Opinião

Regulação jurídica de criptos e exchanges: Poder Público desembarca no novo mundo

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9 de junho de 2022, 20h22

Em exígua publicação de Yuval Harari, intitulada "Money", bastante ofuscada por suas outras obras de sucesso, o historiador se ocupa brevemente ao início em tratar sobre como nossos antepassados caçadores-coletores, e mesmo durante a Revolução Agrícola, não possuíam dinheiro propriamente como sistema de troca. Em realidade, a economia, bastante localizada, era baseada em um sistema de favores e obrigações (HARARI, 2018, p. 3-7). Gradualmente, sistemas monetários surgiram, mas inicialmente não na forma de moeda, sendo certo que diversas culturas prosperaram utilizando outros itens de valor, como búzios, amplamente aceitos por cerca de 4.000 anos por toda a África, sul e oeste da Ásia e Oceania (HARARI, 2018, p. 7-10).

Já há alguns séculos, porém, os sistemas monetários se baseiam em moedas e papel-moeda como sustentáculo, e, há meras décadas, foi massificada sua representação virtual em conta bancária, podendo ser os valores usufruídos por cartão ou transferências virtuais. Carregar dinheiro físico no bolso tornou-se um anacronismo. Não deveria gerar tanta espécie, portanto, a popularização de ativos virtuais na forma das chamadas criptomoedas ou mesmo NFTs (Non Fungible Tokens ou Tokens Não Fungíveis) em circulação. O suprassumo da desmaterialização dos sistemas de troca, completamente inverso às suas origens.

Idealizadas como ativos descentralizados (independentes de um intermediário financeiro ou de um ente estatal), os criptoativos, erigidos sob a tecnologia do blockchain, representam uma realidade incontornável para os aplicadores do direito face à popularização ascendente desses mercados nos últimos anos. Ademais, não faltam polêmicas que circundam o tema, desde questionamentos sobre o favorecimento à prática de crimes (especialmente lavagem de dinheiro), elevado grau de anonimato e eventual maior suscetibilidade dos usuários a fraudes ou ataques hackers.

Do ponto de vista tributário, desde 03/05/2019, há a Instrução Normativa 1.888 para regular o tema. No entanto, até pouco, o Brasil permaneceu inerte no dever de tratar juridicamente dos demais aspectos dessas relações, mormente no que diz respeito às chamadas "exchanges", consistentes em entes que custodiam e intermedeiam as negociações dos criptoativos dos indivíduos interessados em explorar esse mercado. O tema, porém, começa a tomar forma na mente do legislador, especialmente na forma do PL 4.401, uma amálgama de outros projetos sobre o tema que foi aprovado no Senado no dia 26/4/2022 e agora segue para apreciação pela Câmara dos Deputados. 

O projeto em questão disciplina os serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, fazendo-o mediante a definição de conceitos (artigo 3º), fixação de diretrizes (artigo 4º), regulação de sistema de licenciamento de exchanges (artigo 5º, tratadas como "prestadoras de serviços de ativos virtuais"), supervisão e fiscalização por entidade reguladora (artigo 7º) e pelo Banco Central (artigo 8º), e medidas de combate à lavagem de dinheiro e outras práticas ilícitas (artigos 11 e 12). Em seu artigo 5º, caput, define a exchange de criptoativos como a pessoa jurídica que executa, em nome de terceiros, pelo menos um dos serviços de ativos virtuais, tal como sua troca, transferência, custódia etc.

Essa normatização não só contribuirá para a segurança jurídica nas relações travadas ao redor de criptoativos, em favor da sociedade e dos usuários, como também inexoravelmente representará passo adicional a caminho de facilitar o processo de execução e penhora de criptoativos detidos por devedores. Já há alguns anos fala-se na obsolescência do sistema BacenJud. No que diz respeito especificamente à tentativa de penhora de criptoativos, considerando suas características singulares, restaria apenas enviar ofício para a entidade que custodia as criptomoedas mediante ordem judicial a fim de que ela aprisionasse o valor indicado, trajeto mais moroso e burocrático, incompatível com a própria natureza célere como essas transações operam.

Cientes de limitações da ferramenta a seu dispor, em dezembro/2019, o Conselho Nacional de Justiça, o Banco Central e a Procuradoria da Fazenda Nacional, firmaram acordo visando o desenvolvimento de novo sistema para substituir o BacenJud, de modo a aprimorar a forma de o Poder Judiciário transmitir suas ordens às instituições financeiras. Esse sistema, batizado de Sisbajud, entrou em vigor em setembro/2020, afastando seu antecessor com grandes promessas. Uma das expectativas era de que esse sistema futuramente pudesse atingir também outras formas de circulação de ativos virtuais, como operações envolvendo criptomoedas realizadas por exchanges. Essa meta não parecia exatamente viável até o momento, considerando que não são instituições financeiras e não há regulação jurídica própria para essas entidades. Nada obstante, o PL 4.401 pavimenta o caminho para ampliar esse escopo e otimizar as funcionalidades do Sisbajud na efetivação de penhoras determinadas pelo Judiciário, bem como identificação de eventuais recursos que o devedor possui na forma de criptoativos.

Assim, ficariam afastadas as principais preocupações de setores do Judiciário que resistem à penhora de criptomoedas, tal como a dificuldade em comprovar que o executado é titular de bens dessa natureza, ausência de regulação pelo Banco Central ou outra autoridade, e mesmo eventual dificuldade de gerenciamento da penhora desses ativos nos autos diante de sua natureza ímpar.

Deveras, o direito serve à sociedade e não a sociedade ao direito. Em outros termos, é dever do Poder Público se adaptar a novas realidades sociais, que não raras vezes surgem na forma de inovações tecnológicas, tornando institutos jurídicos clássicos maleáveis e úteis para a solução de novos problemas. Paulatinamente, as peças se encaixam em favor de viabilizar uma cooperação entre o Estado e as exchanges de criptoativos no sentido de proteger os interesses da sociedade nas mais diversas vertentes, inclusive na efetivação do processo de execução desses bens imateriais.

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