Opinião

Seguro garantia para obras públicas pronto para avançar

Autor

  • Wesley Bento

    é advogado sócio do escritório Bento Muniz procurador do Distrito Federal pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em parceria Público-Privada e Concessões (Fesp-SP e FSE) e mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

7 de junho de 2022, 15h03

Assim como em diversos outros pontos tratados na antiga Lei 8.666/93, não ocorreu completa alteração no panorama de garantias na nova Lei 14.133/21, mas se verificaram avanços. Não há propriamente mudanças nas modalidades de garantia, permanecendo a caução em dinheiro ou título da dívida pública, seguro-garantia e fiança bancária. De regra, o limite permanece em 5%, mas pode  justificadamente (complexidade técnica e riscos envolvidos)  ser majorado a até 10%, e não necessariamente em obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o que não se dava sob a batuta da 8.666/93.

A mais relevante novidade, porém, é o impulso conferido pela lei à figura do seguro-garantia, que deve assegurar o fiel cumprimento das obrigações do contratado perante a Administração, inclusive as multas, os prejuízos e as indenizações decorrentes de inadimplemento. E a inovação não está na circunstância de seu prazo de vigência ser igual ou superior ao do contrato e que deverá continuar em vigor mesmo que o contratado deixe de pagar o prêmio à seguradora nas datas convencionadas. A pedra de toque está na autorização para que em obras e serviços de engenharia, exija-se a garantia na forma de seguro-garantia de até 30% do valor do contrato e, ainda, do tipo performance bond, com a previsão de que a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado possa assumir a execução e concluir o objeto do contrato (step in).

O performance bond é o seguro-garantia que assegura o cumprimento de um determinado contrato na forma em que foi pactuado, já que se houver falha por parte do contratado, a seguradora assume a execução do ajuste. Como a seguradora poderá ter que assumir a obra, ela terá interesse em fiscalizar pari passu a atuação do contratado/tomador do seguro e por isso a lei tratou de lhe dotar da condição de interveniente anuente, com direito de ter livre acesso às instalações em que for executado o contrato; acompanhar sua execução; ter acesso a auditoria técnica e contábil; e requerer esclarecimentos ao responsável técnico pela obra ou pelo fornecimento.

Em caso de inadimplemento, a seguradora passará a ocupar a posição contratual do tomador (step in) e terá que prosseguir na execução do objeto contratual, ainda que, naturalmente obras de engenharia não componha suas atividades regulares, nem se pretenda que se torne uma empreiteira. Diante disso, a lei permitiu a subcontratação parcial ou total do objeto, rompendo com o dogma da vedação à subcontratação total que vigeu incólume na Lei nº 8.666/93. Ela será então a gestora da execução do contrato, responsabilizando-se perante a Administração, mas não a artífice da encomenda.

Por consequência, a seguradora terá o empenho dos pagamentos emitido em seu próprio nome, bastando ter regularidade fiscal, ou seja, sem ter que comprovar requisitos de qualificação técnica e econômico-financeira semelhantes aos exigidos do segurado na licitação, o que seria mesmo praticamente impossível.

Ainda que haja a obrigação de a seguradora assumir o contrato e concluir o objeto, a lei lhe faculta se exonerar dessa obrigação, como é próprio do performance bond, mediante o pagamento do valor total segurado indicado na apólice, coerentemente com a limitação de responsabilidade do segurador prevista no artigo 781 do Código Civil. Ou seja, se diante do caso concreto, a seguradora entender que é mais vantajoso o pagamento do valor segurado  pode ocorrer se o contrato tiver peculiaridades tornando-o mais oneroso que a indenização, ou ainda se a seguradora contar com contragarantias que lhe permitam acionar e receber rapidamente o valor do tomador — estará livre de executar o objeto contratual.

A vantagem mais perceptível do seguro-garantia com essa configuração é a profunda mitigação do risco da obra ser abandonada, que é uma infeliz realidade em diversos contratos pelo país, ainda que a paralisação de obras tenha também causas diversas, muitas delas relacionadas com a Administração e que o performance bond não poderá resolver. Mas há vantagens adicionais decorrentes da fiscalização exercida pela seguradora sobre o contrato, como a maior dificuldade de se operar casos de corrupção e a redução de entrega de obras defeituosas.

