Opinião

Notas sobre a PEC que defende mensalidade em universidades públicas

Autor

  • Ian Fernandes de Castilhos

    é advogado especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e em Advocacia Tributária pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi) e mestrando em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

7 de junho de 2022, 13h12

"O gasto público nessas universidades é desigual e favorece os mais ricos. Não seria correto que toda a sociedade financie o estudo dos jovens de classes mais altas [1]." Em torno dessa afirmação, o deputado General Peternelli defende a cobrança de mensalidade para os mais ricos em universidades públicas.

A Proposta de Emenda Constitucional nº 206/2019 altera a redação do artigo 206, IV e acrescenta §3º ao artigo. 207 da Constituição para criar uma exceção à gratuidade do ensino público superior. Se a proposta for aprovada, a gratuidade se manterá apenas para os que forem considerados hipossuficientes segundo critérios a serem formulados pelo órgão ministerial do Poder Executivo.

De acordo com a justificação da proposta, ela visa resolver o problema da precariedade das universidades públicas. Para sustentar a ideia, o deputado Peternelli diz haver um estudo do Banco Mundial demonstrando que a cobrança de mensalidade nas universidades públicas brasileiras seria capaz de diminuir as desigualdades sociais. Afirma ainda que um estudo da OCDE analisou 29 países dos quais 20 cobravam as referidas mensalidades. Por fim, que a gratuidade ampla e irrestrita aumentava a desigualdade.

Os argumentos parecem fazer sentido. Cobrar uma mensalidade para os mais ricos seria uma forma de concretizar a capacidade contributiva ao mesmo tempo que resolveria o problema da falta de verba das universidades públicas. O argumento é bem ornamentado. Parece ouro, brilha como ouro, tem peso de ouro, mas não o é. Muito além do que ele sustenta, a sua força está na omissão dos detalhes.

Neste ambiente, é importante lançar luzes à proposta conforme a doutrina (Gesetzgebungslehre) inaugurada por Peter Noll. Mais especificamente, se faz necessário o uso do procedimento metódico formulado pelo autor em sua principal obra [2] e que consiste nas seguintes partes:

1) Estabelecendo do Problema a ser superado. Esta etapa possui um aspecto analítico (descrição da realidade) e um aspecto normativo (qualificar o estado de coisas como indesejável).
2) Proposta de objetivo, entendido como estado de coisas desejado.
3) A proposta de meios para alcançar o objetivo. Esta etapa também possui um aspecto analítico, referente a verdade em relação aos fatos subjacentes e previstos; e um aspecto normativo, com a questão de se os objetivos apresentados e os meios utilizados representam uma melhoria geral do estado de coisas dado. 
4) A avaliação posterior.
5) A correção das regulamentações imperfeitas.

Não é possível realizar a análise da avaliação posterior e da forma que a regulamentação imperfeita foi corrigida. Isso por que, é condição de possibilidade que a legislação já tenha sido aprovada e produzido efeitos durante um período temporal que permita a avaliação retroativa. Entretanto, os três primeiros pontos já são suficientes para rechaçar a proposta.

Segundo Noll, o legislador deve conhecer os fatos que quer influenciar e suas causas da maneira mais precisa possível. Ele não deve contentar-se com conjecturas onde ele possa obter conhecimento [3]. Conhecer a causa do problema a ser resolvido é um ponto essencial para a adequação da decisão legislativa.

O problema é expresso na proposta como a precariedade do ensino superior. Baseado no método de Noll, o legislador deve questionar:  qual o motivo da precarização do ensino público? A primeira resposta possível está na vertiginosa queda no investimento público em educação nos últimos anos [4].

É possível afirmar que a própria causa do problema permite formular em alguma medida os meios necessários para sua resolução. A precarização do ensino público pode sim ser resolvida com o aumento do investimento, o que não necessariamente leva a constatação de uma falta arrecadação que justificaria a cobrança da mensalidade.  A causa do problema não é a falta de recursos por parte do estado, mas uma questão de priorização da destinação destes recursos.

Ora, no ano de 2021 foram gastos R$ 118,4 bilhões em educação pública, enquanto para o pagamento da dívida pública foram gastos R$ 448.391 bilhões [5]. De 2020 para 2021 os valores destinados a dívida pública cresceram cerca de R$ 136 bilhões, ou seja, só este acréscimo já é maior que o gasto em educação.

Deste modo, erra o legislador ao formular o problema, por não indicarem a causa e erra na escolha do meio, por não demonstração a adequação/eficiência do mesmo. Para que o meio escolhido fosse considerado adequado/eficaz deveria ter sido demonstrado que ele é apto a efetivar a finalidade.

Neste ambiente, deveria estar justificado, no mínimo, os seguintes pontos: a) descrever quais são as características do que foi chamado de precarização; se a falta de infraestrutura, de recursos humanos, etc.; b) estimar o quanto de recurso é necessário para resolver o problema da precarização; c) estimar o quanto se arrecadaria a mais com a taxa proposta; d) demonstrar que o aumento da arrecadação é o suficiente ou próximo ao valor necessário para resolver o problema da precarização;  e) demonstrar que este é o meio menos gravoso para atingir a finalidade perquirida.

Apenas a partir destes critérios objetivos devidamente justificados uma proposta de tal magnitude poderia ser aprovada. Não é necessário muito esforço para verificar a que a proposta não passaria pelo crivo da Doutrina da Legislação. Este é um ponto chave que demonstra porque precisamos dela no Brasil. Muitas propostas recentes que sufocaram os Direitos Sociais, tais quais a PEC do Teto de Gastos, a reforma trabalhista, entre outras, não seriam aprovadas se houvesse uma doutrina plenamente consolidada e institucionalizada.

Entretanto, a Doutrina da Legislação não é uma panaceia. Existem também questões políticas, sociais e históricas que devem ser levadas em consideração. Muito embora não seja a solução para todos os problemas, ela oferece um filtro de racionalidade e a estipulação de critérios objetivos para que um processo legislativo passe posteriormente para a análise do mérito político.


[1] BRASIL, Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 206/2019. Disponível aquivisualizado em 28/05/2022.

[2] NOLL, Peter. Gesetezgebungslehre. Hamburgo: Rowohlt, 1973. P. 73-160

[3] NOLL, Peter. Gesetezgebungslehre. Hamburgo: Rowohlt, 1973. P. 86.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e em Advocacia Tributária pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi) e mestrando em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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