Opinião

Liberdade provisória: até quando usaremos essa malfadada expressão

Autor

  • Carlos Alberto Garcete

    é professor pós-doutor em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa doutor em Direito (área de concentração em Direito Processual Penal) pela PUC-SP mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUC-RJ e juiz de Direito (1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande-MS).

5 de junho de 2022, 11h13

Na obra "Código de Processo Penal: estudos comemorativos aos 80 anos de vigência" [1], abordamos a total impropriedade da expressão "liberdade provisória" em tempos atuais.

Uma das matizes da presunção de inocência é a regra de tratamento, quer seja na ótica endoprocessual (ser considerado inocente até o trânsito em julgado), quer seja na ótica supraprocessual, a impedir que o investigado ou acusado seja estigmatizado como alguém culpado. A utilização do termo liberdade provisória viola ambos os espectros.

É preciso compreender que o processo penal se enquadra dentro de um subsistema que se conecta com o sistema maior, que é a própria Constituição (Garcete, 2022) [2]. Desse modo, a compatibilidade sistêmica vertical é dever imposto ao legislador, na atividade de evolução das leis de um país, assim como ao juiz, no exercício jurisdicional.

Desde a Constituição Federal de 1988 subsiste, no sistema processual penal, a garantia de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, artigo 5º, LVII).

Mas a garantia de presunção de inocência antecede, por óbvio, a Constituição em vigor, visto que há diversos documentos internacionais de mesmo jaez, em relação aos quais o Estado brasileiro é signatário, à luz do direito convencional.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), no artigo 8º, Item 2, assegura a toda pessoa acusada de delito o direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Nos mesmos termos estão o artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Assembleia Constituinte da França (1789), o artigo 26 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem da OEA (1948), o artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948) e as Regras de Tóquio (Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade).

Não por outra razão, hodiernamente, já se fala, inclusive, em direito penal supranacional como forma de obter standards de tratamento para a mesma conduta em diversos Estados [3], bem assim do oportuno controle de convencionalidade.

Origem da expressão "liberdade provisória"
O Código de Processo Penal italiano (Codice di Procedura Penale) de 1930 trazia o art. 277 nos seguintes termos:

"All"imputato che si trova nello stato di custodia preventiva può essere conceduta la libertà provvisoria" [4].

Por conta dessa disposição, Vincenzo Manzini, representante da Escola Técnico-jurídica, sentenciava:

"Mediante la concessione del 'beneficio' (concessione discrezionale) della libertà provvisoria, lo Stato rinuncia, per mezzo del giudice o del. p.m., a mantenere l'imputato in stato di custodia preventiva, quando potrebbe legittimamente mantenervelo […]" [5].

Manzini considerava a presunção de inocência verdadeira "aberração" [6], bem como que o Estado fascista não reconhecia a liberdade individual um direito, mas concessão do Estado no interesse da coletividade [7], no que exsurgiria outra aberração, qual seja a presunção pro societate.

Isso explica porque, antanho, a presunção de inocência era tida como deturpação de um processo penal "eficiente", o que, por conclusão, levava ao entendimento de que a liberdade de quem respondia ao processo penal era "faculdade" conferida ao Estado-juiz.

O Código de Processo Penal brasileiro de 1941 (Decreto nº 3.689/41) abeberou-se dos influxos fascistas e acabou por incorporar essa expressão, de tal arte a tornar a prisão preventiva uma regra e a "liberdade provisória" uma exceção. Na redação de origem, o artigo 321 prescrevia que a liberdade provisória só seria concedida em delitos de menor potencial ofensivo, sem prisão e com prisão inferior a três meses, mas, ainda assim, mediante fiança, salvo se o imputado não tivesse condições de fazê-lo.

As constituições brasileiras de outrora também colocavam a fiança como condição para que alguém, excepcionalmente, pudesse responder o processo em liberdade, contexto que naturalizava a prisão como regra.

Para Renato Brasileiro de Lima, a liberdade provisória "continua funcionando como substitutivo da prisão em flagrante, logo, como medida de contracautela" e "conquanto o legislador não tenha se utilizado da expressão liberdade provisória no artigo 319 do CPP, fica evidente que esse instituto agora também pode ser adotado como providência cautelar autônoma" [8].

Segue-se que, a despeito da garantia constitucional da presunção de inocência, a expressão "liberdade provisória" continua a ser empregada, seja na legislação infraconstitucional, seja na redação de trabalho dos operadores de Direito.

Inconstitucionalidade da expressão liberdade provisória
A expressão "liberdade provisória", prevista no Título IX [9] do Livro I [10] do Código de Processo Penal, especialmente o artigo 321 [11], não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 porque está em total incompatibilidade vertical com a garantia de que ninguém seja considerado culpado até que haja sentença condenatória passada em julgado (CF, artigo 5º, LVII). Assim, deve deixar de ser aplicada pelo operador de Direito contemporâneo, o qual tem compromisso acadêmico e social de luta e respeito aos direitos fundamentais, notadamente em face dos mandatos constitucionais de criminalização (princípios da proporcionalidade como proibição de excesso [Übermassverbot] e da proibição de proteção insuficiente [Untermassverbot]).

