Opinião

A vírgula e a Lei das Interceptações Telefônicas

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19 de junho de 2022, 12h06

Em março deste ano, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 625.263/PR, firmou a tese de que "são lícitas as sucessivas renovações de interceptações telefônicas desde que: i) verificados os requisitos do artigo 2º da Lei 9.296/96; e ii) demonstrada a necessidade da medida diante de elementos concretos e a complexidade da investigação, a decisão judicial inicial e as prorrogações sejam devidamente motivadas, com justificativa legítima, ainda que sucinta, a embasar a continuidade das investigações".

Por trás da problemática relativa às interceptações telefônicas, há, especificamente no que se refere à possibilidade de renovações sucessivas, uma redação no mínimo pouco clara de um dispositivo legal. Trata-se do artigo 5º da Lei 9.296/96, transcrito com o meu destaque em caixa-alta:

"A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo UMA VEZ comprovada a indispensabilidade do meio de prova."

Que quis dizer o legislador com a expressão "uma vez"? Aos olhos de quem advoga a tese da impossibilidade de prorrogações sucessivas da interceptação, provavelmente pretendeu limitar a renovação da diligência a uma única vez. Seria a locução, portanto, um adjunto adverbial. Já para aqueles que entendem ser inviável o sucesso de boa parte das interceptações telefônicas em apenas 30 dias, haja vista a complexidade de muitas investigações em que são deferidas, a intenção legal foi a de determinar uma condição para a renovação da diligência. "Uma vez" seria, sob tal óptica, um conectivo condicional. Foi a interpretação que vingou no STF, conforme o seguinte trecho do voto do excelentíssimo ministro relator do recurso extraordinário, ministro Gilmar Mendes: "Da leitura do dispositivo resta claro que a locução 'uma vez' diz respeito à necessidade de que a motivação demonstre a 'indispensabilidade do meio de prova'".

Sabe-se que não se devem interpretar as leis de forma que, a pretexto de fidelidade ao seu aspecto puramente linguístico, se chegue a conclusões absurdas, claramente em dissonância com o ordenamento constitucional e com a própria "mens legis". A configuração gramatical da norma é fundamental para que se chegue à vontade do legislador, mas muitas vezes será necessário recorrer a outros métodos complementares de interpretação para alcançá-la.

No caso da Lei das Interceptações Telefônicas, a redação problemática do artigo 5º teve especial influência na criação do problema. Nem mesmo pela leitura puramente gramatical é possível haurir, com segurança, a exata mensagem do dispositivo. Em situações como essa, a atividade hermenêutica ganha complexidade ainda maior, porque, antes de recorrer a outros métodos de interpretação, torna-se necessário “adivinhar” o sentido literal do texto.

Justamente para evitar esses problemas, a Lei Complementar 95/98, que dispõe sobre a redação das leis, determina que as disposições normativas sejam "redigidas com clareza, precisão e ordem lógica" (artigo 11). Para a obtenção da clareza e da precisão, devem-se "usar os recursos de pontuação de forma judiciosa" (artigo 11, I, "e") e "evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto" (artigo 11, II, "c").

Voltemos à redação do trecho problemático do artigo 5º da Lei 9.296/96: "[…] renovável por igual tempo UMA VEZ comprovada a indispensabilidade do meio de prova". Há dois problemas linguísticos básicos: a não utilização da vírgula e a escolha de uma locução ambígua. Mas, pela brevidade que se espera destas linhas, tratemos apenas do sinal de pontuação.

Caso se quisesse manter a mesma redação, a simples colocação adequada da vírgula já a tornaria mais clara. Vejamos:

1. "[…] renovável por igual tempo, UMA VEZ comprovada a indispensabilidade do meio de prova";
2. "[…] renovável por igual tempo UMA VEZ, comprovada a indispensabilidade do meio de prova".

No primeiro exemplo, a vírgula antes de "uma vez" deixa claro que a expressão simplesmente introduz uma condição para a renovação, interpretação adotada pela Suprema Corte. Se tivesse sido empregada, certamente seria simplificada a interpretação gramatical da norma. No segundo, a vírgula depois da expressão torna obrigatória a leitura de "uma vez" como locução adverbial, no sentido de que haveria a possibilidade de apenas uma renovação.

Melhor mesmo seria utilizar no texto outras expressões, sem risco de ambiguidade, que tornassem unívoca a mensagem. Mas quis-se aqui demonstrar que um simples sinal de pontuação bem colocado já poderia fazer muita diferença.

O caso das interceptações leva-nos a uma importante reflexão: será que realmente nos preocupamos com a clareza e a precisão de nossos textos? Escrever de forma correta é essencial. Dominar as regras de concordâncias verbal e nominal, crase, pontuação e regências consiste em habilidade basilar de todos os operadores do direito. Mas ser gramaticalmente correto nem sempre significa ser claro e preciso. Faltando tais qualidades ao texto, inúmeros problemas práticos podem surgir, e a celeuma em relação à interpretação da Lei 9.296/96 é apenas um deles.

Preocupemo-nos mais com isso.

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