Opinião

INPI e marcas de cannabis: efeitos de uma nova cultura jurídica

Autor

  • Daniel Gonçalves Delatorre

    é advogado sócio de Denis Borges Barbosa Advogados mestrando em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e especialista em Direito da Propriedade Intelectual.

6 de junho de 2022, 15h06

Não é de hoje a discussão, no âmbito do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), sobre a registrabilidade de signos distintivos que possuam em sua composição elementos, sejam eles nominativos ou figurativos, que venham fazer alusão à polêmica cannabis e às suas variações linguísticas.

Aqui não se pretende fazer qualquer juízo de valor com relação à moralidade do uso da cannabis, ou mesmo suas formas de uso. O que se pretende evidenciar, em verdade, é a falta de uniformidade das decisões do INPI com relação a questão e sua mudança de postura ao longo dos anos. Como se sabe, o comando constitucional da isonomia (artigo 5º, caput) é de observância mandatória aos entes federativos e às autarquias.

O debate sobre a possibilidade ou não de registro de sinais que, de algum modo, façam referência à cannabis ou às suas variações têm como fato gerador o inciso III do artigo 124 da Lei de Propriedade Industrial. Segundo o mencionado dispositivo, não são registráveis como marca expressão, figura, desenho ou qualquer outro sinal contrário à moral e aos bons costumes [ponto central da problemática] ou que ofenda a honra ou imagem de pessoas ou atente contra liberdade de consciência, crença, culto religioso ou ideia e sentimento dignos de respeito e veneração.

Pois bem, da leitura da mencionada previsão legal, fica evidente se tratar de um dispositivo que permite ampla, extensiva e subjetiva interpretação à luz do caso concreto. É aí que está o epicentro das controvérsias envolvendo pedidos de registro de marcas que fazem referência à maconha e a compreensão da Diretoria de Marcas (Dirma) e da Presidência do INPI.

O longo histórico de indeferimentos de tais signos distintivos pelo INPI sempre foi uma assombração para os titulares. Até mesmo para aqueles que desejavam ou desejam assinalar produtos ou serviços sem qualquer relação direta com a erva. A simples menção, seja via elemento nominativo ou figurativo, já era suficiente para que o instituto indeferisse o pedido sob o fundamento de que o mesmo esbarrava no óbice do inciso III do artigo 124 da LPI, mais precisamente: uma violação à moral e aos bons costumes.

Ou seja, para o INPI, pouco importava  e, em alguns poucos casos, ainda hoje, pouco importa  a designação da marca, seja destinada ou não a produtos ou serviços relacionado à cannabis e às suas derivações. A mera menção ou alusão tinha como destino certo o indeferimento.

A exemplo disso, temos o recente pedido de registro de marca n. 501606911 (IRN nº 1606911), que busca a proteção do signo nominativo 'Twisted Hemp', na Classe 34, depositada via Protocolo de Madri pela sociedade empresária estadunidense P&L Sales Group, Inc.. O mencionado pedido foi indeferido pela Diretoria de Marcas [Dirma] do INPI por reproduzir o termo "Hemp" (que pode ser traduzido como cânhamo, uma variedade de cannabis), que na interpretação da Autarquia, o mesmo seria contrário à moral e aos bons costumes, nos moldes do polêmico e amplo inciso III do artigo 124 da LPI.

Pouco importa, ainda hoje, para alguns analistas de marcas do INPI o ramo mercadológico da empresa depositante, a especificação do produto ou serviço e o que será assinalado pelo signo distintivo: falou em maconha, está indeferido!

Vide os casos dos pedidos de registro de marcas para vestuário e tecido, 'HEMP4FASHION' (nº 921982119), 'Brazilian Hemp' (nº 922006741) e TheHemp Company (nº 908082029). Os dois primeiros pedidos mencionados, além de terem em sua composição de elementos nominativos o termo "HEMP" (cânhamo), tinham também presentes em seus logotipos a folha da cannabis. Do mesmo modo, o pedido de registro de nº 908082029, 'TheHemp Company', que apresentava apenas o termo "HEMP", seguiu pelo mesmo caminho: o indeferimento, que foi mantido em grau de recurso administrativo.

Repare: tecidos feitos de fibra de cânhamo já estão em circulação no Brasil há anos, nunca houve uma proibição ao uso das mencionadas fibras. A exemplo, titulares de marcas como Greenco, Ginger, Weedog e até Reserva já fazem uso e comercializam vestuário e acessórios feitos com fibra de cânhamo no país, mas não podem ter a proteção de um sinal distintivo que possua "cânhamo" como elemento [1].

