Processo Familiar

Em vidas e moradias irregulares, as famílias desabam nas tragédias

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

5 de junho de 2022, 10h31

“Sobreviver também dói. Os que sobram, para onde irão?”. As expressões de D. Francisca, uma das sobreviventes dos deslizamentos de barreiras e/ou de inundações que vitimaram de morte 126 pessoas, nas chuvas de semana passada no Recife e outros munícipios (PE), é a linguagem exata das dores que dilaceram as sobrevidas.

As habitações construídas em áreas de risco são tragédias anunciadas no cotidiano das cidades, suficientes cem ou duzentos milímetros de chuvas em 24 horas. Famílias tornam-se vítimas de desabamentos de barreiras ou da súbita inundação das áreas ribeirinhas que arrastam suas vidas irregulares para a morte.

Nas vítimas fatais, morrem a cada tragédia, aqueles sem lugares dignos de moradia, sucumbindo nas encostas sem arrimo e que, desprovidos de políticas públicas adequadas, tiveram as suas vidas emergenciais sacrificadas. São as famílias também irregulares sob o estigma das vulnerabilidades e das indiferenças sociais. “Peço a Deus por minha gente. É gente humilde. Que vontade de chorar” (01)

Em nosso artigo “Responsabilidade Civil e Omissão de Socorro Público” (2006), tratando sobre obrigação de indenizar por omissão de garantia à incolumidade física das pessoas, proclamei, de há muito:

“A manifesta ausência de uma política habitacional adequada tem possibilitado que a maioria dos grandes centros urbanos registre a ocorrência de conjuntos habitacionais clandestinos, mediante ocupação desordenada e sem qualquer infraestrutura, apresentando-se no caso das construções consolidadas em áreas de risco um problema de proporções mais graves. A remoção dessas moradias, edificadas em áreas de risco, ante o potencial de perigo à incolumidade física dos habitantes, configura questão de interesse público, não podendo omitir-se a Administração de resolver, por definitivo, o processo de ocupação temerária, com o deslocamento das moradias irregulares para um espaço urbano adequado”. (02)

Efetivamente, a responsabilidade civil por omissão imputável ao Poder Público, configurada na conduta omissiva e ofensiva a direitos assegurados na Carta Magna, é tema marcantemente de interesse público, extraído da norma de garantia do art. 37 § 6º da Constituição de 1988, pelo qual a inação do Estado se faz reprovada com a obrigação de indenizar pelos danos suportados, individual ou coletivamente. (03)

De efeito, mais que uma questão prioritária de planejamento urbano, a propor soluções de contenção do processo de ocupação, a manutenção de pessoas residentes em áreas de risco configura severa omissão do Poder Público, quando admitindo as construções clandestinas, limita-se, meramente, a buscar alternativas de sustentabilidade das ocupações, nos locais onde as pessoas vivem, sem que tais medidas constituam, a rigor, segurança apropriada aos moradores. Indispensável, portanto, que seja criada uma lei de responsabilidade social para adoção de políticas públicas à prevenção de tragédias, de largo espectro.

A premissa nuclear é a de que há uma responsabilidade presumida e objetiva do Poder Público, por inércia ou inadequação de serviços compatíveis à proteção do cidadão, na esfera de seus direitos fundamentais e sociais (artigos 5° e 6°, CF), notadamente no atinente à inviolabilidade do direito à vida e à segurança (art. 5°, caput, CF), ao direito à saúde (artigo 196, CF), entre outros, e nos que objetivem a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice (art. 203, CF). Induvidoso, igualmente, à incolumidade físicas das pessoas em suas habitações, quando as famílias devam ser protegidas a partir do seu “locus” próprio (as suas moradias), onde ali as famílias existencializam a si mesmas.

Segue-se, então, dizer que o “permissivo oficioso”, da Administração, à ocupação irregular, com a manutenção de construções ou edificações em áreas de risco, não cuidando de adotar uma “política socialmente responsável”, para a remoção dos moradores, é ato omissivo, gerador de responsabilidade civil. Indiscutivelmente quando não se dispensa a possibilidade mais factível de vitimização das pessoas ali fixadas.

Ou seja, declinando o ente jurídico governamental do dever der agir, em cumprimento da lei, para a remoção das pessoas em área de risco de situação geológica, por ocupação informal e irregular, e ao torná-las expostas, permanentemente ao risco, rende-se o Poder Público à obrigação de indenizar, por omissão. Omissão de socorro, por deixá-las sujeitas à própria sorte.

