Opinião

Interpretação do negócio jurídico e o novo artigo 113 do CC/02 (Parte 3)

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8 de junho de 2022, 7h02

Continua parte 2

Tratamos na primeira parte deste estudo de alguns aspectos do processo legislativo que resultou na alteração de regras de interpretação do negócio jurídico constantes do Código Civil. Na segunda parte, continuamos a tratar das alterações, mas com o objetivo de destacar o que podem representar para o direito privado brasileiro sob seu viés histórico. Nesta penúltima e terceira parte, gostaríamos de propor algumas reflexões sobre parte das críticas de toda ordem dirigidas pela doutrina nestes três anos de vigência da Lei da Liberdade Econômica no que tocam as alterações no artigo 113 do CC/02.

Arriscamos afirmar que a Lei da Liberdade Econômica teve o condão de atuar como sopro despertador da doutrina nacional para o tema da interpretação do negócio jurídico que não vislumbrava tantos escritos a seu respeito em tão pouco tempo.

Entretanto, se hoje dispomos de relativa bibliografia sobre a interpretação do negócio jurídico, suprindo em parte um grande vazio existente em nossa doutrina nacional, tal produção se deve, em sua grande maioria, para apontar tormentas causadas pela Lei da Liberdade Econômica no aparente “tranquilo” tema da interpretação do negócio jurídico no Brasil.

Talvez a reduzida produção de trabalhos a respeito do tema (embora existam poucos mas excelentes), do sofrido descrédito pela doutrina nas últimas décadas[3] e consequente receptividade de suas lições pelo legislador, além da falta de organização da comunidade acadêmica sejam fatores a serem considerados aos tratarmos dos problemas existentes nos incisos do atual artigo 113 do CC/02. A possibilidade de maior participação da comunidade acadêmica durante o processo legislativo neste ponto certamente contribuiria para um melhor resultado como ocorreu para redação de outros dispositivos modificados pela Lei da Liberdade Econômica, muito embora seja incerto qual seria este, haja vista, repita-se, a ausência de uma forte construção doutrinária a respeito do tema.

As críticas ao artigo 113 podem ser agrupadas segundo duas ordens: umas mais voltadas a aspectos formais e outras voltas ao mérito propriamente dito dos dispositivos.

Quanto às primeiras podem ser destacadas as seguintes: (i) o legislador ao se valer de termos estranhos a linguagem do código (racionalidade econômica das partes — inciso V) incutiria insegurança na comunidade jurídica quanto ao seu significado, ao contrário do ideal de se conferir maior segurança conforme enunciado na exposição de motivos da Lei; (ii) diante da referência do inciso II ao comportamento posterior à celebração do negócio jurídico, estaria excluída a observação dos comportamentos antecedentes à conclusão do negócio?; (iii) as inserções, no geral, além de se revelarem defeituosas, não guardam caráter inovador, já que as regras estabelecidas nos incisos do artigo 113 já seriam de conhecimento da doutrina e da jurisprudência; (iv) o inciso III é dispensável haja vista a boa-fé já estar referida no caput do artigo, bem como há indevida repetição dos "usos" no caput e no inciso II; (v) a incorreta associação das práticas como comportamento incorporado pelo mercado quando na verdade estão reduzidas ao delimitado âmbito das condutas próprias dos participantes de um negócio (inciso II); (vi) existir ou não diferença entre preenchimento de lacunas e integração dos negócio jurídicos, já que se fala em autorização para que os contratantes estabeleçam regras de interpretação, preenchimento de lacunas e de integração dos negócio jurídicos (§2º); (vii) o legislador perdeu a oportunidade de inserir outros cânones interpretativos na lei.

Além de aludidos vícios, o legislador teria incidido em equívocos mais graves ao (i) fazer alusão a "usos, costumes" diferentemente da conhecida expressão "usos e costumes" (corresponder a usos, costumes e práticas do mercado, inciso II), pois, ao assim proceder, não mais se estaria falando de regras de interpretação, mas de fontes de direito (costume regra)[4]; (ii) o inciso IV (for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável) inovaria o cânone da interpretativo contra proferentem já que aqui, diferentemente do artigo 423 que trata de contrato concluído por adesão, não há ambiguidade ou contradição, nem há aderência aos termos do contrato por uma das partes de modo a se conferir um benefício a quem não redigiu o dispositivo contratual, somado ao problema de se descobrir quem teria redigido a suposta cláusula problemática; (iii) o inciso V, ao dispor que a interpretação deve atribuir o sentido que corresponder a qual "seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida" contraria diretamente o artigo 112 do CC/02. Isso ocorreria pois diferentemente da intenção comum dos contratantes, o inciso V remeteria o intérprete a uma vontade presumida segundo um juízo de razoabilidade. Ainda a respeito deste inciso, haveria uma mistura de cânones interpretativos, como a interpretação sistemática e a racionalidade econômica, este último assumindo diferentes denominações na doutrina conforme veremos; (iv) o legislador teria perdido a oportunidade de fornecer um método ao intérprete de como se utilizar dos cânones interpretativos.

