Opinião

Interpretação do negócio jurídico e o novo artigo 113 do CC/02 (Parte 2)

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6 de junho de 2022, 7h04

Continua parte 1

Tratamos na primeira parte deste estudo de alguns aspectos do processo legislativo que resultou na alteração de regras de interpretação do negócio jurídico constantes do Código Civil. Nesta segunda parte continuaremos a tratar destas alterações, ainda que de forma menos aprofundada, com o objetivo de destacar o que podem representar para o direito privado brasileiro sob seu viés histórico.

O histórico das regras de interpretação do negócio jurídico constantes da legislação civil brasileira pode ser abordado sob diferentes perspectivas metodológicas. Adotando-se um critério temporal, pode-se delimitar seu estudo a partir da chegada dos portugueses em 1500, tratando do direito do Brasil colônia, oficialmente sob o domínio do direito português; do direito aplicado no Brasil pós independência em 1822; do Brasil República, ou efetivamente a partir de nossas codificações. Não é o que se pretende enfatizar neste trabalho (tampouco seria possível) embora tema interessantíssimo, e que é tratado em bela obra de autoria de Guilherme Nitschke intitulada "Lacunas Contratuais e Interpretação"[3].

Pretende-se, de forma mais singela, mas não menos importante, destacar nesta segunda parte que até as modificações perpetradas pela chamada Lei da Liberdade Econômica (Lei n.° 13.874/2019) no artigo 113, CC/02, passaram-se longos 102 anos, durante os quais os códigos civis brasileiros não dedicaram a importância devida às regras de interpretação do negócio jurídico.

Começamos pelas regras de interpretação do negócio jurídico constantes do Código Civil de 1916. A este respeito, Guilherme Nitschke[4] expõe que:

o Código [1916] não contém: regras gerais de interpretação contratual. Trata-se de omissão que representou uma quebra com a longa tradição luso-brasileira a esse respeito. Havia regras de interpretação organizadas sob a forma de uma disciplina geral desde o Código Comercial de 1850 (arts. 130 a 133 (…)), sendo que todos os projetos de Código Civil do século XIX, à exceção do ‘Esboço’ de Teixeira de Freitas, repetiram a mesma proposta (Projeto de Felício dos Santos, art. 265, e Projeto de Coelho Rodrigues, art. 353, como vimos no Cap. 2.3, supra). Essa opção de Beviláqua- isto é, a opção pela ausência – não passou in albis por aqueles que elaboraram pareceres e fizeram intervenções durante o processo de aprovação do Projeto, valendo registrar, de início, a opinião de Amaro Cavalcanti, representante do Instituto dos Advogados: ‘[…] desde que se reconhece a taes regras uma força conclusiva, ou, por assim dizer, verdadeira sancção jurídica, segundo os casos occurentes, dahi resulta que ellas devem ter entrada no novo código do direito pátrio’. O Dr. Amaro logo destaca que, para esse intento, não havia necessidade de inovar, bastando repetir ‘o que se encontra nos romanistas, e já articulado convenientemente em outros código (da França e Itália, por exemplo).

Verifica-se que as divergências apresentadas ao projeto a respeito do tema não foram acolhidas conforme se lê no Código Civil de 1916.  Regras de interpretação do negócio jurídico, tal como as previstas no Código Civil de 2002, não foram positivadas.

A este respeito é curioso notar na obra "Código Civil dos Estados Unidos do Brasil" comentada por Clóvis Beviláqua, que dentre os temas debatidos e objeto de controvérsia que antecederam a conversão do projeto em lei do Código Civil de 1916, nada se encontre sobre regras de interpretação das "declarações de vontade"[5].

Conforme ensina Nitschke, a inexistência de regras gerais de interpretação do negócio jurídico "não se tratou de esquecimento: a opção pela omissão foi explícita, por entender seu redator (na senda da doutrina da época) que as regras de interpretação contratual não podem ser vinculativas, aprisionando o juiz a ela"[6]. Os comentários de Clóvis Beviláqua ao artigo 85 revelam, inclusive, a pouca discussão existente à época sobre o tema, que não chegam a ocupar meia página dos seus comentários ao Código Civil de 1916[7].

