Opinião

A modulação de efeitos no STF e a Matrix dos contribuintes

Autor

  • Walter Alexandre Bussamara

    é advogado no escritório Alves Feitosa Advogados Associados mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e membro efetivo da Comissão de Tributação Empresarial do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (Ibrademp).

4 de junho de 2022, 9h02

"Não conheço o futuro. Não vim aqui para te dizer como isso acabará, vim para dizer como começará." Essa icônica frase ganhou notoriedade quando o personagem Neo, interpretado por Keanu Reeves, no primeiro filme da série "Matrix", ainda em 1999, ao seu final, fazia um alerta às maquinas que então aprisionavam a mente dos humanos, dando-lhes a falsa sensação de estarem vivendo em um mundo real, a despeito de estarem habitando apenas um mundo de ilusão, imposto e desfocado, ou seja, num mundo da Matrix.

Ao questionar Morpheus acerca de como deixar a Matrix e, portanto, abandonar toda essa inconsciente ilusão, deixando-a para trás, em busca de um mundo efetivamente real, a Neo foi revelado que se tratava de um caminho individual por meio do qual a renúncia à Matrix dependeria, ao final, da decisão de cada pessoa.

Pois bem. Certamente, neste momento já devemos estar sendo indagados, bem no início destas reflexões, acerca de qual a relação da cinematografia de Matrix com o tema aqui eleito para as nossas desejadas considerações, vale dizer, a respeito de qual a sua associação ao instituto da modulação de efeitos das decisões proferidas pelo STF sobretudo diante dos contribuintes pátrios.

Esse questionamento, para nós, não é de difícil aclaramento, porquanto tal filme, longe de ser apenas mais um blockbuster de expressão artística mundial, também o foi como referência de cunhos filosófico e metafórico diante de nossas próprias compreensões a respeito dos fatos reais da vida, ou melhor, perante uma dada condição em que, como seres humanos, nos colocamos quando aceitamos conviver em meio a convenções ficticiamente impostas, de quaisquer naturezas, às quais nos amoldamos, talvez, cegamente, e que nos tolhem de perceber a realidade, ao menos como de fato ela é, ou deveria ser, o que, em Matrix, faz provocar o então personagem Neo a encontrar caminhos para libertação desse verdadeiro cárcere mental de irrealidades inconscientes.

E é aqui, então, justa e exatamente, que o colendo STF, sempre com todo o respeito que lhe é devido, tem nos trazido à memória a façanha de Neo, sobretudo no que diz respeito a dadas decisões recentes suas em âmbito de modulação de efeitos diante de suas próprias orientações hermenêuticas, as quais, por vezes, parecem nos estar tentando impor, cegamente, uma realidade jurídica que não condiz com o axioma normativo autêntico e advindo da própria Constituição Federal, em sua mais pura verdade, da qual a Corte Excelsa, aliás, possui status de legítima guardiã, mas que parece querer nos impor uma ilusão de justiça constitucional, que, em termos realísticos, está longe, por vezes, de poder ser assim aclamada.

Com efeito, um caso que se nos mostra emblemático, nessa verdadeira Matrix em âmbito de STF, se verifica na modulação de efeitos então determinada quando do julgamento do Recurso Extraordinário 628.075/RS, Tema 490 da repercussão geral, atinente ao ICMS no contexto da guerra fiscal.

Como se sabe, apenas en passant, modular os efeitos de uma decisão, em âmbito da Corte Suprema, significa restringir a sua eficácia temporal, de forma a fazê-la gerar efeitos unicamente prospectivos, vale dizer, para frente, a teor do quanto disposto no artigo 27, da Lei nº 9.868/99 que assim dispõe:

"Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado."

Em âmbito do atual CPC, tal tema consta estruturado no artigo 927, § 3º, segundo o qual:

"na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação de efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica".

No aludido caso da guerra fiscal, por sua vez, a despeito de restar entendido que "o estorno proporcional de créditos de ICMS em razão de crédito fiscal presumido concedido por outro Estado não ofende o princípio da não cumulatividade", decidiu-se, igualmente, sob o pretexto de preservação da boa-fé, da confiança legítima e da conciliação da validade e da cogência das normas constitucionais com a segurança jurídica, que essa decisão passasse a produzir efeitos justamente apenas a partir da data do julgamento aludido, o que não nos deixou, ainda assim, de trazer à tona, porém, uma perfeita identidade com a Matrix tal como posta diante de Neo, já que, em nosso caso, tratou o STF de bem engendrar argumentos altamente retóricos e sutilmente convincentes acerca, na verdade, de uma pseudoaplicação da justiça ao caso julgado, justiça essa, por sua vez, absolutamente ilusória.

