Opinião

Interpretação do negócio jurídico e o novo artigo 113 do CC/02 (Parte 4)

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10 de junho de 2022, 7h02

Continua parte 3

Chegamos à quarta e última parte deste estudo voltado a perquirir o que as alterações promovidas pela Lei da Liberdade Econômica no artigo 113 do CC/02 podem representar para o estudo da interpretação do negócio no direito privado brasileiro daqui em diante.

Na primeira parte tratamos do estudo de alguns aspectos do processo legislativo; na segunda continuamos a tratar das alterações legislativas, mas com o objetivo de destacar o que podem representar para o direito privado brasileiro sob seu viés histórico; na terceira parte foram tratadas algumas das críticas negativas formuladas pela doutrina a respeito das alterações promovidas no artigo 113 do CC/02.

Para encerrar essa sequência de análises, julgamos conveniente apresentar as críticas positivas dirigidas às alterações hoje constantes do artigo 113 do CC/02, os seus efeitos já sentidos na jurisprudência, e por fim alguns desafios que nos parecem estar lançados à doutrina e à jurisprudência quanto à sedimentação das disposições constantes de referido dispositivo, e sua consequente operacionalização na atribuição de sentido ao negócio jurídico.

Apesar de os cânones hermenêuticos hoje presentes nos incisos do art. 113 do CC/02 não representarem novidades, circunstância vista por alguns como negativa em suas avaliações, para nós, a análise do mérito ou não da positivação de determinado tema não deve se limitar ou preponderar sobre o fator "inovação". Muito embora a novidade da lei seja fato a ser observado quando da sua avaliação, enquanto mecanismo voltado a regular as relações sociais, pensamos que sua análise crítica, em última instância, deve recair especialmente na verificação das suas condições de promover os fins sociais para a qual foi editada, isto é, a tarefa de aferição de sua eficiência. Não se está a dizer, contudo, que outros fatores, como o da técnica empregada na sua redação devam ser desprezados, até mesmo porque podem impactar, ao fim e ao cabo, na realização dos efeitos esperados da lei, mas tão somente perceber a verdadeira importância que assumem quando sob análise.

Retornando ao enfoque prático que se procura imprimir nesta avaliação, nota-se que enquanto parâmetros de orientação de formas de comunicação/entendimento entre pessoas/contratantes, a recente positivação dos métodos de interpretação nos incisos do artigo 113 do CC/02 representa, em última ratio, necessário contributo para a segurança jurídica dos contratantes sob múltiplas facetas: (a) o poder judiciário, assoberbado por ações, hoje encontra facilmente na lei o que a doutrina privatista há tempos trabalha. Facilita-se a justificação técnica do sentido atribuído à declaração negocial interpretada e se municia as partes litigantes para que as decisões sejam proferidas com menor subjetividade; (b) autoriza-se agora a interposição de recurso especial (nas ações judiciais) com fundamento na negativa de lei federal (artigo 105, III, a’, CF/88) em caso da sua utilização não se realizar ou se realizar de maneira inadequada; (b.1) consequentemente cresce a possibilidade de se provocar o STJ a emitir pronunciamentos em matéria de interpretação do negócio jurídico, ainda que de forma mais abstrata no limite da definição das normas contidas nos incisos do artigo 113 do CC/02, algo dificultado em razão do teor das Súmulas n.º 5 e 7 do STJ.

Deixando-se a análise macro e seguindo-se especificamente para a letra da lei, nota-se que, diferentemente da redação do caput do artigo 113 do CC/02 que se limitava a referir aos usos do lugar da celebração do negócio jurídico, o inciso II hoje deixa expresso que os costumes e práticas (estas últimas próprias do mercado) também devem ser observadas pelo intérprete conformadas ao tipo de negócio firmado.

A singela referência ao final da frase ao tipo do negócio embora possa passar desapercebida por alguns, tem uma enorme importância e por isso elogiável a sua inclusão no texto de lei pelo legislador. Cada tipo do negócio detém uma função-econômica social que lhe é própria, e por isso prescreve o legislador que o intérprete refine a utilização dos usos, costumes e práticas adotados naquele tipo de negócio objeto de interpretação, não se valendo indistintamente de condutas próprias empregadas em outros tipos negociais, sob pena de se encontrarem sentidos incompatíveis ou deturpados daquela operação econômica.

