Opinião

Observações sobre o desenvolvimento tecnológico na Constituinte chilena

Autor

  • Lucas Reckziegel Weschenfelder

    é advogado doutorando em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e integrante do grupo de Estudos e Pesquisa em Direitos Fundamentais e do grupo de Estudos Proteção de Dados no Estado democrático de Direito Inteligência Artificial e Direito.

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10 de junho de 2022, 13h11

No mês passado foi publicado um artigo, de minha autoria, a respeito de um necessário olhar constitucional sobre o desenvolvimento tecnológico. Coloquei, no referido texto, algumas observações sobre o trâmite dos Projetos de Lei nº 5.051, 21 e 875 (inteligência artificial no Brasil), adicionando o recente political agreement vinculado ao Digital Markets Act e Digital Services Act, na União Europeia, e reivindicando uma lembrança na, às vezes, onírica e fantasiosa práxis da construção de diplomas normativos no Brasil e, pois, na América Latina.

A questão aventada, em suma, foi: quem deverá ser ouvido para que haja um verdadeiro polílogo constitucional sobre o assunto, considerando o texto normativo da Constituição de 1988? [1]

Com o presente, espera-se acrescentar algumas linhas, que seguem uma preocupação conexa ao texto anterior, sem embargo, trazendo alguns elementos de um "caso": a Constituinte chilena, e o que os nossos vizinhos estão pretendendo averbar em seu novo texto constitucional.

Antes, importante informar as próximas etapas do processo constituinte chileno:

Em 13 de junho de 2022, o Plenário Geral da Constituinte deverá apresentar o Informe, oriundo da Comissão de Armonización. Em 4 de julho de 2022, acontecerá a cerimônia de entrega da proposta da nova Constituição (dois anos depois da seção de instalação da Constituinte, em 4 de julho de 2020), encerrando-se o funcionamento da Constituinte, dia 5 de julho de 2022. Sessenta dias depois ocorrerá o momento constitucional: plebiscito, com a aprovação ou a rejeição do novo texto constitucional, marcando-se, com um fluxo comunicativo, de acordo democrático legitimador, de e para uma nova sociedade e Estado, reivindicadas a partir dos eventos de 18 de outubro de 2019.

Salienta-se que, o próprio processo constituinte chileno é um caso particular, pode-se dizer, inédito, que se moveu, e ainda se move, no "tecnológico da digitalização". É, com efeito, uma Constituinte digitalizada. Fala-se em Constitucionalismo Digital [2] [3]: a constituinte chilena faz parte de uma "nova via" de sentido a ser estudada e recortada na dogmática do Direito Constitucional, anterior, precedente, preparatória, ao menos no que se pretende lançar, no projetar normativo do que já foi realizado com as participações do povo chileno na via física, e no online, com as iniciativas, fiscalizações e difusões, nas comissões da constituinte e, por claro, no próprio texto normativo, em "segunda versão", aprovado no último dia 30/5/2022 [4].

"De la democracia participativa y sus características
Los poderes públicos deberán facilitar la participación del pueblo en la vida política, económica, cultural y social del país. Será deber de cada órgano del Estado disponer de los mecanismos para promover y asegurar la participación y deliberación ciudadana incidente en la gestión de asuntos públicos, incluyendo medios digitales.
De la participación ciudadana digital. La ley regulará la utilización de herramientas digitales en la implementación de los mecanismos de participación establecidos en esta Constitución y que sean distintos al sufragio, buscando que su uso promueva la más alta participación posible en dichos procesos, al igual que la más amplia información, transparencia, seguridad y accesibilidad del proceso para todas las personas sin distinción.
Las municipalidades proveerán los mecanismos, espacios, recursos, alfabetización digital, formación y educación cívica y todo aquello que sea necesario para concretar dicha participación, que será consultiva, incidente y/o vinculante de acuerdo con la legislación respectiva.
Todas las personas, individual y colectivamente, tienen derecho al acceso universal, a la conectividad digital y a las tecnologías de la información y comunicación, con pleno respeto de los derechos y garantías que establecen esta Constitución y las leyes".

Inserindo-se nesse projeto constitucional-político-jurídico-tecnológico chileno,  antepõe-se o direito à comunicação social (item 1.320  Sistemas de Conocimentos), em que toda pessoa, individual ou coletivamente, tem a potestade de produzir informação e participar equitativamente na comunicação social, reconhecendo-se o direito de fundar e de manter meios de comunicação e informação, complementando-se, essa previsão, com a de um dever de o Estado chileno impedir a concentração da propriedade dos meios de comunicação e informação, ao mesmo tempo, fortalecendo-se uma disposição  normativa contrária a qualquer monopólio estatal sobre a matéria, muito embora, colocando-se, como dever, o fomento, para a criação de meios de comunicação e informação, e seu desenvolvimento, com um olhar atento aos níveis nacionais, locais e comunitários do país (itens 1.322 e 1.323).

De outra monta, o texto normativo comentado (ainda provisório), provoca um dever de o Estado superar as brechas de acesso, uso e participação no espaço digital, em "sus dispositivos e infraestructuras", ajustando como direito de toda pessoa, e povos, a se comunicar em sua própria língua "en todo espacio […] Todos los habitantes del território nacional tienen derecho a usar las lenguas. Ninguna persona o grupo podrá ser discriminado por razones lingüísticas".

Relevante, nesse eixo, estão os direitos linguísticos, identitários e culturais das pessoas com deficiência, em que o Estado deverá garantir, não somente, mas, determinantemente, "el derecho a expresarse y comunicarse a través de sus lenguas y el acceso a mecanismos, medios y formas alternativas de comunicación […]" (item 415) [5].

