Opinião

Demandas de saúde para além do básico: um roteiro para aprender e aprofundar

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15 de junho de 2022, 9h10

Houve um tempo em que era fácil lidar com demandas de saúde. O debate girava em torno da natureza jurídica dos direitos sociais e das possibilidades da atuação judicial. A pergunta central era esta: pode o Poder Judiciário, com base no direito à saúde, obrigar o poder público a fornecer um medicamento para pessoas carentes?

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Os argumentos mobilizavam distintas visões sobre separação dos Poderes, discricionariedade administrativa e reserva do possível. Ao final, venceu a tese favorável à atuação judicial, desencadeando a chamada judicialização da saúde, com uma explosão de demandas em todo Brasil, uma gradativa especialização da atuação jurisdicional e o nascimento de um novo mercado para a advocacia.

Desde então, a judicialização da saúde evoluiu. As perguntas passaram a girar em torno de limites, parâmetros e critérios para a atuação judicial. O que se quer saber, agora, é até onde pode ir a atuação judicial na concretização do direito à saúde?

Os debates estão cada vez mais sofisticados, envolvendo questões como a eficácia e segurança de novos produtos médicos, a análise de evidências, o custo-efetividade, a interpretação de relatórios da Conitec e dos NAT-Jus, a compreensão dos protocolos clínicos, a análise de impacto orçamentário e assim por diante.

Até no campo da saúde suplementar, o debate ficou mais complexo. Basta ver a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a taxatividade do rol da Agência Nacional de Saúde para perceber que a judicialização não é mais como era antigamente.

Para responder às novas questões, os advogados e juízes precisam saber um pouco de medicina, de farmacologia, de metodologia científica, de gestão em saúde, de incorporação de novas tecnologias e até de farmacoeconomia!

Para tornar a coisa ainda mais complicada, o custo da judicialização da saúde tem elevado o risco de demandas aventureiras ou até mesmo de fraudes deliberadas. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (Acórdão 1787/2017 – TCU – Plenário) constatou não só um aumento crescente dos gastos com a judicialização da saúde, que saltaram de R$ 70 milhões em 2008 para R$ 1 bilhão em 2015, mas também inúmeras deficiências de controle que facilitam a ocorrência de desvios e fraudes.

Fazendo uma analogia com o realismo jurídico, não basta mais dominar apenas os conceitos dos livros (health in the books). É preciso também entender a realidade nua e crua da saúde em ação (health in action).

Com base na minha experiência de mais de 20 anos lidando com demandas de saúde, inclusive ministrando cursos de formação para juízes nessa área, cheguei à conclusão de que precisamos sair da bolha jurídica para enxergar mais a fundo os problemas da saúde pública. Se nós, juízes, estamos decidindo demandas de alta complexidade, o único modo de legitimar nossa atuação é tomando decisões racionais, consistentes e bem fundamentadas, que estejam em conformidade com os princípios fundamentais do sistema de saúde.

O presente artigo é um pequeno roteiro para ajudar nessa tarefa. A ideia é selecionar alguns textos para orientar quem pretende lidar com demandas de saúde do modo mais consistente, seguindo as melhores práticas utilizadas nos principais centros de saúde do mundo.

Para entender o básico
O ponto de partida é conhecer os meandros do processo de incorporação de novas tecnologias no sistema público de saúde.

Não há um livro específico sobre isso, mas o Ministério da Saúde disponibilizou um texto à sociedade que explica de modo resumido cada uma das etapas do processo. É gratuito e pode ser baixado aqui.

Entrando no debate da judicialização da saúde, vale a pena ler dois textos antagônicos, fruto de um debate entre a Conitec e a Interfarma ocorrido em 2016. Na ocasião, a Interfarma acusou a Conitec de ser uma das principais responsáveis pelo alto índice de casos judicializados, e a Conitec rebateu alegando que os laboratórios têm interesses econômicos na judicialização e evitam seguir o processo normal de incorporação de novas tecnologias.

Independentemente de quem tenha a razão, o debate é muito rico para entender a visão dos dois principais atores da judicialização da saúde. Por um lado, há um problema de subfinanciamento da saúde e alguma burocracia e excesso de rigor no processo de incorporação de novas tecnologias. Por outro lado, a indústria farmacêutica se vale da judicialização para criar atalhos para fornecer medicamentos ainda não incorporados, inclusive lucrando com isso.

