Em vidas e moradias irregulares, as famílias desabam nas tragédias
5 de junho de 2022, 10h31
“Sobreviver também dói. Os que sobram, para onde irão?”. As expressões de D. Francisca, uma das sobreviventes dos deslizamentos de barreiras e/ou de inundações que vitimaram de morte 126 pessoas, nas chuvas de semana passada no Recife e outros munícipios (PE), é a linguagem exata das dores que dilaceram as sobrevidas.

Nas vítimas fatais, morrem a cada tragédia, aqueles sem lugares dignos de moradia, sucumbindo nas encostas sem arrimo e que, desprovidos de políticas públicas adequadas, tiveram as suas vidas emergenciais sacrificadas. São as famílias também irregulares sob o estigma das vulnerabilidades e das indiferenças sociais. “Peço a Deus por minha gente. É gente humilde. Que vontade de chorar” (01)
Em nosso artigo “Responsabilidade Civil e Omissão de Socorro Público” (2006), tratando sobre obrigação de indenizar por omissão de garantia à incolumidade física das pessoas, proclamei, de há muito:
“A manifesta ausência de uma política habitacional adequada tem possibilitado que a maioria dos grandes centros urbanos registre a ocorrência de conjuntos habitacionais clandestinos, mediante ocupação desordenada e sem qualquer infraestrutura, apresentando-se no caso das construções consolidadas em áreas de risco um problema de proporções mais graves. A remoção dessas moradias, edificadas em áreas de risco, ante o potencial de perigo à incolumidade física dos habitantes, configura questão de interesse público, não podendo omitir-se a Administração de resolver, por definitivo, o processo de ocupação temerária, com o deslocamento das moradias irregulares para um espaço urbano adequado”. (02)
Efetivamente, a responsabilidade civil por omissão imputável ao Poder Público, configurada na conduta omissiva e ofensiva a direitos assegurados na Carta Magna, é tema marcantemente de interesse público, extraído da norma de garantia do art. 37 § 6º da Constituição de 1988, pelo qual a inação do Estado se faz reprovada com a obrigação de indenizar pelos danos suportados, individual ou coletivamente. (03)
De efeito, mais que uma questão prioritária de planejamento urbano, a propor soluções de contenção do processo de ocupação, a manutenção de pessoas residentes em áreas de risco configura severa omissão do Poder Público, quando admitindo as construções clandestinas, limita-se, meramente, a buscar alternativas de sustentabilidade das ocupações, nos locais onde as pessoas vivem, sem que tais medidas constituam, a rigor, segurança apropriada aos moradores. Indispensável, portanto, que seja criada uma lei de responsabilidade social para adoção de políticas públicas à prevenção de tragédias, de largo espectro.
A premissa nuclear é a de que há uma responsabilidade presumida e objetiva do Poder Público, por inércia ou inadequação de serviços compatíveis à proteção do cidadão, na esfera de seus direitos fundamentais e sociais (artigos 5° e 6°, CF), notadamente no atinente à inviolabilidade do direito à vida e à segurança (art. 5°, caput, CF), ao direito à saúde (artigo 196, CF), entre outros, e nos que objetivem a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice (art. 203, CF). Induvidoso, igualmente, à incolumidade físicas das pessoas em suas habitações, quando as famílias devam ser protegidas a partir do seu “locus” próprio (as suas moradias), onde ali as famílias existencializam a si mesmas.
Segue-se, então, dizer que o “permissivo oficioso”, da Administração, à ocupação irregular, com a manutenção de construções ou edificações em áreas de risco, não cuidando de adotar uma “política socialmente responsável”, para a remoção dos moradores, é ato omissivo, gerador de responsabilidade civil. Indiscutivelmente quando não se dispensa a possibilidade mais factível de vitimização das pessoas ali fixadas.
Ou seja, declinando o ente jurídico governamental do dever der agir, em cumprimento da lei, para a remoção das pessoas em área de risco de situação geológica, por ocupação informal e irregular, e ao torná-las expostas, permanentemente ao risco, rende-se o Poder Público à obrigação de indenizar, por omissão. Omissão de socorro, por deixá-las sujeitas à própria sorte.
Com pertinência ímpar, nessa perspectiva, notável julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de 09.08.1988, antecipando o advento da nova Constituição Federal, (05.10.1988), pontificou, às expressas, ser responsável a Administração Público, “por danos correspondentes ao deslizamento de encosta na qual haviam sido realizadas, mas de modo insatisfatório, obras de contenção”. (TJRJ – 3ª Câmara Cível, Apel. Cível n. 1.555/88, Rel. Des. José Carlos Barbosa Moreira).