Porém, nem tudo são flores pelo caminho do seguro-garantia. Essa possibilidade do edital escolher a modalidade de garantia e dela poder chegar a 30% do valor contratual representa um desafio também para as seguradoras, pois terão que aprimorar os produtos oferecidos no mercado e lidar com questões que certamente influenciarão as taxas cobradas e a maior ou menor oferta dessa modalidade de seguro, como aumento na complexidade dos contratos, maior avaliação do risco e capacidade do tomador de honrar as obrigações contratuais assumidas perante o segurado, novas relações com o mercado ressegurador, estrutura de engenharia para fiscalização da execução contratual, dentre outras. Afinal, por ser um contrato de seguro, também está submetido aos princípios do mutualismo, da solidariedade e da boa-fé, de modo que sua estrutura deva ser financeiramente sustentável.

Como nem todas as empresas potencialmente tomadoras poderão contar com o acesso a contratos de seguro dessa magnitude em condições vantajosas, licitações com essa nota de obrigação adicional podem ter menos participantes, reduzindo a competitividade do certame. O custo da contratação do seguro, por sua vez, será revertido para a proposta da empresa vencedora e elevará o preço final pago pela Administração.

Deverá ser preocupação da Administração, na fase interna da licitação, ainda, aquilatar meios de aferir o perfil das seguradoras passíveis de oferecimento do seguro-garantia, especialmente em obras de grande vulto, abrindo oportunidade para a reflexão sobre a verificação das notas de crédito (rating) das seguradoras contratadas.

Para melhorar o ambiente regulatório sobre a matéria, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) editou a circular 662 que entrou em vigor no último dia 2 de maio (obrigatória a partir de janeiro de 2023), tornando mais detalhada a regulamentação e aumentando a liberdade contratual, a transparência e a aderência das normas à 14.133/21.

A norma definiu Seguro Garantia: Segurado  Setor Público como aquele cujo objeto principal está sujeito ao regime jurídico de direito público e, mesmo não tendo disciplinado especificamente essa modalidade, admitiu a incidência de legislação específica nos contratos, conferindo segurança às negociações que envolvam seguros vinculados a contratos administrativos, também quando tratou, por exemplo, do prazo de vigência da apólice, a qual se encerra  em regra  com o prazo de vigência da própria obrigação, mas que a Lei 14.133/21 previu possibilidade de impor prazo superior.

A circular também incorporou a regra do artigo 97, II da Lei de Licitações no sentido de que o seguro continuará em vigor mesmo se o tomador não tiver pago o prêmio nas datas convencionadas, além de prever que o tomador não poderá se opor à manutenção da cobertura, exceto se ocorrer a substituição da apólice por outra garantia aceita pelo segurado. No mesmo caminho, deixou claro que atos exclusivos do tomador, da seguradora ou de ambos não poderão gerar perdas ou prejuízos ao segurado; que a relação entre a seguradora e o tomador não deve prejudicar o tratamento adequado do segurado, devendo ficar claro para este qualquer conflito de interesse decorrente desta relação; e que a ocorrência de eventuais descasamentos contratuais entre as operações de seguro e resseguro contratadas não justifica a negativa de sinistro ou a redução ou perda de direitos do segurado.

Essa regulamentação também atenua a ineficiência da Administração na gestão dos contratos administrativos ao prescrever que a falta de comunicação da seguradora sobre alteração no objeto contratual somente gerará a perda do direito do segurado se agravar o risco e tiver relação com o sinistro ou ficar comprovado que o segurado silenciou de má-fé.

Outro ponto que merece ser sopesado para previsão nos contratos administrativos é a permissão de que se possibilite ou obrigue a seguradora a realizar acompanhamento e/ou monitoramento do objeto principal  reforçando a fiscalização já feita pelo Poder Público , a atuar como mediadora da inadimplência ou de eventual conflito entre segurado e tomador  facilitando o diálogo entre o público e o privado quando surgirem problemas na execução  e prestar apoio e assistência ao tomador.

Como previsto, a circular trata a indenização a ser devida pela seguradora ao segurado sob duas formas distintas: pagamento em dinheiro dos prejuízos, multas e demais valores devidos pelo tomador; ou execução da própria obrigação garantida para concluí-la sob sua integral responsabilidade, o que é o intento principal da nova legislação geral de licitações.

Portanto, embora o regulamento não seja exclusivo dos contratos de seguro garantia decorrentes de contratos administrativos, a feição regulatória conferida pela Susep se adaptou aos anseios da Lei nº 14.133/2021, conferindo padronização mínima nos contratos e aumentando o grau segurança do Poder Público na relação, o que conspira a favor de um aumento substancial na exigência dessa modalidade de garantia nos contratos administrativos, especialmente de obras públicas, a partir de 2023 com a vigência exclusiva da nova Lei de Licitações.

Autores

  • é advogado, procurador do Distrito Federal, sócio do escritório Bento Muniz Advocacia, pós-graduado pela PUC-SP e MBA em PPP e Concessões pela Fesp-SP e presidente do Conselho de Administração da DF Gestão de Ativos.

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