Uma leitura do Acórdão 1.787/2017 – TCU – Plenário também pode ser bastante útil para compreender os efeitos práticos da judicialização da saúde, especialmente os problemas que uma judicialização inconsequente pode causar no sistema.

Se quiser aprofundar um pouco mais, há alguns livros doutrinários que podem ajudar: "Direito e Políticas de Saúde", de Daniel Wang; "Direito à Saúde a luz da Judicialização", de Gebran Neto e Clenio Schulze; "Direito à Saúde", coordenado por Roberto Freitas Filho, entre outros.

O próximo passo: a medicina baseada em evidências
Depois de entender as causas e consequências da judicialização da saúde, vale a pena aprofundar o tópico central no debate contemporâneo envolvendo demandas de saúde: a medicina baseada em evidência (MBE).

A MBE se tornou um dos pilares para a concessão de medicamentos na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Até mesmo a criação dos NAT-Jus, que hoje são um braço fundamental de apoio aos juízes na tomada de decisões, se alicerça na tentativa de aproximar a judicialização da saúde da medicina baseada em evidências.

Um bom livro de divulgação científica sobre o assunto é Ciência Picareta, de Ben Goldacre. O autor foca nos tratamentos alternativos (como a homeopatia e as dietas milagrosas), mas a essência é a defesa de uma visão científica de mundo, que é o pilar da medicina baseada em evidência.

Se quiser aprofundar (e recomendo que aprofunde!), o livro de referência é Fundamentos da Medicina Baseada em Evidência (Como Ler Artigos Científicos), de Trisha Greenhalgh. A linguagem é bem acessível e pode ser compreendida até por quem não tem formação em saúde ou profundo conhecimento de metodologia científica. Hoje, é quase impossível enfrentar demandas de saúde sem dominar os conceitos explicados neste livro.

Explorando as entranhas do mercado de medicamentos
Para além da visão clínica, é interessante conhecer as nuances do mercado de medicamentos, especialmente a forma de atuação de alguns laboratórios. Para isso, há dois livros excelentes para entender os interesses por trás desse mercado. São "indignações baseadas em evidências", respaldadas pela autoridade de dois respeitados pesquisadores que conhecem a fundo os meandros da pesquisa clínica.

O primeiro livro é "Medicamentos Mortais e Crime Organizado: Como a Indústria Farmacêutica Corrompeu a Assistência Médica", de Peter Gotzche.

O segundo livro é "A Verdade sobre os laboratórios farmacêuticos", de Marcia Angell.

Ambos os livros criticam os laboratórios, explicando como indústria farmacêutica, "corrompida por lucros fáceis e pela ganância", engana e explora seus consumidores. É uma leitura importante para perder a ingenuidade e o romantismo que ainda circundam algumas visões sobre a judicialização da saúde, pois mostra como as empresas farmacêuticas podem manipular o método científico e usar o seu poder econômico em detrimento do interesse dos pacientes.

Aprofundando com diversão (lazer para férias!)
Já que estamos quase entrando em clima de férias, vale também indicar três romances bem gostosos de ler. São best-sellers daqueles que prendem o leitor do começo ao fim e ainda ajudam a entender como a medicina se tornou o que ela é hoje. Melhor lazer intelectual sobre saúde não tem!

Refiro-me à famosa trilogia, escrita por Noah Gordon, que narra vários momentos relevantes da história da medicina:

(1) "O Físico";

(2) "Xamã";

(3) "A escolha da Dra. Cole".

"O Físico", em particular, é uma das obras mais amadas de todos os tempos, sendo um dos livros mais bem avaliados do GoodReads, com quase 50 mil avaliações e nota 4.38! Eu dei 5 estrelinhas!

Para terminar com dignidade
Por fim, um livro que considero indispensável: "Mortais", de Atul Gawande. Esse foi um dos livros que mais me impactou, porque mostra a importância de encarar a morte não como um fracasso, mas como um evento natural da vida humana. Depois de ler, descobrimos que nem sempre a busca do tratamento a todo custo é a melhor solução para o paciente.

Livro para mudar completamente a visão sobre a medicina e, consequentemente, sobre a judicialização da saúde.

Pronto! Já há um bom ponto de partida para levar a compreensão da judicialização da saúde a outro nível.

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PS2. Para facilitar, segue a lista comentada de livros citados:

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