O Judiciário Brasileiro teve poucas oportunidades para se pronunciar sobre o tema até agora. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por exemplo, quando pode analisar — Processo de nº 5030178-42.2018.4.02.5101  a registrabilidade dos signos distintivos "Brazilian Cannabis" e "Brazillian Marihuana" à luz do inciso III do artigo 124 da LPI, o deixou de fazer, mantendo o indeferimento por considerá-los signos genéricos, de baixa distintividade (artigo 124, VI da LPI) [2].

Em mais uma oportunidade a Justiça Federal poderá analisar a questão envolvendo o inciso III do artigo 124 da LPI e a registrabilidade de signos ligados à cannabis. Perante à JFDF, a 4evinte Tabacaria Contemporanea Eireli  Me propôs ação de nulidade [3] em face do INPI e da União, questionando o ato administrativo que indeferiu o pedido de registro de marca '4evinte' (alusão ao horário 16:20h, mundialmente conhecido como o horário oficial para o uso da erva e também a um código policial referente ao uso da droga).

O Juiz Federal Substituto da 3ª Vara Federal/SJDF, Bruno Anderson Santos da Silva, julgou improcedente à pretensão da 4evinte. Segundo o magistrado, andou bem "a decisão do INPI ao negar o registro da marca da parte autora, por violar a moral e bons costumes". A 4evinte Tabacaria interpôs recurso de apelação e aguarda julgamento da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Apesar disso, o indeferimento certo de marcas relativas à cannabis pelo INPI é algo que talvez tenha ficado para trás, principalmente depois da autorização da Anvisa para importação de produtos medicinais à base de canabidiol, em 2019.

Essa mudança de postura do INPI, que vinha acontecendo de forma bem vagarosa e sem uniformidade, aparentemente sofreu um impulso, seja por mudança de perspectiva social, novas posturas políticas sobre o tema, interesses econômicos envolvidos, relevância medicinal e/ou a nova posição adotada por autoridades respeitadas (Anvisa).

O que se pode compreender dessa mudança de interpretação do inciso III do artigo 124 da LPI pelo INPI — com relação às marcas de cannabis —, é que a realidade social e o ordenamento jurídico se relacionam[4], ou melhor, coexistem, a partir do momento que qualquer modificação da realidade social importa para o direito. E, por conta disso, deve haver uma adequação da norma à esta nova realidade social, conforme preceitua Pietro Perlingieri.

Independente da razão e dos motivos, fato é: o INPI tem cada vez mais entendido que marcas que façam referência à cannabis não esbarram no óbice do inciso III do artigo 124 da LPI. A título de exemplo, além de marcas mais conhecidas como 'Planet Hemp' (nº 820243361), banda brasileira de rap rock criada por Marcelo D2 e Skunk na década de 90, por uma simples busca no INPI pelos termos 'hemp' (Ex: 'Santo Hemp' | nº 922625824), 'cannabis' (Ex: 'CRIA CANNABIS MEDICINAL' | nº 922918473) e 'cânhamo' (Ex: 'Sociedade Brasileira do Cânhamo Industrial' | nº 918450551) é possível verificar essa mudança de postura e cultura jurídica do INPI.

O inciso III do artigo 124 da LPI permanece com sua redação intacta, o que se muda é a compreensão social e jurídica relativa à cannabis frente àquilo que é, ou não, aceito moralmente.


[1] "O registro de marcas resulta na apropriação de uma expressão ou símbolo visual, extraindo do universo das potencialidades semiológicas um determinando completo significativo, cujo uso torna-se exclusivo ao titular para determinados contextos". BARBOSA, Denis Borges. A proteção jurídica das marcas: uma perspectiva semiológica. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. p. 5

[2] "As marcas postuladas pela apelante, 'BRAZILIAN CANNABIS' e 'BRAZILIAN MARIHUANA' não detêm nenhuma distintividade, o que é reforçado pelo fato de se apresentarem apenas na forma nominativa. Com efeito, os termos isolados 'CANNABIS', 'MARIHUANA' e 'BRAZILIAN' designam características ('maconha' e 'brasileira') dos produtos que almejam assinalar, que são, em síntese, cigarros sem tabaco e ervas, para fins medicinais, derivados de cannabis". TRF2, AC nº 5030178-42.2018.4.02.5101, Des. Rel. ANTONIO IVAN ATHIE, 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Julgamento: 01.07.2020

[3] TRF1, AC nº 1017085-69.2018.4.01.3400, desembargadora relatora Daniele Maranhão Costa, 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

[4]  "Toda transformação da realidade social interesse à ciência do direito, já que reage sobre a realidade normativa". PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 170

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