Não obstante, é importar anotar que a parte especial do Código Civil de 1916 conta com a previsão de algumas regras específicas de interpretação, a exemplo do artigo 1027 que dispõe que: "a transação interpreta-se restritivamente"; o artigo 1.090: "Os contratos benéficos interpretar-se-ão estritamente"; o artigo 1.483: "A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva"; e a regra do artigo 1.666: "Quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador"

Tal cenário legislativo relativo às regras de interpretação do negócio jurídico refletiu no trato do tema por significativa parte da doutrina civilista nacional que, quando trabalha o assunto sob a vigência do Código Civil de 1916, não vicejou-o. Em geral, nas obras nacionais produzidas ao longo do século 20, encontra-se apenas menção as teorias existentes[8] (vontade, declaração, e teorias intermediárias), aos métodos de interpretação (contextual, gramatical etc), trabalhados de forma geralmente rasa, e, sobretudo, apoiados preponderantemente em obras estrangeiras que já se dedicavam com fôlego[9] ao tema, à exceção, é verdade, de alguns poucos trabalhos produzidos já mais no final da vigência do código civil revogado[10].

O Código Civil de 2002, na sua versão original, também não foi pródigo em estabelecer regras gerais de interpretação do negócio jurídico. O art. 112 sofreu adaptação em relação ao artigo 85[11], do CC/16.  Previu-se na versão original do artigo 113 que "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração"; o artigo 114 dispõe que "os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente"; no artigo 299, parágrafo único, que trata de assunção de dívida, está previsto que "qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silêncio como recusa"; o artigo 423, inserido nas disposições gerais sobre o contrato, dispõe que "quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente"; o artigo 819 prevê que "a fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva"; o artigo 843 dispõe que "a transação interpreta-se restritivamente, e por ela não se transmite, apenas se declaram ou reconhecem direitos" e, por fim, o artigo 1.899, sobre disposições testamentárias, que enuncia que "quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador".   

A regras gerais, portanto, e inicialmente previstas pelo Código Civil de 2002 sobre interpretação do negócio jurídico eram tão somente a boa-fé e os usos e costumes, sem maior detalhamento a seu respeito como hoje se lê do artigo 113.

Conforme se verá na terceira parte deste trabalho, as regras agora constantes do artigo 113, CC/02, não são, é verdade, de toda novidade na literatura especializada e de aplicação, ainda que pouco vistas, em decisões judiciais proferidas nas últimas décadas. Tal constatação, todavia, não diminui o fato de que a sua positivação seja um marco na história dos códigos civis brasileiros que, como acima se viu, sempre foram econômicos na disciplina de regras de interpretação do negócio jurídico.

Ademais, — e talvez seja a reflexão mais pertinente pois pouco referida — a omissão de regras de interpretação no Código Civil de 1916, e em certa medida na versão original do Código Civil de 2002, são um retrato da mentalidade jurídica preponderante da época de suas elaborações, consistente no entendimento de se conferir maior liberdade interpretativa ao juiz sobre os negócios jurídicos.

As modificações perpetradas pela Lei n.° 13.874/2019 no Código Civil, especificamente quanto à inserção de diversas regras de interpretação do negócio jurídico, revelam a modificação deste posicionamento do legislador, consistente na restrição da liberdade do juiz ou árbitro, que, ao interpretar o negócio jurídico, deve observar as balizas agora melhor desenvolvidas e positivadas nos incisos do parágrafo primeiro do artigo 113, CC/02.

A não observância de referidas regras representava e representa  inobservância da melhor técnica de interpretação do negócio jurídico. Agora também representa violação à lei, cuja positivação municia as partes para melhor controlar a decisão em caso de inobservância dos ditames interpretativos previstos nos incisos do artigo 113, CC/02.

Para aqueles que veem pouca relevância em referidas alterações legislativas, repita-se que as modificações perpetradas no artigo 113, CC/02, não tiveram a pretensão de se apresentar como novidade, revolucionando as regras de interpretação do negócio jurídico. O direito enquanto parte da cultura de uma sociedade não se modifica rapidamente, assim como seus costumes e tradições. As regras de interpretação, comumente qualificadas como regras de experiência (tradição), não fogem à regra.

As regras de interpretação têm um objetivo muito claro: "resolver o ‘problema político’ da interpretação, que é precisamente obter a coincidência entre as regras de experiência escolhidas pelo declarante e pelo destinatário da declaração"[12][13]. Por isso, em um mundo mais complexo, plural e diversificado do que o de 102 anos atrás, a opção do legislador da Lei n.°13.874/2019 de melhor detalhar as regras de interpretação do negócio jurídico, segundo nos parece, confere maior segurança e controle quanto ao resultado da interpretação. Tal tendência de controle da atividade jurisdicional faz um paralelo, no campo do direito processual, com a exigência de fundamentação da decisão judicial inserida expressamente pelo Código de Processo Civil de 2015 no artigo 489, §1º.

