Opinião

O caso da Lei da Liberdade da Imprensa (1820-1823) em Portugal (parte 3)

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24 de junho de 2022, 7h09

Continua parte 2.

Vejamos, agora, como funcionavam os jurados e os procedimentos seguidos durante o processo de julgamento.

Honoré Daumier/Reprodução
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Honoré Daumier/Reprodução

Em cada conselho de jurados eram formados dois tribunais, um, de juízes de facto, para decidir sobre a verdade dos fatos, composto por nove vogais. E um outro tribunal, de sentença, composto por 12 vogais, sempre que o primeiro tribunal desse por provados os fatos (ver Quadro III). Cada conselho era assistido por um juiz de direito que aplicava a pena de acordo com a tabela da sentença dos jurados. O promotor tinha por função pronunciar o crime ou aceitar a denúncia de particulares. Os 21 vogais dos tribunais eram sorteados de uma pauta de 48 jurados e de uma lista suplente de mais 12 jurados.

Assim, os recursos humanos afetos aos conselhos de jurados correspondiam a 300 eleitores, 1.080 pautados, 378 vogais dos tribunais de conselhos de jurados, 18 juízes de direito e 36 promotores, num total de 1.812 envolvidos em cada apuramento eleitoral.

Quadro III
Apuramento e composição de cada conselho de jurados

O processo judicial e administrativo iniciava-se com a acusação formulada ao juiz de direito, a cargo do promotor ou de qualquer cidadão [14], seguindo-se uma reunião na câmara entre o juiz letrado, o escrivão, o promotor e o denunciante, se houvesse, destinada a formalizar o auto de delito. Depois, na presença de todos, o juiz de direito lançava numa urna os nomes dos 48 pautados e pedia a um menino para tirar nove nomes para o primeiro júri de jurados que, desde logo, eram convocados para receberem o exemplar do impresso e ouvir o resumo do processo feito pelo juiz letrado. De seguida, os jurados retiravam-se para uma outra casa, presididos pelo primeiro vogal, para declararem se o impresso continha ou não motivo para ser considerado crime de abuso de liberdade de imprensa. Se a deliberação fosse negativa, o juiz dava por sem efeito a denúncia, e ordenava, no caso do putativo delito ter sido contra o Estado, a soltura do réu e o levantamento do sequestro. Se, porém, fosse positiva, o juiz de direito tinha que formar, usando o mesmo método, um segundo júri de jurados com doze vogais diferentes do primeiro. Este júri pronunciava a sentença e definia o grau do crime, não havendo apelo nem agravo da decisão, a não ser o recurso por erros processuais.

Como se pode depreender, a formação dos júris não era um procedimento fácil e a convocatória dos sorteados podia atrasar muito a reunião dos vogais e até mesmo obrigar a novos sorteios devido a ausências justificadas, obrigatoriamente apreciadas pelos pares para serem aceites e, naturalmente, poderem criar problemas nas substituições.

No plano penal, a Lei da Liberdade da Imprensa previa quatro tipos de crimes: contra a religião católica, contra o Estado, contra os "bons costumes" e "contra os particulares". Os primeiros englobavam a negação de dogmas ou a defesa de dogmas novos, a blasfêmia ou a zombaria de Deus, dos Santos e Cultos. Os segundos, a prática de excitação dos povos à rebelião, a desobediência às leis e às autoridades, o ataque ao governo e difamações ou injúrias ao Congresso. Os terceiros, incluíam escritos contra a moral cristã ou estampas obscenas. E os crimes contra os particulares, abrangiam as imputações de fatos sujeitos a procedimento judicial, o ódio, o desprezo público, o insulto e a ignomínia.

Cada crime era classificado em quatro graus de gravidade.

Os Quadros IV e V dão conta destes delitos e penas.

Quadro IV
Delitos contra a religião católica e o Estado

Quadro V
Delitos contra os bons costumes e os particulares

Como se pode constatar, os crimes políticos são os que manifestam maior severidade, seguindo-se os crimes religiosos, embora numa dimensão mais branda. Os crimes contra os costumes e contra os particulares não admitem pena de prisão e as reparações pecuniárias são de pouca monta pelo que podemos dizer que a Lei da Liberdade da Imprensa estava, sobretudo, focada em controlar a situação política e daí ter sido evitado o recurso aos tribunais de justiça pela desconfiança que os liberais alimentavam contra o sistema judicial do Antigo Regime.