A referência ao comportamento "das partes posterior à celebração do negócio" prevista no inciso I do artigo 113 também teve recepção positiva pela doutrina como não poderia deixar de ser. A adoção deste cânone de hermenêutica contratual vem de longa data em nossa tradição, guardando relação com a norma contida no revogado artigo 131, 3, do Código Comercial[3] de 1850. Em sintonia com os demais cânones hermenêuticos que remetem o intérprete a analisar o conjunto das circunstâncias em que envoltas as partes contratantes frente à declaração interpretada, a lógica por de trás deste inciso é elementar: ninguém melhor que os próprios contratantes para saber o que desejaram obter com a relação negocial entabulada. Por isso, como autênticos conhecedores de suas obrigações, a observância pelo intérprete do seu comportamento durante a execução do contrato poderá fornecer elementos para fins de elucidar qual fora a intenção comum das partes ao estipularem determinada cláusula negocial.

Passando-se à problemática redação do inciso V (ver a este respeito a terceira parte deste estudo), que concentra os cânones da interpretação sistemática e racionalidade econômica num único dispositivo, aqui entendida como função econômica-social do ajuste negocial, novamente sua presença é compreensível porquanto harmônica com os demais cânones interpretativos já presentes do Código Civil que direcionam o intérprete a observar a circunstancialidade do negócio jurídico (usos, comportamentos etc), notadamente a compreender a racionalidade da operação econômica nele estruturada.

A este respeito ensina a professora. Judith Martins-Costa[4] que a atenção do intérprete à função econômico social será de maior relevo —conquanto igualmente importante para os negócios jurídicos típicos — quando se tratar de negócio jurídico atípico: "aí não é a forma, mas a função que será determinante para a interpretação".

A verdade é que as alterações promovidas no artigo 113 do CC/02 parecem ter pouco agradado — com razão em certos aspectos — a doutrina privatista até o momento diante dos comedidos elogios a elas dirigidos. Por outro lado, se no campo do direito privado as alterações até então não foram reputadas satisfatórias, talvez a sua maior utilidade (ao menos neste primeiro momento) se encontre no campo do direito processual, a partir da modificação da fundamentação de decisões judiciais que com frequência deixavam (e ainda deixam) de explorar e sequer mencionar os métodos/cânones de interpretação adotados pelo julgador na formação de seu entendimento relativamente à declaração negocial objeto de controvérsia.  

De forma tímida já se é possível verificar um esboço em decisões judiciais de possíveis sentidos atribuíveis aos incisos do artigo 113 do CC/02, ainda que em sua maioria se encontre simples referência aos cânones recentemente inseridos na lei para fundamentar a atribuição de certo sentindo a determinada disposição da relação negocial sob exame[5]. Naturalmente que a provocação do judiciário a seu respeito e a consequente qualidade das decisões judiciais, como ato/momento sintetizador dos atos processuais, é trabalho resultante de colaboração, dependente, em grande medida, da construção argumentativa lançadas pelas partes em suas manifestações em torno dos incisos do artigo 113 do CC/02.

Portanto, ainda que nesse curto espaço de tempo da vigência do artigo 113 em sua nova roupagem seja difícil avaliar quais serão os efeitos da transposição para a lei de um rol de cânones interpretativos, desde logo se percebe, quando trabalhados na fundamentação das decisões judiciais, maior esclarecimento dos critérios adotados pelo(a) magistrado(a) na construção do sentido da declaração negocial (algo incomum em nossa jurisprudência), o que representa a um só tempo aperfeiçoamento da nossa jurisprudência em matéria de hermenêutica negocial mas também prestígio ao essencial dever de fundamentação das decisões judiciais (artigo 489, §1º do CPC).

Neste primeiro momento, muitas das críticas levantadas pela doutrina relativamente as alterações promovidas no artigo 113 do CC/02, como o da suficiência ou não da inserção de alguns dos critérios de interpretação na lei, ou da necessidade de sua transposição para lei, serão colocadas a prova pouco a pouco, à medida que as regras constantes em seus incisos tiverem aplicação por nossos tribunais.

Entretanto, o quadro que nos parece se desenhar após esses quatro estudos a respeito do artigo 113 do CC/02, num balanço entre passado e presente, avanços e desafios, parece demonstrar que: se antes da positivação dos critérios de interpretação do negócio jurídico sofria-se com frequência do mal da subjetividade na eleição dos métodos que seriam adotados ou desprezados pelo julgador na atribuição de sentido à declaração negocial, a sua transposição para lei ainda não põe fim as dificuldades que há bastante tempo orbitam o tema da interpretação do negócio jurídico.

Neste contexto, antigas questões que ainda não encontraram suficiente desenvolvimento em nossa doutrina assomam-se a novas, como, por exemplo: (a) Haveria uma hierarquia entre os cânones previstos nos incisos do artigo 113 do CC/02? Haveriam cânones passíveis de serem afastados do emprego pelo intérprete por vontade das partes[6]? Quais deles estariam ao alcance da autonomia privada? Há diferença entre as atividades de preenchimento de lacunas e a integração dos negócios jurídicos (artigo 113, §2º)?

