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Gilmar Mendes e o dom de si mesmo

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14 de junho de 2022, 9h11

Há 20 anos, antes da confirmação, no Senado, da sua indicação para vaga no Supremo Tribunal Federal, enviei à ConJur uma carta aberta a Gilmar Ferreira Mendes. Ali, dizia que não me iria deter nas suas qualificações jurídicas, já então das mais notórias do país e reconhecidas à unanimidade, mas que daria testemunho de alguns traços menos conhecidos do público relativos ao seu portar-se no cotidiano. Afinal, mais do que nos grandes discursos e projetos, é neles que se revelam os últimos refolhos da alma e se expõe aquilo que se é essencialmente.

Naquela carta, compartilhei com os leitores o fato de nunca ter visto o hoje ministro Gilmar Mendes, com quem privava amiudadamente, em nenhum caso, em nenhuma circunstância, ter deixado de deferir toda a cortesia a qualquer subordinado seu e a todos os seus também então incontáveis discípulos; nunca presenciei nenhum remoto movimento de destrato para com pessoa alguma de condição social mais humilde que dele se acercasse. Isso é o esperado de qualquer pessoa, mas não é pouca coisa, e é de se encarecer.

Lembrei a sua postura briosa nos desencontros com os que com ele ombreavam, ainda que fosse mais marcante o exemplo do professor nato, dedicado e interessado, que, mesmo pressionado pelo acúmulo de afazeres, jamais deixava de dirigir toda a sua atenção, conhecimento e engenho, com a paciência mais gentil — porque não transparecia o esforço que exigia —, ao colega ou ao aluno com dificuldade em algum ponto sutil do Direito Constitucional.

Spacca
Recordei que mesmo desconhecidos, que apenas desejavam um momento de contato com o jurista admirado — e que, por vezes, não mais desejavam do que ser ouvidos com solidariedade, não importando a conveniência do momento —, todos nele sempre encontravam a acolhida alentadora do voltar de olhos e ouvidos atentos para o que os inquietava.

Dei conta também de como sempre me impressionava, nessas ocasiões, que o cansaço de um momento atrás se convertesse em entusiasmo pelo Direito e em sutil alegria de poder ajudar, de modo delicado, sem condescendência, afável e infatigável. Daí deduzia que, entre tantos predicativos seus, o ensejo valia para ressaltar o da generosidade — generosidade no afeto, na partilha intelectual, no dispor do tempo, na solidariedade.

Encerrava a carta, imaginando que os futuros jurisdicionados decerto haveriam de se confortar, sabendo que, além do jurista reto, completo, sem par na geração, teriam como um dos guardiões últimos dos direitos fundamentais e da estrutura constitucional da democracia alguém que tornava o seu dia-a-dia prática constante de apreço, respeito e promoção da dignidade humana.

Passados 20 anos desde a carta, que alegria poder repetir, sem nenhuma ressalva, todas aquelas notícias — que já agora não mais são novidadeiras!

É muito justo que, em comemoração dos 20 anos de judicatura do ministro Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal, recuperem-se dessas décadas tantos dos seus paradigmáticos votos que, vencedores, na maior parte das vezes, ou mesmo ocasionalmente vencidos, assinalaram o presente e apontam o futuro da jurisdição constitucional no Brasil e da conformação dos direitos fundamentais entre nós.

É não menos de se esperar que se repassem as contribuições de Gilmar Mendes também no que se refere à abertura para o público acadêmico do debate, a que a Suprema Corte seria instada a resolver, sobre questões de direito cruciais para a convivência interpessoal e política, respeitosa dos direitos básicos de cada um, de que nenhuma sociedade sob o signo da civilização democrática pode prescindir.

Aqui, caberia listar, na coluna dos débitos da cidadania, do magistério e da inteligência do país para com Gilmar Mendes, o inventário das suas palestras, cursos, debates acadêmicos e encontros com imprensa, em que a sua presença, com as palavras francas, bem articuladas, cultas, entremeadas tantas vezes do riso bem humorado e da sequência de alguma frase lapidar, formulada no instante propício, iluminaram as perplexidades do momento e apontaram perspectivas de superação.

 O volume enciclopédico dos seus escritos magistrais, que explicam e preconizam muito da jurisprudência, por si só, renderia outro extenso artigo — e, no particular, não posso deixar de consignar o meu especialíssimo motivo de orgulho e alegria de ver o meu nome ligado ao de Gilmar Mendes nas 17 edições do Curso de Direito Constitucional, que ele ideou.

Há muito o que aplaudir nesses 20 anos de judicatura, em que transpareceu a consciência de estadista de Gilmar Mendes no melhor acordo com a fina sensibilidade para com os direitos de cada pessoa, especialmente de cada indivíduo que sofre, de cada excluído da fortuna, de cada indigente da solidariedade do próximo.

Haverá, decerto, quem narrará, sob esse ângulo, os anos de Presidência do Conselho Nacional de Justiça, em que o drama do presidiário ocupou o seu cuidado consciencioso. O período foi de medidas humanizadoras para quem está recebendo o castigo, bem como para aqueles que já o cumpriram e que se defrontam com a também dramática e comovente experiência do retorno à convivência social.

Haverá os que assinalarão o papel do ministro Gilmar Mendes na formulação de uma nova linhagem de precedentes, atenta para as agruras dos que se defrontam com a talvez mais abaladora atuação estatal, a persecução criminal. Nesse ponto, certamente que será enaltecida a premissa do seu raciocínio, expressa no postulado de que "o Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações"[1].

A frase é breve, simples, bela, clara, inequívoca e rica em significado — uma profissão de fé. E serve bem de clef de voûte das laboriosamente fundamentadas e requintadamente raciocinadas construções jurídicas cinzeladas pelo ministro Gilmar Mendes nas decisões em que desvela o papel do Estado e do Direito para com o ser humano. É animador verificar a coerência da prática jurisdicional de Gilmar Mendes com esse norte, não importando as circunstâncias palpitantes e desafiadoras que tenham que ser arrostadas.

Divido com o leitor uma curiosa impressão final. Transcorridas essas duas décadas de judicatura do ministro, tão abundantes em obras e febris na intensidade, sinto o tempo passado desde a memorável e concorrida posse no Plenário do STF como um átimo. Atribuo a singular sensação ao fato de que, mesmo tendo sido esses vinte anos pontuados por tantas vicissitudes e instantes cruciais, por eles atravessou o homem que continuou o mesmo, no melhor da sua natureza e aspirações. Vejo no ministro Gilmar Mendes, ao longo do período, o mesmo homem que cumpre invariavelmente o que mais se pode esperar de quem se alça ao cume da vida pública no Direito: transformar a missão de julgar em dom de si mesmo.

[1] HC 84.409, julgado em 7 de dezembro de 2004.

Autores

  • é coautor, com Gilmar Ferreira Mendes, do "Curso de Direito Constitucional" nas suas atuais 17 edições. Doutor em Direito (UnB). Professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Membro do Ministério Público Federal. Vice-Procurador-Geral Eleitoral.

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