Deslegitimando o uso inconstitucional da expressão liberdade provisória
Não obstante o Código de Processo Penal brasileiro (ainda) utilizar a expressão liberdade provisória, seu uso pode (até) ser considerado escorreito por aqueles mais legalistas, com supedâneo no que prescreve o artigo 5º, LXVI, da CF [12]. Entrementes, à luz da visão garantista de que valores constitucionais aplicados ao processo penal jamais podem ser sotopostos por operadores do Direito e, designadamente, pelo Poder Judiciário, sua invocação é flagrantemente inconstitucional e deve ser evitada. A referência constitucional ao termo "liberdade provisória", contida no aludido artigo 5º, LXVI, da CF, não objetiva legitimar a expressão, mas assentar que a prisão deve ser exceção em nosso sistema.

Neste particular, não há dúvida acerca da péssima redação do constituinte, crítica expendida, de há muito, por Antonio Scarance Fernandes [13], Eugenio Pacelli [14] e Guilherme Madeira [15], dentre outros.

Seja como for, é preciso não perder de vista que a Constituição brasileira adota o sistema misto de controle de constitucionalidade (concentrado e difuso), de sorte que, pela via de exceção (incidenter tantum), qualquer juiz pode reconhecer a incompatibilidade vertical, pois, de acordo com Lenio Streck, pelo controle difuso, qualquer das partes pode levantar a questão da inconstitucionalidade, assim como também o Ministério Público e, de ofício, o juiz da causa [16]. Cabe ressaltar que o juiz de primeiro grau, tecnicamente, "não declara a inconstitucionalidade de lei, apenas deixa de aplicá-la, isso porque somente na forma do art. 97 da CF é que pode ocorrer a declaração de inconstitucionalidade" [17].

Terminologia correta para substituir
No processo penal, existem medidas cautelares de três espécies: a) de natureza real; b) de natureza probatória; c) de natureza pessoal.

Medidas cautelares de cunho real destinam-se a salvaguardar eventual efeito reparatório que decorrerá de possível sentença condenatória. O CPP as denomina de medidas assecuratórias (sequestro, arresto e hipoteca legal) nos artigos 125 e 144.

Medidas cautelares penais de cunho probatório são voltadas a preservar a eficácia da persecução criminal de um modo geral, ou seja, durante a investigação preliminar ou durante a tramitação do processo. Objetivam a captura de material probatório que possa servir ao esclarecimento de fatos tidos como criminosos, tais como busca e apreensão (artigo 240 e ss.) e produção antecipada de prova, ou seja, ad perpetuam rei memoriam (artigo 225 e artigo 366).

Medidas de caráter pessoal atingem restrição (medidas alternativas do artigo 319) ou privação de liberdade, denominada cárcere ad custodiam (prisão em flagrante, prisão temporária e prisão preventiva), do investigado ou do acusado, sem que haja uma sentença penal condenatória transitada em julgado, cujo balanceamento deve ser visto em conjunto com a garantia constitucional da presunção de inocência (CF, artigo 5º, LVII)

Conclusão
É preciso que a expressão "liberdade provisória" seja declarada inconstitucional, seja por controle específico, seja por controle incidental (incidenter tantum), mediante inaplicação, para que operadores do Direito introjetem a cultura de que, a rigor, existem "medidas cautelares pessoais".

Adverte Ferrajoli que a escolha de um processo penal atualizado e comprometido com os valores de convencionalidade e da Constituição é dever do jurista contemporâneo [18]. Por enquanto, a informação de otimismo é que o PL 45/2010 (projeto de lei de novo código de processo penal), em tramitação na Câmara dos Deputados, não mais alude ao termo "liberdade provisória", optando por "medidas cautelares pessoais" (artigo 608).

Referências bibliográficas
– AMBOS, Kai. Estado e futuro do direito penal. State and future of comparative criminal law book. Revista Anatomia do Crime. v. 6. Portugal, 2018.

– DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 6ª ed. São Paulo: Thompson Reuters Revista dos Tribunais, 2020.
– FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías. La ley del más débil. 2ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 2001.
– FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
– GARCETE, Carlos Alberto. 80 anos do Código de Processo Penal: a paulatina naturalização do sistema acusatório. In (coord.) Guilherme Madeira, Gustavo Badaró e Rogerio Schietti Cruz. Código de Processo Penal: estudos comemorativos aos 80 anos de vigência. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021.
– GARCETE, Carlos Alberto. Sistemas jurídicos no processo penal: uma compreensão a partir da civil law e common law, os transplantes jurídicos e os sistemas inquisitório, acusatório e adversarial. São Paulo: Thompson Reuters Revista dos Tribunais, 2022.
– LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020.
– MANZINI, Vincenzo. Instituzioni di Diritto Processuale Penale. Ottava Edizione. Padova, CEDAM, 1941. p. 216.
– PACELLI, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2021.
– STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.