Com pertinência ímpar, nessa perspectiva, notável julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de 09.08.1988, antecipando o advento da nova Constituição Federal, (05.10.1988), pontificou, às expressas, ser responsável a Administração Público, “por danos correspondentes ao deslizamento de encosta na qual haviam sido realizadas, mas de modo insatisfatório, obras de contenção”. (TJRJ – 3ª Câmara Cível, Apel. Cível n. 1.555/88, Rel. Des. José Carlos Barbosa Moreira).

Mais recentemente, em Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro contra o Município e o Estado do mesmo ente federativo objetivando a adoção de medidas necessárias à preservação do meio ambiente e à vida dos moradores da comunidade Nova Maracá, no bairro de Tomás Coelho, diante da existência de áreas de risco de deslizamentos e escorregamentos, teve-se por procedente o pedido. O TJRJ manteve a sentença. A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça não conheceu do recurso especial (AgInt no AREsp 801720 / RJ, Rel. Min. Francisco falcão, j. em 14.09.2021).

Importa lembrar que o Código Florestal (1965), em seu art. 2º, determina que “consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas (…) d) no topo dos morros, montes, montanhas e serras: (,,,) e) as encostas ou partes destas, com declive superior a 45º, equivalente a 100% na linha de maior declive”, e, demais disso, as normas de planejamento urbano, como leis orgânicas municipais, que salientam a inviabilidade de construções em áreas de risco, ambientalmente inseguras.

Nesse conduto, cediço reconhecer à Administração velar, outrossim, pela segurança das comunidades, no sentido mais genérico, resultando certo o dever de proteção que em última análise corresponde em proporcionar condições de segurança a obstar todas as situações de risco. (04)

Em ser assim, o fato gerador do evento danoso não decorre da culpa, mesmo que concorrente, dos que precederam a ocupação irregular de moradias, atingidas que sejam por deslizamento de terras, porquanto realizadas sem projeto ou autorização das municipalidades. Mesmo que cientes da área de risco de construção, próximas a encosta de morros, é gente humilde, “que vai em frente sem nem ter com quem contar”. Mesmo por causa mediata, a pobreza não será a culpa de quem é pobre.

Diante de deveres de prevenção e da necessidade de sua melhor regulação jurídica – quando os riscos acarretam centenas de mortes em todo o país, acrescida uma perspectiva continuada de maiores riscos diante da constante locação desordenada pelo crescimento populacional nas grandes cidades, impondo famílias a ciclo de desastres – os deveres de agir pela previsibilidade concreta dos casos estão a exigir um novo marco regulatório de tais riscos massivos.

Mais ainda: a competência constitucional atribuída aos Municípios para a promoção do adequado ordenamento territorial, mediante o planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII, CF), evidencia a responsabilidade e chama a atenção a esses deveres legais impostos. Na medida em que o texto constitucional garante aos Municípios verdadeiro controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, estabelece-se, destarte, a limitação ao direito de construir, determinada sob a égide do poder de polícia, que vem sendo mitigado pelas tolerâncias indevidas ou pela inação aos referidos deveres.

Há uma juridicidade inevitável ao exame do problema, quando o conhecimento prévio dos riscos serve de fator de caracterização de descumprimento de deveres de proteção, configurando desconformidade com o Direito, como aponta Délton Winter de Carvalho (05).

Assim, inegável que dispondo o Ministério Público da legitimidade inconteste de exigir a realização de obras de prevenção ou de outras medidas de dissuasão dos riscos, a seu turno “o Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade” (STJ – 2ª Turma, Resp. 429.570-GO provido, j. em 11.11.2003).

Cumpre ressaltar ponto nuclear decisivo do julgado: “(…). 4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.”

Em bom rigor, entendeu-se não se tratar de ato administrativo discricionário (a não permitir ingerência do Poder Judiciário), mas a da responsabilidade civil do Estado por ato de omissão, dos quais decorram ou possam decorrer danos ao meio ambiente (ou à população).

Afirmou a Relatora Min. Eliana Calmon: “(…) Para tanto, deu-se ao Poder Judiciário maior atribuição para imiscuir-se no âmago do ato administrativo, a fim de, mesmo nesse íntimo campo, exercer o juízo de legalidade, coibindo abusos ou vulneração aos princípios constitucionais, na dimensão globalizada do orçamento. A tendência, portanto, é a de manter fiscalizado o espaço livre de entendimento da Administração, espaço este gerado pela discricionariedade, chamado de "Cavalo de Tróia" pelo alemão Huber, transcrito em "Direito Administrativo em Evolução", de Odete Medauar”.