As críticas apresentadas promoverem mais do que o necessário debate sobre como os novos incisos poderão ser compreendidos, pavimentando os primeiros trechos do caminho das futuras orientações que certamente virão a se formar em razão das transformações promovidas no artigo 113/CC. Nota-se  também o despertar da doutrina que expôs dissensos antigos sobre o tema que, repita-se, pela diminuta produção de trabalhos sobre o tema, não permitiu vicejar posicionamentos capazes de melhor orientar o legislador na formatação do artigo 113/CC02.

Nesta ordem de ideias, embora difundida na comunidade acadêmica a crítica de que o Código Civil foi avaro na positivação de regras de interpretação, a verdade é que pouco evoluiu a doutrina a respeito de se promover debates sobre as consequências dessa ausência de positivação para a ciência do direito e para a orientação da jurisprudência nacional; pouco se lê sobre existir dissenso ou consenso na doutrina sobre a importância de se promover a positivação ou não de outros cânones interpretativos na lei civil, e de quais, dentre os diversos trabalhados pela doutrina e aplicados pela jurisprudência, deveriam ser positivados. Sintomático do que aqui se afirma é a raridade de julgados que bem trabalham a plêiade de cânones interpretativos largamente conhecidos nos bancos acadêmicos, limitando-se no mais das vezes à interpretação literal ou a invocar, de maneira pouco trabalhada, a boa-fé na sua função hermenêutica.

Esclarece-se desde logo que não se está a criticar o trabalho desenvolvido até aqui — dispomos de excelentes trabalhos doutrinários e alguns bons julgados sobre as temáticas presentes nos incisos do artigo 113/CC02 — , mas a se evidenciar traços presentes no panorama do estudo da temática da interpretação do negócio jurídico em nosso país que denotam a ausência de consensos, dissensos ou fortes orientações de modo a influenciar o nosso legislador a ter, por exemplo, realizado a inclusão de outros critérios hermenêuticos nos incisos do artigo 113 e naqueles que o fez, ter agido com maior rigor técnico. Essas dificuldades passam longe de se limitar, é verdade, ao tema da interpretação do negócio jurídico.

O artigo 113 do CC/02 é, em certa medida, fruto de um cenário carente de fortes orientações científicas, de um ambiente acadêmico desaquecido e interessado no tema, como demonstrado na segunda parte dessa análise, na esteira do que se passou ao longo da vigência do Código Civil de 1916. São indícios do que aqui se percebe hoje a própria ausência de posicionamentos concordes da doutrina sobre a interpretação dos incisos do artigo 113.

Não se está a conceder, entretanto, um salvo conduto ao legislador pelos equívocos que, como bem tem anotado a doutrina, cometeu ao promover algumas das inserções no artigo 113 CC/02, mas tentar refletir sobre fatores que possam ter contribuído para o que veio a ser positivado[5].

Embora este espaço não nos permita tratar de todas as críticas lançadas ao artigo 113 CC/02, gostaríamos de nos ater aos incisos IV e V pois são os que mais sofreram críticas até o momento.

O Inciso IV se assemelha ao artigo 423 do CC/02 que dispõe que nos contratos concluídos por adesão que contiverem cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente. Trata-se de inciso que incorpora o conhecido cânone da interpretativo contra stipulatorem "que é impositivo de um ônus de falar claro (clare loqui) àquele que está na posição de predispor as cláusulas contratuais"[6], em linha do pretendido pelo legislador de dar maior concretude à operacionalização da boa-fé como critério hermenêutico.

Não nos parece existir verdadeiramente um problema quanto à esta regra, mas sim de identificação de condições para a sua aplicação, pois é muito comum que entre os contratantes haja a troca de minutas do contrato, ambas as partes contribuindo para a redação de um mesmo dispositivo, hipótese que a aplicação desta regra estará descartada. O legislador estava ciente desta realidade, e por isso inseriu na parte final do dispositivo a expressão "se identificável".

Já o inciso V desperta maiores críticas. Em nosso entender, mais por conta dos termos e da forma com que a sua redação veio a se cristalizar, do que propriamente pelos critérios relacionados pelo legislador que encontram referência na melhor doutrina e alguma aplicação pela jurisprudência.

