará à receita. A segunda é a de que o crédito não muda sua natureza após a cessão, então a hipótese de incidência do IR Fonte irá acompanhá-lo até o dia do pagamento.

Estamos de acordo com a preservação da natureza jurídica do crédito, mas discordamos da inexistência de custo de aquisição.

Nossa divergência reside na interpretação da Lei 7.713, artigo 16, que dispõe sobre a tributação do ganho de capital. Ela prescreve que, na apuração do ganho, o "custo de aquisição" será "o preço ou valor pago". Na ausência desses, devem ser usados outros critérios (artigo 16, incisos I a V), dentre esses, o valor corrente do bem adquirido na data da aquisição. Para o caso de nenhuma das hipóteses ser aplicável, o custo de aquisição deve ser igual a zero (artigo 16, §4º).

Na visão da receita, "o valor de alienação será o valor recebido do cessionário, e o custo de aquisição será igual a zero, já que não há valor pago pelo precatório, nem há a possibilidade de aplicação das modalidades de atribuição de custo de aquisição de que tratam os incisos I a V do artigo 16 da Lei nº 7.713" (Parecer Normativo 26 de 2000, item 16.1, apud SC 19 de 2015). Não está dito, mas inferimos que os mesmos fundamentos seriam aplicáveis na cessão de outros títulos, diferentes dos precatórios.

É intuitivo pensar que o credor não pagou nada pelo crédito, mas essa noção precisa ser mais bem desenvolvida.

Segundo o Código Civil, "nos contratos bilaterais nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro" (Código Civil, artigo 476). Isso quer dizer que ninguém pode exigir a contraprestação do outro, antes de entregar a sua prestação. Dito de outra forma, ninguém pode exigir o pagamento do outro, antes de entregar o seu pagamento. Numa relação jurídica bilateral, as duas prestações são a causa uma da outra, e são a forma de pagamento uma da outra. Por isso, entendemos que o custo de aquisição de um crédito será o "preço ou valor" entregue em contrapartida.

Por exemplo, numa desapropriação, se o bem perdido custou $30 para seu dono, e o crédito a receber é de R$ 100, podemos afirmar que o dono perdeu R$ 30 para receber em contrapartida R$ 100. Isso significa que o custo de aquisição de R$ 30 se desloca do ativo perdido para o crédito recebido de R$ 100. Se o crédito fosse realizado com o pontual pagamento, haveria ganho de capital de R$ 70 (R$ 100  R$ 30). Mas se ele é cedido por R$ 100, também há ganho de capital, pois nesse caso a cessão é forma de percepção da renda. A propósito, o Código Tributário Nacional  CTN, artigo 43, que o imposto incide independentemente da "forma de percepção" da renda. Pode parecer curioso, mas a cessão comporta dois eventos: a realização da operação anterior, e uma nova transação (a cessão), cujo objetivo é deslocar a titularidade do crédito. A realização do crédito ocorre por R$ 100, e a troca de titularidade também ocorre por R$ 100. Para o cedente, a causa da cessão é a realização da renda, e para o cessionário a causa é a aquisição do crédito. Se a desapropriação for isenta de imposto, a realização do crédito por R$ 100 não resultará em IRPF devido. E o deslocamento de titularidade por R$ 100 poderia ensejar ganho de capital, mas, como os dois eventos (realização e cessão) têm igual valor, não há nem ganho nem perda de capital.

Se um crédito decorrente de emprego vale R$ 100 e está sujeito a IRPF de 25%, o credor somente poderá ceder R$ 75. Para tornar a cessão atrativa, poderá oferecer um deságio, o que reduzirá sua renda e a alíquota do IRPF. Um deságio de 20% resultaria na realização de uma renda de R$ 80. Se a alíquota aplicável a tal renda for de 22,5%, o IRPF será de R$ 18. A cessão pode gerar ganho de capital, mas nesse exemplo irá gerar uma perda, pois o custo de aquisição crédito vale R$ 100, mas seria cedido com deságio por R$ 80. No ato da cessão, a renda do trabalho seria realizada por R$ 80 e deveria ser tributado à alíquota de 22,5%. Em nossa opinião, o trabalhador poderá se apropriar de crédito de IR Fonte, ainda que a fonte pagadora somente esteja obrigada a pagá-lo quando efetivamente liquidar o crédito, mas isso é um tema para outro artigo.

Por isso, entendemos que se equivoca a RFB ao julgar que o custo de aquisição do crédito cedido nesses casos seria igual a zero. Afirmar que o custo de aquisição do crédito é igual a zero, implica afirmar que o serviço e o imóvel não têm valor, o que não é verdade. Por esse motivo, nós interpretamos a Lei nº 7.713, artigo 16, no sentido de que "o preço ou valor pago" para aquisição do crédito será aquele atribuível à contraprestação entregue ao devedor. Essa interpretação nos parece coerente com o CTN, artigo 43.

Um caso como esses foi levado a julgamento pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A decisão foi tomada em 2017 e está manifestada no Acórdão 9202­005.322.

Uma pessoa sofrera desapropriação de imóvel e recebeu um precatório representativo do direito à indenização. Ante a demora do recebimento, decidiu ceder seu crédito. A Receita então cobrou o imposto sobre o ganho de capital. O relator votou em favor do contribuinte por entender que "não temos ­ no caso de desapropriação ­ como afastar que o precatório equivale ao imóvel e portanto, podemos afirmar que o contribuinte 'pagou', com a perda da propriedade, para receber esse direito". Após as discussões, o julgamento terminou em empate de 4 a 4, então a questão foi automaticamente resolvida em favor da Fazenda. Nos termos do Voto Vencedor, "nas operações em tela, não houve pagamento de qualquer preço na aquisição dos títulos negociados, de sorte que, conforme a legislação acima, o custo de aquisição a ser considerado deve ser igual a zero, não merecendo a autuação qualquer reparo".

Se esse caso tivesse sido julgado após 2020, já estaria em vigor o artigo 19-E da Lei 10.522, segundo o qual os empates devem ser resolvidos em favor dos contribuintes. Por isso, nós acreditamos que a jurisprudência formada na CSRF tende a se reverter, e se consolidar em favor dos contribuintes.

Autores

  • é advogado na Advocacia Tavares Novis, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, LLM em Tributação Internacional pela Universidade de Leiden (Holanda) e especialista em IFRS certificado pelo ICAEW (Reino Unido).

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