Opinião

Franquia obrigatória de bagagem: ainda há liberdade tarifária?

Autores

  • Thiago Carvalho

    é advogado com mais de 12 anos de experiência em aviação civil. Sócio do escritório ASBZ Advogados. Pós-graduado em Filosofia pela PUC-RJ. Reconhecido por sua atuação pelo ranking The Legal 500 Latin America 2022. Membro fundador do Ibaer (Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico). Membro da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB-RJ.

  • Renan Melo

    é advogado vinculado ao escritório ASBZ Advogados atuando nas áreas de Direito Civil Direito do Consumidor e Direito Aeronáutico pós-graduado em Direito Civil — Contratos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e em Direito Internacional pela Escola Paulista de Direito (EPD) mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP membro da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB/SP e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (Ibaer).

13 de junho de 2022, 10h12

Em 24/5/2022, o Congresso concluiu a votação do Projeto de Lei de Conversão nº 5/2022 que trata da Medida Provisória nº 1.089/2021, a chamada MP do Voo Simples. O PLV foi encaminhado à Presidência da República para sanção ou veto, cujo prazo fatal é o dia 14 de junho.

Ao texto original foram acrescidas algumas emendas, dentre elas, a que veda a cobrança de qualquer valor para o transporte de bagagem despachada, de até 23 kg para voos nacionais, e até 30 kg para internacionais.

Na prática, a vedação gera a obrigação às companhias aéreas de comercializarem apenas tarifas que incorporem em sua composição de custos o transporte de bagagem despachada em todos os voos, aniquilando a possibilidade de comercialização de uma tarifa básica e mais barata, que permite apenas o transporte de um volume como bagagem de mão. Entretanto, a imposição de uma franquia pseudo-gratuita de bagagem caminha de encontro à regra de liberdade tarifária que permeia a aviação civil.

O próprio enunciado constitucional traz os apontamentos quanto à livre iniciativa, à livre concorrência e ao livre exercício das atividades econômicas [1].

O princípio da liberdade econômica corresponde a um desdobramento da própria liberdade. Trata-se do exercício da sensibilidade de acessibilidade a alternativas de conduta e resultado aplicados à esfera econômica, como bem definido pelo jurista e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau [2].

O princípio da liberdade tarifária foi adotado pelo Brasil inicialmente para voos domésticos em 2001, através da Portaria nº 248/2001, do Ministério da Fazenda, e da Portaria nº 1213/DGAC/2001, do Departamento de Aviação Civil e posteriormente expandido para o transporte internacional, vindo a ser positivado  na Lei nº 11.182/2005 (Lei de Criação da Agencia Nacional de Aviação Civil — Anac), cujo artigo 49 determina que "na prestação de serviços aéreos, prevalecerá o regime de liberdade tarifária".

Ao estabelecer as condições gerais de transporte no país, por meio da Resolução n. 400/2016, a Agência reafirmou em seu artigo 2º que "na oferta dos serviços de transporte aéreo, o transportador poderá determinar o preço a ser pago por seus serviços, bem como suas regras aplicáveis". O dispositivo está em linha não apenas com a já citada Lei 11.182/2005, mas também com a Política Nacional de Aviação Civil —  Decreto 6780/2009, que orienta o desenvolvimento da aviação civil brasileira e impõe aos agentes do Estado que adotem "diretrizes que confiram ao mercado o papel de equilibrar a oferta e a demanda, prevalecendo a liberdade tarifária nos serviços de transporte aéreo".

A Anac já foi instada a se manifestar acerca da abrangência do supramencionado artigo 2º, quanto à liberdade das transportadoras para estabelecerem as regras aplicáveis aos serviços que comercializam e assim o fez através da Nota Técnica nº 05/2017 [3], da qual se destaca o ponto abaixo:

"…
Artigo 49. Na prestação de serviços aéreos regulares, prevalecerá o regime de liberdade tarifária.
2.10. Nesse sentido, a atualização das CGTA [4] reforça não apenas o preceito legal, mas principalmente a dinâmica existente no setor aéreo, cujo fundamento, dentre outros aspectos, está na inexistência de garantia de equilíbrio econômico financeiro por parte do Estado. Assim, os operadores aéreos ao oferecerem a prestação de serviços de forma livre, assumem todos os riscos do mercado. Isso justifica o fato deles terem liberdade de determinação de preços e de cláusulas contratuais, incluindo, ainda, a liberdade para diferenciar produtos e serviços conforme demanda e rotas atendidas. Note-se que esta liberdade abrange inclusive a estipulação das condições de prestação dos serviços e das correspondentes cláusulas e multas contratuais.
…".

