Opinião

Inconstitucionalidades da Cide Royalties e o julgamento do STF

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24 de junho de 2022, 13h03

A Constituição, em seu artigo 149, institui a contribuição como uma categoria de tributos vinculados, o que significa que a hipótese de incidência consiste numa atuação estatal indireta e mediatamente referida ao obrigado, sendo utilizada como instrumento de atuação da União na comunidade, gerando assim um mutualismo: a sociedade paga a contribuição e em contraprestação, o Estado cumpre com a finalidade com que esta foi destinada.

Ainda de acordo com o artigo supracitado, as contribuições apresentam-se nas seguintes espécies: as sociais, as corporativas instituídas no interesse de categorias profissionais ou econômicas e as de intervenção no domínio econômico, sendo as últimas o enfoque do presente trabalho.

Como o próprio nome pressupõe, as contribuições de intervenção no domínio econômico (Cide), são destinadas ao custeio da atividade interventiva da União no domínio econômico e estão asseguradas pelos artigos 170 a 192 da Constituição. Vale ressaltar que a instituição de Cide apenas é possível nas estritas hipóteses em que o Estado pode intervir na ordem econômica, sendo eles a) quando houver relevante interesse público ou b) quando o agente normativo e regulador da atividade econômica exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, e disciplinando os preços, o consumo, a poupança e o investimento.

Adentrando mais afundo no tema, passaremos a abordar a utilização do termo royalties no contexto da contribuição de intervenção no domínio econômico.

A Cide Royalties foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 10.168/2000, com as alterações promovidas pela Lei 10.332/01, objetivando incentivar o desenvolvimento tecnológico brasileiro, financiando o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para Apoio à Inovação. O referido programa possui como objetivo estimular o desenvolvimento tecnológico brasileiro, mediante programas de pesquisa científica e tecnológica cooperativa entre universidades, centros de pesquisa e o setor produtivo.

A Lei supracitada estabeleceu em seu artigo 1º que o tributo é calculado mediante a aplicação da alíquota de 10% sobre os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, não havendo qualquer tipo de imunidade tributária para entidade ou membro.

Como fato gerador, é possível identificar que o aspecto material das Cide-Royalties é deter a) licença de uso de conhecimentos tecnológicos; b) adquirir conhecimentos tecnológicos; c) ser signatária de contratos que impliquem na transferência de tecnologia; e d) ser signatária de contratos de serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes. No que tange ao momento da ocorrência do fato gerador, este se dá quando ocorre a remessa de valores ao exterior, no que se refere ao aspecto temporal, e quanto ao aspecto espacial, acontece em todo território nacional.

Já os sujeitos dessa relação jurídico-tributária são de fácil identificação, sendo o sujeito ativo a União Federal e o passivo qualquer pessoa jurídica que seja detentora de licença de uso, adquirente de conhecimentos tecnológicos, signatária de contratos que impliquem na transferência de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior, as aderidas de contratos que tenham por objeto serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes, e ainda aquela que tenha como pelas pessoas jurídicas que pagarem, creditarem, entregarem, empregarem ou remeterem royalties, a qualquer título, a beneficiários residentes ou domiciliados no exterior, conforme dispõe o artigo 2º, §2º da Lei 10.168/00.

Como vimos, as contribuições de intervenção no domínio econômico devem ter destinação especial prescrita para o produto de sua arrecadação, ou seja, necessita ter uma finalidade especifica, no caso do Cide-Royalties deveria ser o financiamento do Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para Apoio à Inovação.

Ocorre que referida Contribuição vem sendo cobrada sem que haja qualquer atividade da União de intervenção no domínio econômico. Atualmente, os recursos obtidos são destinados à um fundo que poderá ser usado para fins indeterminados, o que significa que o contribuinte é cobrado pelo Cide-Royalties unicamente porque praticou um dos fatos geradores, e não porque ocorreu uma contraprestação do estado dirigida a um setor específico.

Portanto, a maneira que os benefícios são proporcionados à sociedade, de forma indistinta, sem qualquer correlação entre a fonte de custeio e o produto final da arrecadação, a Cide-Royalties demonstra evidente desvio de finalidade, contrariando o artigo 149 da Constituição Federal.

Além do desvio de finalidade caracterizado pela finalidade genérica, a Lei nº 10.168/00, em seu artigo 4º, institui que os valores arrecadados por esse tributo sejam destinados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- FNDCT, o qual foi criado na vigência da Constituição Federal de 1967. No entanto, o FNDCT não existe mais, uma vez que

não foi ratificado segundo exigência da Constituição da República de 1988, e, segundo o artigo 36 da ADCT [1], a ratificação, pelo Congresso Nacional no prazo de dois anos, é necessária para os fundos existentes anteriormente à Constituição de 1988. Assim, superado o prazo constitucionalmente prescrito sem que houvesse a edição de qualquer ato normativo validando o fundo na nova ordem jurídica, ocorreu a sua extinção.

Analisando o tema por outro viés, também é possível compreender que o Cide-Royalties compõe a ordem social, e não a ordem econômica como deveria ocorrer, o que acaba por invalidar a sua cobrança. Conforme é possível extrair do artigo 174 [2], 214, V [3],  e 218 [4] da Constituição Federal, as atividades a que o referido tributo se destinam possuem natureza educacional, consequentemente, integrando a ordem social e não econômica. Tanto é assim que os dispositivos que a regulam estão localizados no Título VIII da Constituição Federal, destinado à ordem social, e não à ordem econômica.

Diante de tantos pontos, evidente as inconstitucionalidades relacionadas a cobrança desta Contribuição. Assim, considerando que o recolhimento da Cide é no patamar de 10% sobre o valor das remessas, para as empresas que operaram com o mercado internacional frequentemente, os valores podem ser altíssimos, prejudicando e encarecendo as operações em questão.

Por fim, vale ressaltar que, considerando as recentes decisões ocorridas no âmbito tributário, caso a Contribuição seja declarada inconstitucional, é quase certo que o Supremo aplique a modulação de efeitos da decisão, para que apenas os contribuintes que ingressaram com a ação judicial possam reaver os valores pagos indevidamente nos últimos cinco anos. Diante deste cenário, ainda que o Supremo tenha retirado o assunto da pauta de julgamento, é importante o ajuizamento de ação judicial para questionamento desta  Contribuição.


[1] Artigo 36. Os fundos existentes na data da promulgação da Constituição, excetuados os resultantes de isenções fiscais que passem a integrar o patrimônio privado e os que interessem à defesa nacional, extinguir-se-ão, se não forem ratificados pelo Congresso Nacional no prazo de dois anos.

[2] Artigo 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. 

[3] Artigo 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando a articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do Poder Público que conduzam à:
(…)
V – promoção humanística, científica e tecnológica do País.

[4] Artigo 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.

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