Opinião

O caso da Lei da Liberdade da Imprensa (1820-1823) em Portugal (parte 2)

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23 de junho de 2022, 7h04

Continua parte 1.

A consagração dos tribunais populares de jurados
O maior alcance político e jurídico da aprovação da Lei da Liberdade da Imprensa, em Portugal, foi a sua influência no modelo judicial consagrado na Constituição de 1822 e, posteriormente, em toda a organização judicial do século 19. Essa influência traduziu-se na formação de juízes populares, chamados juízes de facto ou jurados, aqueles que "juram para poder julgar", que viriam a assumir várias modalidades ao longo do constitucionalismo monárquico (Hespanha 2012; 2009; 2004; Subtil 2021). Foi no debate sobre a Lei da Liberdade da Imprensa, antes mesmo da apreciação do projeto constitucional, que o Soberano Congresso acabaria por consagrar o jury. Se o debate sobre a liberdade ficou moldado pelo debate das Bases da Constituição, o do sistema judicial viria a ser capturado pela Lei da Liberdade da Imprensa. O projeto da Constituição (Moreira 2018) [7], apresentado às Cortes na mesma altura, defendia uma posição antagônica, a de que os juízes letrados deviam ser o modelo a seguir, pelo que a consagração constitucional dos jurados alteraria, por completo, o projeto constitucional, a tal ponto que Manuel Fernandes Tomás, depois desta aprovação, concluiria que já não sabia nada sobre o futuro da justiça uma vez que se estava a "cortar as unhas tão rentes" à magistratura letrada (5 de outubro de 1822, DC, tomo VII, 695). O projeto da Lei da Liberdade da Imprensa entrou em discussão no dia 2 de maio de 1820 (DR, nº 104, de 3 de maio), com a presença de quase todos os deputados, 91 em 100, e a importância da lei ficou, desde logo, marcada pelo tom político da Comissão da Redação ao afirmar que a liberdade de imprensa "se funda o apoio mais seguro do Sistema Constitucional (…) que ao homem se restitui um dos seus mais preciosos Direitos, e que a Religião mesma consegue um meio para ser depurada da superstição, e fanatismo".

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Se este tinha sido o sentido geral das Bases da Constituição, o certo é que a grande maioria dos deputados admitiu, desde o início, a necessidade de criminalizar os abusos, isto é, consagrava-se um crime novo, de natureza política, a que acrescia a limitação da ausência de um código criminal e processual e a hostilidade à magistratura letrada do Antigo Regime. Estas três características proporcionariam a criação inusitada de magistraturas populares do tipo de jurados [8].

A discussão englobou várias questões, a começar pela pronúncia da culpa, se caberia a um tribunal ou a uma junta de jurados e, depois, se a sentença pertenceria a jurados especiais ou devia ser processada e julgada pelos juízes de direito. E, no caso de ambos intervirem no processo, saber qual seria o papel dos juízes de facto e dos juízes letrados. A formação de culpa por parte dos bispos devia proceder ou preceder a censura? Seria necessário um tribunal de apelação ou de recurso para apreciar as sentenças dos jurados?

A intervenção do deputado Alexandre Sarmento acabaria por se revelar determinante ao defender, sem nenhuma hesitação, o estabelecimento dos jurados, sendo corroborado por Bento Pereira do Carmo que chegou a afirmar, de forma incomum, que as Ordenações até já os admitiam, procurando, por este modo, evitar o choque da inovação jurídica.

Esta proposta, inédita no sistema de justiça, seria apoiada por vários deputados, destacando-se José de Bastos, José Peixoto, João Castelo- Branco e o crítico entusiasta da magistratura letrada, Manuel Borges Carneiro. O deputado Serpa Machado, sendo da mesma opinião, colocaria, porém, duas questões importantes, a saber: como se fariam as eleições para os jurados e como é que os júris iriam funcionar do ponto de vista processual. No final do debate, os jurados seriam aprovados numa votação que não deixava margens para dúvidas (86 votos contra 5). No dia seguinte, 3 de maio (DR, nº 105, de 4 de maio), começou-se a definir os lugares de estabelecimento dos jurados. Enquanto o deputado Soares Franco apontava as cidades de Lisboa, Porto e Coimbra, os deputados Francisco Pessanha, Alexandre Sarmento e José Faria de Carvalho defendiam as sedes das cabeças das comarcas, e os deputados Serpa Machado, José Ferrão de Mendonça, Agostinho Falcão e João Castelo-Branco apontavam para as capitais de província. Contudo, as dificuldades técnicas para a escolha das sedes dos conselhos de jurados levaram o Congresso a pedir à Comissão de Estatística que apresentasse um plano de distribuição geográfica o que acabaria por consubstanciar a sede na cabeça de uma das comarcas que partilhassem eleitores para o apuramento dos jurados (ver Quadro I).