E ponderou, conclusivamente:

“Dentro desse novo paradigma, não se pode simplesmente dizer que, em matéria de conveniência e oportunidade, não pode o Judiciário examiná-las. Aos poucos, o caráter de liberdade total do administrador vai se apagando da cultura brasileira e, no lugar, coloca-se na análise da
motivação do ato administrativo a área de controle. E, diga-se, porque pertinente, não apenas o controle em sua acepção mais ampla, mas também o político e a opinião pública”. (06)

Ponderação substancial é oferecida em “Os Custos dos Direitos”, de Stephen Holmes e Cass Sunstein (2019), obra admitida como a mais importante na área do diálogo do direito com as políticas públicas, segundo a qual garantir direitos é distribuir recursos. Aduzem que a não inclusão orçamentária em proteção de determinados direitos implica em a Administração não os reconhecer ou torná-los inexistentes, anulando à falta de recursos a efetividade deles.

Realmente: os vigias precisam ser pagos e os direitos demandam responsabilidades (why rights entail responsabilities), a partir da própria Administração. Assinalam: “um interesse é qualificado como um direito quando um sistema jurídico efetivo o reconhece como tal, mediante o uso de recursos coletivos para defendê-lo”. (07).

Tenha-se em conta a urgência de vinculação dos programas habitacionais dos entes federados à prevenção dos desastres, como se extrai da Lei n. 1.608/2012, de 10 de abril, que instituiu o Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) do país. Pelo menos mil pessoas morreram vítimas de enchentes e deslizamentos, durante o ano anterior à lei, quando o país já era o sexto do mundo que mais sofria com catástrofes climáticas.

A lei acaba de completar dez anos e a leitura do seu artigo 14 continua uma leitura sem concretudes, somente uma norma no pergaminho legal:

“Art. 14. Os programas habitacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios devem priorizar a relocação de comunidades atingidas e de moradores de áreas de risco”.

Enquanto os núcleos habitacionais do país são construções inacabadas a reportada Lei n. 12.608/12 perde o seu essencial caráter preventivo, restando as ações de respostas aos danos e as de recuperação.

No mais, urge estabelecer, com a realidade dos fatos, novos critérios e condições para a declaração e o reconhecimento de situações de emergência e estado de calamidade pública, a tudo superar distorções existentes. A mais grave distorção das regras é a de entender como calamidade somente quando morre alguém (precisa-se de apenas um) e a emergência é aquela situada pela não ocorrência de mortes. De tal lógica, o incompetente gestor público terá mais facilidade em obter recursos enquanto aquele gestor que corretamente fez obras preventivas e não ocasionou mortes, receberá muito menos, restando prejudicada a administração, em seus projetos emergenciais, à mingua de falta de mortos. Privilegiam-se as mortes e não os projetos estruturais dos bons gestores que as evitam.

As famílias das tragédias sociais recorrentes buscam sobreviver, quando a vida digna já lhes foi arrebatada nas erosões dos orçamentos, nas omissões públicas e na precariedade das submoradias A vida de incertezas afastando famílias do seu mínimo existencial, a partir do potencial de riscos de suas moradias, tem a mesma gravidade quanto às incertezas de risco que serviriam como escusas a protrair as ações preventivas.

No ponto, o Serviço Geológico Brasileiro que monitora áreas consideradas propensas a desabamentos, inundações, deslizamentos de rochas, etc., “considera que 1.601 cidades do país têm "alto e muito alto risco", o equivalente a 28,74% do território brasileiro”. Dentro da magnitude de impacto, cerca de quatro em cem brasileiros vivem em áreas expostas. São milhões de brasileiros em risco.

Impõe-se uma urgente revisão crítica do direito das gentes humildes.

Referências:
“Gente Humilde”, composição de Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, com letra póstuma de Vinicius de Morais e pequena contribuição de Chico Buarque de Holanda, relançada em 1970 (Ângela Maria).

ALVES, Jones Figueirêdo. “Responsabilidade Civil e Omissão de Socorro Público”. In: DELGADO, Mário Luiz. ALVES, Jones Figueirêdo. Novo Código Civil. Questões Controvertidas”, vol. 5. Responsabilidade Civil. São Paulo: Wd. Método. 2006, pp. 321-342.

CF, art. 37 § 6º: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

O mesmo sucede em exame da omissão no fornecimento de segurança adequada, quando da responsabilidade do Estado em assegurar a cada cidadão, de forma efetiva e integral, a segurança pública, diante da banalizada violência nos grandes centros urbanos.

(05) CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua Regulação Jurídica. São Paulo: Ed. RT, 2025, 190 p.

(06) Web: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=956267&num_registro=200200461108&data=20040322&tipo=51&formato=PDF

(07) HOLMES, Stephen. SUNSTEIN, Cass. O Custo dos Direitos. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2019., 220 p.

Autores

  • é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), integrante da Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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