Um tribunal político para controlar a imprensa
No seguimento do que foi dito, a Lei da Liberdade da Imprensa criou, também, um Tribunal Especial de Proteção da Liberdade da Imprensa cujos membros eram nomeados pelas Cortes no início de cada legislatura. No plano da justiça, o Tribunal Especial de Proteção da Liberdade da Imprensa podia tomar conhecimento, por recurso, das sentenças proferidas pelos jurados no caso de nulidade processual ou quando o juiz de direito não aplicasse a pena correspondente ao crime pronunciado. O mais relevante, no campo legislativo, diz respeito à competência do tribunal para submeter às Cortes as dúvidas de interpretação jurídica e propor soluções. No âmbito executivo e administrativo, o tribunal devia apresentar, no início de cada legislatura, um relatório de balanço sobre o estado do uso e abuso da liberdade de imprensa, elencando problemas e resoluções.

Estamos perante um organismo que, embora tivesse o nome de tribunal, não foi criado para exercer nenhuma jurisdição específica, nem os seus vogais eram, obrigatoriamente, magistrados. A principal missão do tribunal residia na competência para monitorizar a aplicação e exequibilidade da Lei da Liberdade da Imprensa e relatar ao poder político, de dois em dois anos, o estado da imprensa (processos julgados, cartografia das edições, produção editorial, identificação de autores, impressores, vendedores, distribuidores, redes de tipografias, livreiros, atividades de divulgação e importação de livros estrangeiros).

O trabalho de Isabel Graes (2017) esclarece-nos sobre a organização e funcionamento deste Tribunal Especial de Proteção da Liberdade da Imprensa. O primeiro tribunal, constituído em 19 de dezembro de 1821, mas nomeado em 8 de janeiro de 1822, seis meses depois da aprovação da Lei da Liberdade da Imprensa, teve como local para reuniões uma sala no tribunal da Relação da Casa da Suplicação que lhe foi atribuída em 20 de fevereiro, embora o regulamento interno de funcionamento, aprovado pelas Cortes (21 de junho de 1822), apontava para um edifício próprio [15]. Foi formado por José Portelli (presidente), um oratoriano que tinha sido Reitor do Colégio dos Nobres, João Bernardino Teixeira, José Isidoro Gomes da Silva, Gregório José de Seixas e João Pedro Ribeiro, o único que era desembargador e tinha sido censor, mas, por ser deputado, foi dispensado [16]. Na segunda legislatura, que começou em 13 de janeiro de 1823, compuseram o tribunal (decreto de 20 de dezembro de 1822) José Vicente Pimentel Maldonado (presidente) e José António Guerreiro, ambos bacharéis e deputados constituintes, Francisco de Assis Ferreira de Moura, cónego da Sé de Lisboa, José Portelli e D. André de Morais

Sarmento, clérigo e diretor do Seminário do Funchal.

Ao longo da primeira legislatura o tribunal reuniu 44 vezes, não cumprindo, assim, a regularidade semanal das reuniões regimentais e, durante a segunda legislatura, em 46 convocatórias, contamos 20 sessões em que nada foi decidido sobre a imprensa, apenas se leram ofícios e se acertaram orçamentos e, noutras oito sessões, nem sequer houve reunião por falta de quórum. Restaram, portanto, 11 sessões de trabalho específico o que evidencia, sem dúvida, a marginalidade do tribunal que, além do mais, nunca tomou conhecimento das denúncias apresentadas nos conselhos de jurados (ver, exemplo, em DG, nº 59, de 10 de março de 1823).

O expediente do tribunal resume-se, em cerca de dois anos de atividade (a última sessão do tribunal ocorreu em 14 de março de 1824, mas, desde 27 de novembro de 1823, que já não funcionava), a sete recursos: em três reformada a sentença, em dois foi confirmada e em outros dois rejeitada, um por não caber no âmbito do tribunal e outro por se referir a uma sentença, por injúria, da Casa da Suplicação que o suplicante admitia ser matéria do Tribunal Especial de Proteção da Liberdade da Imprensa. Não se conhece nenhum relatório sobre o estado da imprensa, nem sobre o funcionamento dos conselhos de jurados, processos e expediente.

 


[14] Quando o crime indiciava delito contra o Estado, o juiz letrado obrigava-se a tirar três testemunhos, antes de proceder à prisão preventiva e sequestrar os exemplares publicados.

[15] Vide Regulamento do Tribunal Especial de Proteção da Liberdade da Imprensa (DG, n.º 159, de 9 de julho de 1822). Estava previsto um edifício no qual "haja Sala para as Sessões, quartos para as secretarias e Cartório, e casa para Livro de Porta. Cada huma destas Repartições terá os móveis necessários". As sessões seriam ordinárias e extraordinárias, sendo as primeiras com periodicidade semanal (quintas-feiras). O regulamento admitia relatores e votações à maneira dos tribunais do Antigo Regime, incluindo consultas às Cortes. Os ofícios do tribunal incluíam um secretário, responsável pela Secretaria, oficiais, um escriturário e um porteiro encarregue dos registos de entradas e saídas do expediente e de pessoas.

[16] Nomeação em 17 de dezembro de 1821 (DG, nº 12, de 14 de janeiro de 1822).

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