Mas a questão mais substantiva, a de se saber como deviam ser eleitos os jurados, quando e por quanto tempo, tinha a ver com a eleição dos eleitores, isto é, se deviam ser eleitos através de juntas de paróquia (freguesia) ou de comarca. Nesta matéria, os deputados tinham já um referente recente, a primeira experiência eleitoral, de dezembro de 1820, regulada pelas instruções de 31 de outubro e 22 de novembro de 1820 (Costa 2019) destinada a escolher os deputados às Cortes Constituintes. Mesmo assim, o Congresso pediu à Comissão de Estatísticas indicações sobre os totais dos colégios de eleitores por cada agrupamento de comarcas. O essencial do sufrágio para a escolha dos deputados constituintes assentava nas juntas eleitorais, presididas pelo juiz de fora. Nas freguesias, estas juntas eram compostas por todos os cidadãos domiciliados e residentes, maiores de 25 anos e moradores na freguesia, sendo que por cada 200 fogos seria eleito um eleitor. Estes eleitores juntavam-se, na cabeça da comarca, para elegerem os eleitores da comarca para estes, depois, elegerem os deputados (Brochado 2020: 193-231) [9]. Foi, portanto, este modelo que acabaria por ser adotado para a escolha dos jurados com adaptações condizentes à elaboração das pautas e aos sorteios para a composição dos júris.

Mas as dificuldades para recrutar juízes eleitos eram muitas, desde a enorme taxa de analfabetismo, que tolhia a formação destes contingentes e limitava as suas autonomias, até à desconformidade do espaço político por causa da imensa rede de freguesias, cerca de quatro mil, e de mais de 800 municípios, dos quais 228 tinham menos de 200 fogos e só 177 ultrapassavam os mil fogos (Manique 2020).

Não menos importante era a constituição das listas (pautas) a partir das quais se escolheriam os jurados, bem como o número dos vogais de cada júri. O acordo alcançado definiu que as listas se comporiam de 48 pautados e 12 suplentes de onde sairiam o primeiro júri, de pronúncia dos factos, que devia ter nove vogais e a decisão ser tomada por 2/3. O segundo júri, de sentença, seria formado por 12 vogais, bastando nove para haver decisão. O acompanhamento destes júris caberia ao corregedor da comarca ou, na sua ausência, ao juiz letrado mais graduado. Em Lisboa pertenceria ao corregedor do crime da Corte e, no Porto, ao juiz do crime da primeira vara. Quanto aos mandatos, ficou aprovado que os conselhos de jurados acompanhariam uma legislatura o que faria com que, no futuro, as eleições para os deputados e os jurados coincidissem (ver Quadro II).

Sobre a fórmula encontrada para as pautas, o método consistiu no registo obrigatório de matrículas que ficavam à guarda das câmaras, atualizado no mês de maio de cada ano. A matrícula pertencia a cada cidadão, com pelo menos 25 anos de idade, em plena posse dos seus direitos e de reconhecida "probidade, inteligência e boa fama" [10]. A não inscrição acarretava sanções, multas e perdas de direitos. Era, portanto, a partir deste livro de matrícula que se formavam as pautas dos jurados efetivos e suplentes e se faziam bilhetes individuais para serem sorteados os membros de cada júri de jurados. No caso de se avançar para julgamento, seria sorteado um segundo júri que se pronunciaria pela culpabilidade ou inocência do réu. Proferida a sentença, o juiz de direito determinava a pena a aplicar de acordo com a tabela de gravidade definida pelos jurados (ver Quadros IV e V).

O Quadro I dá-nos conta dos 18 conselhos de jurados, da sede dos mesmos e da junção de comarcas para comporem as juntas de eleitores, num total de 44 comarcas. Na grande maioria, 12 em 18 agrupamentos, cada conselho de jurados correspondia a duas comarcas (exceção para o Porto, uma só comarca, Alenquer e Portalegre com quatro comarcas, Guarda com 3 e Leiria com 5). Quanto aos eleitores, num total de 300, os conselhos estão repartidos em dois grandes grupos, um acima e outro abaixo da média de eleitores por conselho de jurados (16.7).

Quadro I

Sedes dos conselhos de jurados no continente [11]

 

Uma distribuição por província, com a chamada total de freguesias e população, mostra, de acordo com o Quadro II, o total de eleitores por província que apuravam as pautas de onde seriam sorteados os conselhos de jurados. O total de eleitores para apurar os pautados era praticamente igual aos que escolhiam os deputados, com duas exceções, uma para Trás-os-Montes em que são 36 eleitores para os jurados contra 27 para os deputados, e a Beira com 78 contra 87, embora ambas as províncias mantenham o mesmo total de eleitores.