Resta claro, portanto, que a Anac, seguindo a Constituição, pautou a regulamentação do transporte aéreo no Brasil de acordo com os princípios da livre iniciativa, livre concorrência e livre exercício das atividades econômicas, que se desdobram na liberdade tarifária.

Inobstante, o princípio da liberdade tarifária atualmente pauta os acordos internacionais sobre serviços aéreos dos quais o Brasil é signatário, como orienta a Portaria n. 527/2019 do Ministério da Infraestrutura e Transportes [5].

Exemplificando, o Acordo Multilateral de Céus Abertos para os Estados Membros da Comissão Latino-Americana de Aviação Civil  CLAC, Decreto 9.955/2019, que congrega 22 países e o Acordo de Céus Abertos entre Brasil e Estados Unidos, Decreto 9.423/2019, expressamente adotam a liberdade tarifária e a não intervenção do estado na formulação dos preços e tipos de serviços. Sendo assim, a violação aos mencionados acordos implica em violação ao artigo 178 da própria Constituição Federal, que determina a observância dos acordos firmados pela União, no que se refere ao transporte internacional.

Do ponto de vista econômico, a possibilidade de os transportadores estabelecerem seus serviços e preços se mostra de indispensável para a condução de suas atividades. Nada mais lógico, afinal, se a empresa aérea assume integralmente os riscos do empreendimento, sem qualquer respaldo do Estado, deve lhe ser assegurada a liberdade para ofertar os serviços conforme desenho que se encaixe em sua estratégia de negócio, decidindo o que está incluso, ou não na tarifa contratada, assim como o preço que as condições de mercado permitam praticar.

Veja-se que o transporte aéreo é um serviço bastante complexo. Com a liberdade tarifária cada companhia pode melhor planejar suas atividades, examinadas diversas variáveis, que vão desde questões técnicas como o tipo de aeronave com a qual operará, treinamento de tripulação e aquisição de insumos, a aspectos mercadológicos como definição de público alvo, estabelecimento de rotas e precificação.

A determinação compulsória à prestação de determinado tipo de serviço limita a atuação das companhias, a diversificação dos serviços, a acessibilidade para um público mais amplo, impactando diretamente em suas possibilidades de atuação, ganhos e atratividade para novas empresas, ferindo gravemente o fomento à concorrência.

Não se trata de ausência completa de regras ao exercício do transporte aéreo, que se sujeitará às normas de segurança, consumeristas, sanitárias, de proteção de dados, entre outras. Trata-se, por outro lado, de garantir a liberdade quanto à oferta de serviços e preços às empresas aéreas de sorte a possibilitar um livre empreendimento, o fortalecimento do setor e maior oferta de tipos de serviços distintos aos consumidores, assegurando-lhes a escolha por aquele que melhor se adequa às suas necessidades, dispensando-os de arcarem com custos relativos a serviços que sequer gozarão.

Pode-se dizer que quaisquer limitações à liberdade tarifária – como o restabelecimento da franquia de bagagem obrigatória – não se afigura constitucional, legal ou producente.


[1] Constituição Federal

"Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

IV – livre concorrência;

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei".

[2] GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7ª ed. Malheiros: São Paulo, 2006, p. 243.

[4] A sigla CGTA significa Condições Gerais de Transporte Aéreo, matéria objeto da Resolução Anac nº 400/2016.

[5] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-527-de-5-de-agosto-de-2019-208992801

"Artigo 5º As negociações de Acordos sobre Serviços Aéreos deverão pautar-se pelos seguintes princípios:

II- Estímulo à concorrência;

VI – Prevalência do regime de liberdade tarifária;

X – Estímulo à flexibilização de regras sobre acordos de código compartilhado bilateral e com terceiros países, arrendamento de aeronaves e outras práticas comerciais relevantes para a viabilidade econômica dos serviços aéreos internacionais;
XI – Facilitação da circulação de pessoas e bens;
…"

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  • é advogado com mais de 12 anos de experiência em aviação civil. Sócio do escritório ASBZ Advogados. Pós-graduado em Filosofia pela PUC-RJ. Reconhecido por sua atuação pelo ranking The Legal 500 Latin America 2022. Membro fundador do Ibaer (Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico). Membro da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB-RJ.

  • é advogado vinculado ao escritório ASBZ Advogados atuando nas áreas de Direito Civil, Direito do Consumidor e Direito Aeronáutico, pós-graduado em Direito Civil — Contratos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e em Direito Internacional pela Escola Paulista de Direito (EPD), mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP, membro da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB/SP e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (Ibaer).

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