Propriamente, no tocante ao desenvolvimento científico-tecnológico (em qualquer âmbito), e mostrando-se ligado ao bloco normativo acima descrito, estabelece-se um direito de participar e de se beneficiar "de los conocimientos", registrando-se, a qualquer pessoa, individual ou coletivamente, a possibilidade de "participar libremente de la creación, desarrollo, conservación e innovación de los diversos sistemas de conocimientos y a la transferência de sus aplicaciones, así como a gozar de sus benefícios", (item 1.349), positivando-se, adicionalmente, a todas as pessoas, o direito de participar, também, e, no caso, de um espaço digital livre de violência (item 1.344).

Em outra esfera, antevê-se um direito a toda pessoa de possuir uma educação digital, ao desenvolvimento de conhecimento, pensamento e linguagem tecnológicos, estabelecendo-se ao Estado o dever de assegurar "que todas las personas tengan la posibilidad de ejercer sus derechos en los espacios digitales, para lo cual creará políticas públicas y financiará planes y programas gratuitos con tal objeto" (item 1343), enquanto se reconhece a neurodiversidade, pontuando-se a todas "a las personas neurodivergentes su derecho a una vida autónoma, a desarrollar libremente su personalidade e identidade, a ejercer su capacidad jurídica y los derechos […]" (item 1.347).

Incorpora-se, nessa esteira, o direito a proteção de dados pessoais (item 1.359), constitucionalizando-se, expressamente, a imperatividade da existência de uma Agência Nacional de Protección de Datos (item 1.377).

Nas propostas de normas constitucionais transitórias, especificamente, na de nº 4, escreve-se um texto atento ao cenário da digitalização da vida, e do mundo, ainda por mais quando de uma linguagem dos direitos humanos e fundamentais (e de sua multidão e processo de criação): "todas las normativas referentes a derechos digitales tendrán un plazo máximo de creación de 2 años desde la entrada en vigência de está Constitución. Una vez entrada en vigencia la normativa, deberá ser revisada periodicamente con el fin de ajustarse a los avances tecnológicos vigentes".

Propõe-se, demais, a instalação de um Observatorio Digital que […] deberá monitorear las dinámicas digitales a nivel nacional, tanto públicas como privadas y estabelecer indicadores para medir su evolución, transformación y crecimiento […], somando-se ao dever de llevar el registro, avances y análisis en la implementación de las normas constitucionales sobre Derechos Digitales; y, los avances digitales más relevantes a nivel global. El observatorio deberá contar con datos e información actualizada y de acceso abierto de forma permanente.

Simultaneamente, deverá o Estado chileno, durante o primeiro ano de vigência da nova Constituição, formar um Catastro Nacional de Conectividad, para que se possa realizar um levantamento de quais regiões do país se apresentam "excluídas de conectividade". Um dos objetivos do Catastro será o de "detectar las factibilidades técnicas y de gestión compartida con la comunidade, velocidades y garantias de protección de datos y posibilidad para la superación de las brechas de acceso".

O Estado chileno, ainda, se comprometerá com o dever de estimular, promover e fortalecer a investigação científica e tecnológica em todas as áreas do conhecimento, "contribuyendo así al enriquecimento sociocultural del país y al mejoramiento de las condiciones de vida de sus habitantes" (item 1.374), tratando de reconhecer e proteger o patrimônio natural e cultural, material e imaterial, para a "[…] salvaguardia y transmisión a las generaciones futuras, cualquiera sea el régimen jurídico y titularidade de dichos bienes" (item 1.365).

No que diz respeito à constitucionalização de direitos e garantias de meio ambiente (que estão atrelados a uma modalidade de desenvolvimento tecnológico que se quer eleger), está a admissão vinculativa de que "La naturaleza tiene derecho a que se respete y proteja su existência, a la regeneración, a la mantención y a la restrauración de sus funciones y equilibrios dinâmicos" […] (Item 877), imprimindo-se um direito a todas as pessoas "a um ambiente sano y ecologicamente equilibrado" com um acréscimo fundamental, sobre "[…] el derecho al aire limpio durante todo el ciclo de vida […]" (item 938), normatizando-se, no pano de fundo, "el […] derecho de acceso responsable y universal a la naturaleza" (item 866).

Essas são algumas iniciativas da Constituinte chilena, que se encontram avançadas, estruturando um projeto constitucional, de desenvolvimento tecnológico pautado pela noção de direitos humanos e fundamentais. Afeiçoa-se, indubitavelmente, ao "digital", sem, entretanto, esquecer, que, o tecnológico não é neutro, e que as decisões sobre o presente-futuro devem ser integradas a um planejamento de Estado, e de sociedade, atento à contingência, vinculada à complexidade humana, e do mundo.


[2] Celeste, E., & da Silva Santarém, P. R. (2022). Constitucionalismo Digital: Mapeando a resposta constitucional aos desafios da tecnologia digital. Revista Brasileira De Direitos Fundamentais & Justiça, 15(45), 63–91. https://doi.org/10.30899/dfj.v15i45.1219

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; OLIVEIRA FERNANDES, Victor. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 16, nº 1, p. 1-33, out. 2020. ISSN 2238-0604. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/4103. Acesso em: 02 jun. 2022. doi:https://doi.org/10.18256/2238-0604.2020.v16i1.4103.

[5] No Brasil, quando se aduz ao acesso à educação: Sarlet, I. W., & Sarlet, G. B. S. (2019). AS AÇÕES AFIRMATIVAS, PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL – CONTEXTO, MARCO NORMATIVO, EFETIVIDADE E DESAFIOS. Revista Direitos Fundamentais &Amp; Democracia, 24(2), 338–363. https://doi.org/10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v24i21554.

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e integrante do grupo de Estudos e Pesquisa em Direitos Fundamentais e do grupo de Estudos Proteção de Dados no Estado democrático de Direito.

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