Mais recentemente, em Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro contra o Município e o Estado do mesmo ente federativo objetivando a adoção de medidas necessárias à preservação do meio ambiente e à vida dos moradores da comunidade Nova Maracá, no bairro de Tomás Coelho, diante da existência de áreas de risco de deslizamentos e escorregamentos, teve-se por procedente o pedido. O TJRJ manteve a sentença. A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça não conheceu do recurso especial (AgInt no AREsp 801720 / RJ, Rel. Min. Francisco falcão, j. em 14.09.2021).
Importa lembrar que o Código Florestal (1965), em seu art. 2º, determina que “consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas (…) d) no topo dos morros, montes, montanhas e serras: (,,,) e) as encostas ou partes destas, com declive superior a 45º, equivalente a 100% na linha de maior declive”, e, demais disso, as normas de planejamento urbano, como leis orgânicas municipais, que salientam a inviabilidade de construções em áreas de risco, ambientalmente inseguras.
Nesse conduto, cediço reconhecer à Administração velar, outrossim, pela segurança das comunidades, no sentido mais genérico, resultando certo o dever de proteção que em última análise corresponde em proporcionar condições de segurança a obstar todas as situações de risco. (04)
Em ser assim, o fato gerador do evento danoso não decorre da culpa, mesmo que concorrente, dos que precederam a ocupação irregular de moradias, atingidas que sejam por deslizamento de terras, porquanto realizadas sem projeto ou autorização das municipalidades. Mesmo que cientes da área de risco de construção, próximas a encosta de morros, é gente humilde, “que vai em frente sem nem ter com quem contar”. Mesmo por causa mediata, a pobreza não será a culpa de quem é pobre.
Diante de deveres de prevenção e da necessidade de sua melhor regulação jurídica – quando os riscos acarretam centenas de mortes em todo o país, acrescida uma perspectiva continuada de maiores riscos diante da constante locação desordenada pelo crescimento populacional nas grandes cidades, impondo famílias a ciclo de desastres – os deveres de agir pela previsibilidade concreta dos casos estão a exigir um novo marco regulatório de tais riscos massivos.
Mais ainda: a competência constitucional atribuída aos Municípios para a promoção do adequado ordenamento territorial, mediante o planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII, CF), evidencia a responsabilidade e chama a atenção a esses deveres legais impostos. Na medida em que o texto constitucional garante aos Municípios verdadeiro controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, estabelece-se, destarte, a limitação ao direito de construir, determinada sob a égide do poder de polícia, que vem sendo mitigado pelas tolerâncias indevidas ou pela inação aos referidos deveres.
Há uma juridicidade inevitável ao exame do problema, quando o conhecimento prévio dos riscos serve de fator de caracterização de descumprimento de deveres de proteção, configurando desconformidade com o Direito, como aponta Délton Winter de Carvalho (05).
Assim, inegável que dispondo o Ministério Público da legitimidade inconteste de exigir a realização de obras de prevenção ou de outras medidas de dissuasão dos riscos, a seu turno “o Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade” (STJ – 2ª Turma, Resp. 429.570-GO provido, j. em 11.11.2003).
Cumpre ressaltar ponto nuclear decisivo do julgado: “(…). 4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.”
Em bom rigor, entendeu-se não se tratar de ato administrativo discricionário (a não permitir ingerência do Poder Judiciário), mas a da responsabilidade civil do Estado por ato de omissão, dos quais decorram ou possam decorrer danos ao meio ambiente (ou à população).
Afirmou a Relatora Min. Eliana Calmon: “(…) Para tanto, deu-se ao Poder Judiciário maior atribuição para imiscuir-se no âmago do ato administrativo, a fim de, mesmo nesse íntimo campo, exercer o juízo de legalidade, coibindo abusos ou vulneração aos princípios constitucionais, na dimensão globalizada do orçamento. A tendência, portanto, é a de manter fiscalizado o espaço livre de entendimento da Administração, espaço este gerado pela discricionariedade, chamado de "Cavalo de Tróia" pelo alemão Huber, transcrito em "Direito Administrativo em Evolução", de Odete Medauar”.