Assinala-se que, embora consagradas na literatura especializada e em julgados, as regras previstas no artigo 113, CC/02, com frequência não eram e continuam a não ser observadas por juízes ou árbitros, permanecendo, não raras vezes, ainda pouco claro como procedem na condução do complexo processo de interpretação do negócio jurídico.

Feito este giro, conclui-se que a iniciativa de promover a positivação de regras de interpretação do negócio jurídico no artigo 113, CC/02, tem saldo positivo e é digna de aplausos, além de representar uma virada histórica no direito privado brasileiro quanto ao tema, que se espera reflita na doutrina e seja bem trabalhada pelos julgados que se seguirão.

Contudo, não se está a dizer que seu resultado tenha sido o melhor. Se as modificações são de todo acertadas e refletem a melhor técnica? É o que trataremos nas próximas partes deste trabalho que serão publicadas nas próximas semanas.


[3] Lacunas contratuais e interpretação: história conceito e método. São Paulo: Quartier Latin, 2019, parte I.

[4] Idem, pgs. 138-139.

[5] Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. 1. 7ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1944, p 9-89. “As discussões, que tomaram maior desenvolvimento e nas quaes as opiniões, defrontando-se, vibraram, mais fortemente, foram as referentes ao direito internacional privado, ao divorcio e a organização da propriedade. O debate sobre o divorcio destacou-se, entre todos, por sua solenidade. A sociologia, a historia do direito, a legislação  comparada, a estatística, a razão e o sentimento forneceram recursos aos contendores”. “Na redacção final, surgiram duvidas, que motivaram acalorados debates. Entre essas duvidas, avultou a que sugeriu o confronto entre os artigos do Projecto, que correspondem aos números 160 e 1.519 do Codigo. Pareciam antinômicos os dois dispositivos; mas esclarecido o pensamento do Projecto, foram mantidos os dois artigos como estavam redigidos. A colocação do bem da família na Parte geral, foi também objecto de controvérsias”.

[6] Lacunas contratuais e interpretação, op.cit, p. 169.

[7] “Neste artigo, o Código emprega a expressão – declaração de vontade, que é o conteúdo do acto jurídico., pelo proprio acto. Num sentido geral, podem, realmente, as duas locuções se equivaler. A vontade manifesta-se por signaes ou symbolos, entre os quaes ocupam logar proeminente as palavras. Esses signaes ou palavras pode não traduzir, fielmente, o que o agente quer exprimir. A lei, por isso, manda atender, de preferencia, à intenção, desde que haja elementos para determina-la, fora da expressão verbal imperfeita, indecisa, obscura ou insufficente. Este preceito é mais do que uma regra de interpretação. É um elemento complementar do conceito do acto jurídico. Affirma que a parte essência ou nuclear do acto jurídico é a vontade. É a ella, quando manifestada de accôdo com a lei, que o direito dá eficácia”. (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, op.cit, p. 349-350).

[8] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil: introdução, parte geral e teoria dos negócios jurídico. Vol.1. 2ªed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1957, p.526-528; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: parte geral. T. II, op.cit, p. 327-345; CARVALHO SANTOS, J.M. Código Civil Brasileiro Interpretado: parte geral. Volume II. 11.ªed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, p.284-291); RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. Vol. 1. 33ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p.177-178; BARROS MONTEIRO, Washington de. Curso de Direito Civil: parte geral; 14ªed. São Paulo: Editora Saraiva, 1976, p. 181-183.

[9] P.ex: GRASSETI, Cesare. L’interpretazione del negozio giuridico: con particolare riguardi ai contratti. Ristampa. Padova: Cedam, 1983; DANZ, Erich. A interpretação dos negócios jurídicos. 2.ªed. São Paulo: Livraria Académica Saraiva Editores 1941; BETTI, Emilio. Teoria Generale della interpretazione. Vol. I e II. Milano: Giufrè, 1955.

[10] UBALDINO MIRANDA, Custódio da Piedade. Interpretação e integração dos negócios jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.

[11] “Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem?.

[12] CRESCENZO MARINO, Francisco Paulo de. Op.cit, p. 72.

[13] “Considerando, portanto, que a função desempenhada pelas regras gerais de interpretação dos negócios jurídicos é resolver o problema político da interpretação, isto é, diminuir – uma vez que é impossível eliminar – a variabilidade do resultado da interpretação, garantido a certeza na aplicação do direito (…)”. Idem, p. 73. 

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