Quadro II

Províncias, comarcas e conselhos de jurados no continente

Significa isto, também, que as eleições para os deputados (Almeida 2016) coincidiriam com as eleições para os conselhos de jurados, embora as primeiras se fizessem na capital de cada província e as segundas na sede de cada conselho de jurado. Nas capitais (Lisboa, Porto, Vila Real, Viseu, Évora e Faro) os eleitores realizavam, por conseguinte, as duas eleições e, nas restantes sedes (12 ao todo), votavam primeiro na sede do conselho para apurar os jurados e, depois, na capital da província para os deputados. Como a data da aprovação da Lei da Liberdade da Imprensa já não coincidia com o início de uma legislatura, as primeiras eleições para os jurados ocorreram de imediato o que acabou, também, por as diferenciar do modelo seguido para a segunda legislatura. Deste modo, os primeiros conselhos de jurados foram eleitos por sufrágio indireto, a começar nas freguesias. Os eleitores das freguesias elegeram os eleitores comarcais que, reunidos na sede de cada conselho, elegeram os jurados.

Para as segundas eleições, que acompanharam as eleições para os deputados às Cortes Ordinárias, o modelo eleitoral foi alterado pela Lei de 11 de julho de 1822 e, também, pela Lei de 27 de julho de 1822 que definiu as regras para a eleição dos juízes ordinários e os oficiais das câmaras, fundamental para dar seguimento às escolhas dos juízes populares e, evidentemente, dos conselhos de jurados [12].

De acordo com ambas as leis, podiam votar os cidadãos maiores de 25 anos (ou casados com, pelo menos, 20 anos) e serem votados os eleitores com rendas suficientes para se sustentarem, nascidos ou residentes mais de cinco anos na província onde se faziam as eleições [13]. O sufrágio era direto, secreto e censitário. Não podiam votar os "filhos de família", ou seja, os que viviam na companhia dos pais, os criados, os vadios, os membros das ordens monásticas e as mulheres (sobre Lisboa vide Antónia 2000: 47-53).

Como os Quadros II e III mostram, o conjunto de eleitores das comarcas de cada distrito é sempre inferior aos pautados o que nos pode levar a concluir, apesar de não termos dados sobre estas eleições, que a possibilidade dos eleitores se elegerem entre si era possível, mas nunca chegaria para apurar as pautas, obrigando, portanto, a eleger juízes de facto de entre os homens bons, maiores de 25 anos, residentes nas comarcas de cada conselho de jurados, "dotados de conhecida probidade, inteligência, e boa fama". Para além dos jurados eram, ainda, eleitos o promotor e um substituto do mesmo.

Continua parte 3.


[7] São ainda referidos outros projetos entregues nas Cortes por diversos cidadãos, nomeadamente de José Maria Dantas Pereira, Manuel Gomes Quaresma de Sequeira, Máximo Pinto da Fonseca Rangel e Lucas de Sena.

[8] As Cortes criaram, em 23 de novembro de 1821, uma comissão para redigir um código criminal e um código de processo criminal, mas nada foi concluído. Pela lei de 14 de fevereiro de 1823 foram convidados juristas e sábios para entregarem nas Cortes, até finais de fevereiro de 1824, um projeto de código criminal conforme as Luzes do século. O mesmo aconteceu, pelo decreto de 3 de setembro de 1822, para o código civil e o código do processo civil.

[9] São disponibilizados 19 editais da câmara de Lisboa, entre 1 de dezembro de 1820 e 5 de outubro de 1822, desde registos de publicidade, obrigações dos juízes, dos escrivães e dos alcaides de cada um dos julgados da cidade, reuniões nas igrejas, ordens dos ministros para presidirem às eleições dos “Deputados das Cortes” e processamento da eleição da câmara de Lisboa (Carta de lei de 27 de julho de 1822).

[10] As condições para a escolha dos jurados vieram a ser mais exigentes a ponto de na Reforma de 1836 (Mouzinho da Silveira), incluírem ser cidadão, saber ler, escrever e contar, ter de renda 100 mil réis nas cidades e 50 mil nas vilas, não ter menos de 25 anos e mais de 60, e não morarem na comarca.

[11] Quadros elaborados com base nas Instrucções, que devem regular as Eleições dos Deputados (31 de outubro de 20), Novas Instrucções pelas quaes se deve regular a Eleição dos Compromissarios, Eleitores, e Deputados (22 de Novembro de 1820) e da Lei da Liberdade da Imprensa (4 de julho de 1821). Acrescem mais três sedes de conselhos de jurados: Terceira com 18 eleitores (ilhas do Corvo, Flores, Faial, Pico, S. Jorge, Graciosa, S. Miguel, Santa Maria e Terceira); Madeira com 9 eleitores (ilhas de Porto Santo e Madeira); e S. Tiago com 3 eleitores (ilhas de Santo António, S. Vicente, Santa Luzia, S. Nicolau, Sal, Boa Vista, Maio, Fogo, Brava e S. Tiago).

[12] Para consultar os debates durante as sessões do mês de julho, ver Diário das Cortes em http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc.

[13] Este quadro eleitoral seria interrompido com o golpe da Vila-Francada (27 de maio de 1823), sendo o Soberano Congresso encerrado (2 de junho) e restaurada a convocação das velhas Cortes com procuradores dos concelhos e representantes do clero e da nobreza (10 de junho e 19 de junho de 1823).

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