E ponderou, conclusivamente:
“Dentro desse novo paradigma, não se pode simplesmente dizer que, em matéria de conveniência e oportunidade, não pode o Judiciário examiná-las. Aos poucos, o caráter de liberdade total do administrador vai se apagando da cultura brasileira e, no lugar, coloca-se na análise da
motivação do ato administrativo a área de controle. E, diga-se, porque pertinente, não apenas o controle em sua acepção mais ampla, mas também o político e a opinião pública”. (06)
Ponderação substancial é oferecida em “Os Custos dos Direitos”, de Stephen Holmes e Cass Sunstein (2019), obra admitida como a mais importante na área do diálogo do direito com as políticas públicas, segundo a qual garantir direitos é distribuir recursos. Aduzem que a não inclusão orçamentária em proteção de determinados direitos implica em a Administração não os reconhecer ou torná-los inexistentes, anulando à falta de recursos a efetividade deles.
Realmente: os vigias precisam ser pagos e os direitos demandam responsabilidades (why rights entail responsabilities), a partir da própria Administração. Assinalam: “um interesse é qualificado como um direito quando um sistema jurídico efetivo o reconhece como tal, mediante o uso de recursos coletivos para defendê-lo”. (07).
Tenha-se em conta a urgência de vinculação dos programas habitacionais dos entes federados à prevenção dos desastres, como se extrai da Lei n. 1.608/2012, de 10 de abril, que instituiu o Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) do país. Pelo menos mil pessoas morreram vítimas de enchentes e deslizamentos, durante o ano anterior à lei, quando o país já era o sexto do mundo que mais sofria com catástrofes climáticas.
A lei acaba de completar dez anos e a leitura do seu artigo 14 continua uma leitura sem concretudes, somente uma norma no pergaminho legal:
“Art. 14. Os programas habitacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios devem priorizar a relocação de comunidades atingidas e de moradores de áreas de risco”.
Enquanto os núcleos habitacionais do país são construções inacabadas a reportada Lei n. 12.608/12 perde o seu essencial caráter preventivo, restando as ações de respostas aos danos e as de recuperação.
No mais, urge estabelecer, com a realidade dos fatos, novos critérios e condições para a declaração e o reconhecimento de situações de emergência e estado de calamidade pública, a tudo superar distorções existentes. A mais grave distorção das regras é a de entender como calamidade somente quando morre alguém (precisa-se de apenas um) e a emergência é aquela situada pela não ocorrência de mortes. De tal lógica, o incompetente gestor público terá mais facilidade em obter recursos enquanto aquele gestor que corretamente fez obras preventivas e não ocasionou mortes, receberá muito menos, restando prejudicada a administração, em seus projetos emergenciais, à mingua de falta de mortos. Privilegiam-se as mortes e não os projetos estruturais dos bons gestores que as evitam.
As famílias das tragédias sociais recorrentes buscam sobreviver, quando a vida digna já lhes foi arrebatada nas erosões dos orçamentos, nas omissões públicas e na precariedade das submoradias A vida de incertezas afastando famílias do seu mínimo existencial, a partir do potencial de riscos de suas moradias, tem a mesma gravidade quanto às incertezas de risco que serviriam como escusas a protrair as ações preventivas.
No ponto, o Serviço Geológico Brasileiro que monitora áreas consideradas propensas a desabamentos, inundações, deslizamentos de rochas, etc., “considera que 1.601 cidades do país têm "alto e muito alto risco", o equivalente a 28,74% do território brasileiro”. Dentro da magnitude de impacto, cerca de quatro em cem brasileiros vivem em áreas expostas. São milhões de brasileiros em risco.
Impõe-se uma urgente revisão crítica do direito das gentes humildes.
Referências:
“Gente Humilde”, composição de Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, com letra póstuma de Vinicius de Morais e pequena contribuição de Chico Buarque de Holanda, relançada em 1970 (Ângela Maria).
ALVES, Jones Figueirêdo. “Responsabilidade Civil e Omissão de Socorro Público”. In: DELGADO, Mário Luiz. ALVES, Jones Figueirêdo. Novo Código Civil. Questões Controvertidas”, vol. 5. Responsabilidade Civil. São Paulo: Wd. Método. 2006, pp. 321-342.
CF, art. 37 § 6º: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
O mesmo sucede em exame da omissão no fornecimento de segurança adequada, quando da responsabilidade do Estado em assegurar a cada cidadão, de forma efetiva e integral, a segurança pública, diante da banalizada violência nos grandes centros urbanos.
(05) CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua Regulação Jurídica. São Paulo: Ed. RT, 2025, 190 p.
(06) Web: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=956267&num_registro=200200461108&data=20040322&tipo=51&formato=PDF
(07) HOLMES, Stephen. SUNSTEIN, Cass. O Custo dos Direitos. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2019., 220 p.
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