Realmente, ao expressar e, pretensamente, modular os efeitos de sua decisão com base em prerrogativas estruturantes de justiça, como as da boa-fé e da segurança jurídica, o que o STF fez, ou, com a devida vênia, tentou fazer, foi nada mais do que vestir a sua modulação de efeitos com uma roupagem fictícia que, ao final, então, não se viu existente na realidade jurídica puramente considerada, isso, pensamos, bem ao tom da Matrix de Neo, pela qual se pretendia fazer crer que a condição que lhe era dada, lá, por máquinas, de fato, condizia com a realidade, sem qualquer brecha, tanto lá como aqui, para eventual exercício de consciência em sentido contrário, tamanho o engendramento da ilusão ofertada.

No caso de nosso tema, então, a grande e imposta ilusão que decorreu da referida modulação de efeitos pelo STF, que assumiu, aqui, o papel daquela Matrix, de Neo, foi a de querer nos fazer crer, diante de um sofisticado e retórico arcabouço argumentativo constante da própria decisão proferida, teoricamente em prol da salvaguarda da boa-fé e da segurança jurídica dos contribuintes, que a justiça estivesse realisticamente sendo feita em meio à uma eficácia dita como ex nunc pelo órgão, que houve por bem "resguardar":

"…todos os efeitos jurídicos das relações tributárias já constituídas. Isto é, caso não tenha havido ainda lançamentos tributários por parte do Estado de destino, este só poderá proceder ao lançamento em relação aos fatos geradores ocorridos a partir da presente decisão".

E, de fato, ao excluir da modulação de efeitos da decisão proferida no RE 628.075/RS todas as discussões a título de glosa de créditos de ICMS concedidos por benefícios fiscais dados por inconstitucionais por só possuírem autos de infração já regularmente lavrados, sobretudo após toda a sólida retórica constante da decisão proferida para fins de preservação da boa-fé e da segurança jurídica dos contribuintes, o que se viu, a bem da verdade, foi uma sutil e paradoxal mitigação e restrição dos pretendidos efeitos ex nunc, então concedidos, como que numa imposição aos contribuintes de que a real justiça, dessa forma decidida, lhes estava sendo feita, quando, a bem da verdade, o que se produzia era uma, assim podemos chamar, miopia jurídica em tais contribuintes de sorte a não se darem conta de que a justiça que se lhes era colocada à frente, de justiça, não tinha efetivamente nada.

Noutras palavras, o que o STF estabeleceu com a referida modulação de efeitos foi uma sensibilidade de justiça meramente ilusória, cujo relevo ganhou força pela plenitude da seduzente retórica utilizada em sua justificativa que, pensamos, nos fez transparecer um pseudo-hasteamento das bandeiras da boa-fé e da segurança jurídica tributárias.

A situação concreta aqui relatada já está posta. A Matrix, como a de Neo, já está materializada pelo STF. A figura de Neo, aqui, portanto, só pode nos fazer representar pela esperança de sua corporificação via respeito maior e pleno à atual Constituição Federal, somente esta, sim, hábil a liberar os contribuintes de ilusões jurídicas a que estão sendo, por vezes, cegamente submetidos a pretexto de pseudorrealidades condutoras de pseudorrealizações da justiça, que, no nosso tema, foi de encontro com os ideais verdadeiramente republicanos, calcados que são, sobretudo, no primado da igualdade.

De fato, andou mal, sempre com todo o respeito, o colendo STF ao discrepar contribuintes sem, ou com, auto de infração contra si lavrados para serem, ou não, abarcados pelos efeitos ex nunc da modulação então operada, sendo tal fator de dicrímen absolutamente antiisonômico, já que, com ou sem auto de infração, os contribuintes estavam numa mesmíssima posição sob o ponto de vista do direito material então decidido, e todos, sem exceção, acreditavam na mesma presunção de validade dos benefícios fiscais lhes concedidos e, ainda, na própria orientação que até então lhes era favorável em âmbito do STJ, além de, para aqueles que tinham auto de infração lavrado, nem mesmo lhes terem sido sopesado que o auto de infração, ato administrativo que é, enquanto ainda alvo de litígio, nenhuma certeza e exigibilidade revelaria.

Neo, de Matrix, ao "dizer" às máquinas que não conhecia o futuro, que não sabia como tudo acabaria, mas, que, sabia como tudo começaria, nos dá a grande dica para se vencer a grande ilusão de justiça que por vezes, como no caso tributário aqui aventado, os contribuintes se acometem.

Para isso, bastaria efetivamente personificar-se na figura de Neo a própria figura de nossa Carta Suprema, soberana e que, por certo, uma vez efetivamente respeitada, os tiraria (contribuintes) dessa atual Matrix geradora de uma grande, porém ilusória, visão de justiça.

Que, enfim, na busca por essa disrupção, a "pílula vermelha", aquela tomada por Neo, quando decide oferecer resistência à Matrix, em detrimento da "pílula verde", que significava manutenção do então status de comodidade tal como imposta aos humanos pelas máquinas, seja sempre o substrato fértil daqueles que compõem a Corte Suprema, exercitando a exegese de suas normas, mantendo-nos esperançosos de que a justiça nos seja sempre um fim real em si mesma considerada, como virtude suprema, e não como mero predicado ilusoriamente imposto.

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