Vale lembrar que não é recente a problematização em nosso direito a respeito da necessidade de se estabelecer um método científico para se eleger quais cânones de interpretação serão reputados adequados em detrimento de outros na definição do sentido da declaração negocial[7], a exemplo do que fazem os italianos estabelecendo uma ordem na aplicação dos métodos ditos subjetivos em um primeiro momento e posteriormente os objetivos[8] caso seja necessário.

Seguiremos o mesmo exemplo italiano, estabelecendo uma hierarquia entre os cânones de interpretação, ou nossa legislação sugere que sigamos por caminho diverso? Conquanto incerta a resposta, esta parece ser a grande questão a ser enfrentada — ou horizonte a ser perseguido — no direito privado brasileiro no tema da interpretação do negócio jurídico, sem prejuízo, evidentemente, de renovadas questões e problemas relativos aos cânones de interpretação que certamente aparecerão à medida que nossos tribunais se pronunciem a respeito do artigo 113 do CC/02.


[3] “O fato dos contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo contrato”.

[4] O método da concreção e a interpretação dos contratos: primeiras notas de uma leitura suscitada pelo código civil. In: Temas Relevantes do Direito Civil Contemporâneo: reflexões sobre os cincos anos do código civil estudos em homenagem ao Professor Renan Lotufo. Coord: Giovanni Ettore Nanni. São Paulo: Atlas, 2008, p. 499.

[5] “Deve-se, assim, dar interpretação às cláusulas contratuais avençadas para concluir que os pagamentos 'pro rata temporis' somente são devidos enquanto vigente o liame entre a autora apelante e os respectivos contratantes, não persistindo após a rescisão contratual (vide: artigo 113, inciso V, do Código Civil)”. (TJ-SP, Recurso de Apelação n.º 1000970-62.2020.8.26.0040, 18ª Câmara de Direito Privado, j. 13.12.2021, rel. Des. Henrique Rodriguero Clavisio, DJE 15.12.2021). V. ainda: “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA FUNDADA EM CONTRATO DE LOCAÇÃO COMERCIAL. PRELIMINAR DE VIOLAÇÃO DO JUIZ NATURAL. REJEIÇÃO. PRELIMINARES DE AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO E VÍCIO "EXTRA PETITA". INOCORRÊNCIA. OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL NAS CONDIÇÕES RECEBIDAS. SUCESSÃO DE CONTRATOS DE LOCAÇÃO. INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL DE ACORDO COM O COMPORTAMENTO DAS PARTES E OBSERVANDO A CONTINUIDADE DA RELAÇÃO LOCATÍCIA. CUMULAÇÃO MULTA COMPENSATÓRIA COM PERDAS E DANOS. IMPOSSIBILIDADE. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. LIMITAÇÃO DA CONDENAÇÃO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA”. (TJMG, Recurso de Apelação n.º 1.0000.21.088688-3/001, 20ª Câmara Cível, j. 27.10.2021, rel. Des. Lílian Maciel, DJe 28.10.2021).

[6] RODRIGUES JÚNIOR, Otávio; XAVIER LEONARDO, Rodrigo. A Interpretação dos Negócios Jurídicos na Lei da Liberdade Econômica. In: A Lei da Liberdade Econômica Anotada. Vol. 2. 2ª Edição. Coord: Alexandre Carneiro da Cunha, Roberto Picceli e Renata Maciel. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 226. 

[7] “É de ajuste à vida, e não de rígidos tipos, que trata a atividade hermenêutica. Bem por isso é que carecemos no mundo dos contratos de uma teoria da hermenêutica contratual ajustada à paradoxal realidade que conecta a despersonalização consequente à globalização com ‘a subjetividade como presença concreta’ – assim se indicando ‘o eu não independente de particularidades”. (Martins-Costa, Judith. O método da concreção e a interpretação dos contratos: primeiras notas de uma leitura suscitada pelo código civil, op.cit, p. 506).

[8] “L’istituzione di un rapporto di gerarchia tra i princìpi interpretativi in cui ha prevalenza l’interpretazione soggettiva su quella oggettiva è linea prevalente dell’ orientamento della giurisprudenza”. (ALPA, Guido; FONSI, Gianluca; RESTA, Giorgio. L’interpretazione del contratto: orientamenti e tecniche della giurisprudenza. Seconda Edizione. Milano: Giuffrè Editore, 2001, p. 116).

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