[1] GARCETE, Carlos Alberto. 80 anos do Código de Processo Penal: a paulatina naturalização do sistema acusatório. In (coord.) Guilherme Madeira, Gustavo Badaró e Rogerio Schietti Cruz. Código de Processo Penal: estudos comemorativos aos 80 anos de vigência. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021, v. 1, p. 218.

[2] GARCETE, Carlos Alberto. Sistemas jurídicos no processo penal: uma compreensão a partir da civil law e common law, os transplantes jurídicos e os sistemas inquisitório, acusatório e adversarial. São Paulo: Thompson Reuters Revista dos Tribunais, 2022. p. 26: "A partir da noção estrutural de sistemas, é possível depreender que os ramos do direito devem ser organizados por meio do viés sistêmico (teias) que se consubstanciam minimamente por um princípio unificador de um todo orgânico e voltado a determinado fim. Nesse compasso, surgem os subsistemas, como é o caso do direito processual penal (…)".

[3] AMBOS, Kai. Estado e futuro do direito penal. State and future of comparative criminal law book. Revista Anatomia do Crime. v. 6. Portugal, 2018, p. 16.

[4] Tradução livre: "O acusado que se encontre em regime de prisão preventiva pode obter liberdade provisória".

[5] MANZINI, Vincenzo. Instituzioni di Diritto Processuale Penale. Ottava Edizione. Padova, CEDAM, 1941. p. 216. Tradução livre: "Ao conceder o 'benefício' (concessão discricionária) da liberdade provisória, o Estado renuncia, por intermédio do juiz ou do Ministério Público, a manter o arguido em prisão preventiva, quando aí pudesse legitimamente mantê-lo preso".

[6] Op. cit., p. 54. Tradução livre: "II. – Conceitos errados. Inexato e inconsistente é o critério de que as normas processuais penais são essencialmente direcionadas à proteção da inocência: seria como dizer que os procedimentos diagnósticos visam essencialmente a averiguação da saúde da pessoa. Chegaria a afirmar o que na prática é absolutamente falso e teoricamente absurdo: isto é, que, via de regra, as suspeitas de culpa levantadas pelo promotor contra os suspeitos são infundadas e arbitrárias. São ideias antiquadas, falaciosas e injustas, que surgem mais ou menos conscientemente dessa forma demagógica de pensar, para a qual a autoridade pública se vê como pérfida e desenfreada ameaça aos interesses individuais; modo de pensar que, se pudesse ser justificado em regimes absolutos e sob dominação estrangeira, em nosso Estado não só é errôneo, mas também sem sentido e maligno".

[7] Op. cit., p. 183.

[8] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 1163.

[9] Da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória.

[10] Do processo em geral.

[11] Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no artigo 319 deste Código e observados os critérios constantes do artigo 282.

[12] Ninguém será levado a prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a "liberdade provisória", com ou sem fiança.

[13] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 311: "A expressão liberdade provisória não é adequada, apesar de consagrada e constar na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Traz a ideia de uma liberdade que pode, a qualquer momento, vir a cessar".

[14] PACELLI, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2021. p. 387-8: "(…) não é porque o constituinte de 1988, desavisado e desatualizado com a legislação processual penal de sua época, tenha se referido à liberdade provisória, com e sem fiança, que a nossa história deve permanecer atrelada a este equívoco. […] Por isso, pensamos que se deveria varrer do mapa essa expressão, limitando a lei a explicitar as medidas cautelares e as modalidades de prisão […]".

[15] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 6ª ed. São Paulo: Thompson Reuters Revista dos Tribunais, 2020. p. 995: "O termo liberdade provisória deve ser criticado. Traduz ele a falsa ideia de que a liberdade é provisória quando pelo modelo constitucional provisória é a prisão e a liberdade definitiva. Conduz ainda à falsa ideia de que a liberdade é um favor para a pessoa concedido pelo Estado".

[16] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 155.

[17] STRECK, op.cit., p. 156.

[18] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías. La ley del más débil. 2ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 2001. p. 157: "los juristas deven asumir la responsabilidad que corresponde a su oficio".

Autores

  • é juiz do 1º Tribunal do Júri de Campo Grande (MS), professor de Direito Processual Penal, pós-doutorando em Ciências Criminais pela Universidade de Lisboa, doutor em Direito (área de concentração em Direito Processual Penal) pela PUC/SP e mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado (PUC/RJ).

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