A expressão "racionalidade econômica das partes" é, de fato, estranha ao Código Civil, podendo gerar alguma incompreensão numa leitura mais apressada, mas é compreensível a sua menção pelo legislador quando entendido que aqui se está fazendo referência à economia do contrato. Referida expressão deve ser entendida, conforme lição da professora Judith Martins-Costa, com apoio em Larenz, como a "relação — estabelecida por ambas as declarações de vontade negociais —, entre os riscos e as vantagens, os ganhos e as perdas que cada contrato bilateral traduz"[7]. Trata-se do conhecido cânone hermenêutico da finalidade concreta do negócio jurídico que auxilia o intérprete a compreender os termos do contrato conformando-o à utilidade e finalidade (escopo) do negócio jurídico[8].

 Já quando o legislador faz menção às "demais disposições do negócio", também está se referido ao conhecido cânone da interpretação sistemática, que remete ao interprete a encontrar o sentido da disposição problemática em conformidade às demais disposições do negócio jurídico firmado, e não de forma isolada ou em "tiras", regra que já se encontrava prevista no artigo 131.2 do Código Comercial de 1850.

Por fim, a primeira parte do inciso V (corresponder a qual seria a razoável negociação das partes) não nos parece contrariar o artigo 112, remetendo o intérprete a uma intenção fictícia de contraentes razoáveis diferente da intenção comum consubstanciada efetivamente em sua declaração. Fica descartada essa visão pois o legislador, logo na segunda parte do inciso remete o intérprete às disposições do contrato e, obviamente, à racionalidade econômica que dele possa ser extraída. O sentido da expressão "razoável negociação" não deve, portanto, ser buscado em uma racionalidade externa ao negócio jurídico.

 Assim, a menção à "razoável negociação" deve ser entendida como o que os contratantes legitimamente esperam obter com aquela disposição contratual, cujo sentido deve estar conformado também com uma leitura sistemática do contrato e com a economia nele estabelecida (riscos, perdas, ganhos). Nesse sentido é a brilhante lição da professora Judith Martins-Costa[9] cujo trecho abaixo foi escrito antes das alterações promovidas no artigo 113, mas que nos parece solucionar com perfeição a problemática estabelecida e esclarecer o sentido do inciso V:

"O regulamento de interesses há de ser visto, portanto, não como uma operação isolada, conectada apenas à 'intenção consubstanciada na declaração', mas, igualmente, como a expressão de um planejamento em que assumem relevância as vantagens que os contraentes legitimamente esperam obter, bem como os riscos a que estão sujeitos em vista da obtenção do fim esperado. À finalidade (fim; escopo do negócio) conecta-se à utilidade que, em vista do negócio, seria lícito às partes esperar."

Esta parece ser uma possível e razoável leitura do inciso V do artigo 113 pois, coerente com a ideologia diretiva da Lei da Liberdade Econômica, mas também em linha com longa orientação doutrinária que reconhece a finalidade econômica do negócio jurídico como cânone hermenêutico.

Na quarta e última parte deste estudo apresentaremos as críticas positivas direcionadas pela doutrina à nova configuração do artigo 113 do CC/02, os efeitos que já se têm feito sentir na jurisprudência de nossos tribunais, e quais desafios a doutrina tem pela frente diante desta significativa alteração legislativa na temática do estudo da interpretação do negócio jurídico.


[3] Sobre  a importância da contribuição da doutrina e seu descrédito na atualidade, ver, com proveito: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo). Revista dos Tribunais. Vol. 891/2010. Jan/2010;

[4] FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. A Interpretação Contratual e sua sistemática no Código Civil de 2002 após o advento da Lei 13.874/2019. In: A evolução do Direito Empresarial 18 anos do Código Civil. Obrigações e contratos. Vol. 2. São Paulo: Quartier Latin, 2021, 407.

[5] “Nem tudo foi obtido, mas os avanços são inegáveis. O texto poderia ser melhor, mais sistemático, com mais concretude aqui ou acolá, mas isso seria demais exigir para uma propositura com a amplitude dessa e que recebeu, como dito, três centenas de emendas na sua tramitação congressual”. Assim consta da introdução da obra Comentários à Lei da Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019. Coord: Floriano Peixoto Marques Neto, Otavio Luis Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.11.

[6] MARTINS-COSTA. Judith. A boa-fé no direito privado: critério para a sua aplicação.2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p.527.

[7] Op. cit, p. 507.

[8] CRESCENZO MARINO, Francisco Paulo de. Interpretação do negócio jurídico. Interpretação do Negócio Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 121.

[9] Op.cit, p. 507.

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