Opinião

Lei Rouanet ou dinheiro público de prefeituras? O que diz a Lei de Licitações

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  • Igor de Oliveira Zwicker

    é doutor em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará) mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (PA) especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Ucam (RJ) e em Gestão de Serviços Públicos pela Unama (PA).

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3 de junho de 2022, 14h03

Tomou conta da discussão popular, dos noticiários às conversas de bar, das tribunas às redes sociais, a utilização de dinheiro público para pagamento de vultosas quantias a artistas sertanejos populares.

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Cantor Gusttavo Lima, centro da polêmica
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Não me habilito a falar da Lei Rouanet, mas posso, tranquilamente, falar sobre as contratações públicas, porque fui, por quase uma década, assessor jurídico de tribunal e, portanto, fiz, em mais de dois mil pareceres, o controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação, na forma do artigo 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993 (artigo 53 da Lei nº 14.133/2021).

A grande verdade é, que sim, a Lei de Licitações não permite que se faça o adequado controle do dinheiro público, a ensejar teratologias como a pretensa contratação do cantor Gusttavo Lima — que tomo aqui apenas como um dos muitos exemplos — para se apresentar na pequena cidade de Teolândia, na Bahia, que conta com pouco mais de 15 mil habitantes[1], com pagamento de cachê de R$ 704 mil, curiosamente poucos meses após a cidade ser arrasada por duas enchentes, que deixaram sequelas irreversíveis na cidade, como moradores desabrigados e estradas destruídas — e a própria prefeita da cidade ter declarado que não seria capaz de "contornar a crise sozinha", a ponto de pedir dinheiro via Pix[2] aos teolandenses e se utilizar de auxílio do governo federal[3].

Para tanto, faço um resgate desde a Lei nº 8.666/1993 — ainda em vigor, inclusive, paralelamente à Lei nº 14.133/2021, na forma do artigo 193, II, desta última, até a data-limite de 31 de março de 2023[4].

Na forma do artigo 25, III, da Lei n. 8.666/1993, é inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial para a contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, "desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública".

Na forma do artigo 26 da Lei nº 8.666/1993, as situações de inexigibilidade devem ser necessariamente justificadas e o processo será instruído, entre outros, com a razão da escolha do artista e a justificativa do preço.

Quanto à razão da escolha, o Tribunal de Contas da União (TCU) há muito já decidiu que a escolha de pessoas naturais, nos processos de inexigibilidade, é discricionária, "dado que cada ser humano é único", tendo como paradigma a Decisão nº 439/1998-TCU-Plenário, Rel. Min. Adhemar Paladini Ghisi, DOU de 23/7/1998.

A evolução da jurisprudência[5] do TCU foi tamanha a ponto de o Tribunal reconhecer que até pessoas jurídica são "únicas", tendo como paradigma o Acórdão n. 2616/2015-TCU-Plenário, Rel. Min. Benjamin Zymler, julgado em 21/10/2015[6], assim ementado:

"Nas contratações diretas por inexigibilidade de licitação, o conceito de singularidade não pode ser confundido com a ideia de unicidade, exclusividade, ineditismo ou raridade. O fato de o objeto poder ser executado por outros profissionais ou empresas não impede a contratação direta amparada no art. 25, inciso II, da Lei 8.666/93. A inexigibilidade, amparada nesse dispositivo legal, decorre da impossibilidade de se fixar critérios objetivos de julgamento."

A Lei nº 8.666/1993 ainda traz a "benesse" no artigo 32, §1º, de dispensar toda a documentação habilitatória do futuro contratado, se pessoa natural, em contratações de até R$176 mil[7], e, se pessoa jurídica, nas mesmas condições, mantendo-se a exigência apenas quanto à regularidade perante a seguridade social e o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) — mas não em razão da Lei de Licitações e sim por força dos arts. 195, §3º, da Constituição da República e 2o da Lei nº 9.012/1995, respectivamente.

A nova Lei de Licitações, em comparação com a Lei nº 8.666/1993, traz as mesmíssimas normas — e portanto, em tese, a jurisprudência deve ser mantida como está —, conforme se depreende dos artigos 72 e 74, II, da Lei nº 14.133/2021.

A única mudança, de fato, ocorreu com a "benesse" que havia no artigo 32, §1º, da Lei nº 8.666/1993, pois, com o atual artigo 68, §1º, da Lei nº 14.133/2021, não há, em tese, a dispensa da documentação para aferição da habilitação do futuro contratado, mas apenas a sua substituição ou supressão, no todo ou em parte, "por outros meios hábeis a comprovar a regularidade do licitante, inclusive por meio eletrônico" (grifo nosso).

Portanto, o que se vê é que, mesmo "dentro da lei", como se diz no jargão popular, é possível fazer sangrar o erário, muito embora isso não lhe retire o caráter de ilicitude.

Ora, se, na esfera privada, comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, exceda manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes — conduta aferível objetivamente, inclusive —, que dirá na esfera pública, jungida às normas-princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade administrativa, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

É bem verdade que os artistas, ao fim e ao cabo, vivem de cachês, estando numa zona de penumbra a possibilidade de punição por oferecerem seus serviços artísticos a municípios paupérrimos sob condições milionárias[8].

Porém, é indene de dúvidas que a conduta do gestor público — jamais — pode ser tida como obediente a normas-princípios como da legalidade em sentido estrito; da finalidade (pública); da moralidade administrativa; da eficiência; da motivação — não a formal, declarada, mas a sub-reptícia, a sorrateira, a real motivação, cuja aferição, nesses casos (e o pequeno município de Teolândia, na Bahia, é um bom exemplo) pode ser aferida objetivamente; do interesse público primário — portanto da própria coletividade, e não o interesse público secundário da máquina estatal; e da razoabilidade e da proporcionalidade, além da aferição da técnica da juridicidade e o respeito aos direitos fundamentais.

Sempre digo que é deliciosa a publicidade da internet e a atual compulsão do ser humano pela própria publicização, nas redes sociais, porque o mal, por si só, se revela; o grande problema é a impunidade — e que ela nunca prevaleça.


[1] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades e estados: Teolândia. [S.d.]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ba/teolandia.html. Acesso em: 3 jun. 2022.

[2] Significa "pagamento instantâneo brasileiro". BANCO CENTRAL DO BRASIL. O que é Pix? [S.d.]. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/pix. Acesso em: 3 jun. 2022.

[3]  FOLHA DE S.PAULO. MP quer cancelar show de Gusttavo Lima em cidade atingida por enchentes na BA: promotora diz que 'não é possível' que prefeitura que pediu pix para socorrer desabrigados pague R$ 704 mil ao cantor. Publicado em: 3 jun. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/06/mp-quer-cancelar-show-de-gusttavo-lima-em-cidade-atingida-por-enchentes-na-ba.shtml. Acesso em: 3 jun. 2022.

[4]  Após decorridos dois anos da publicação oficial da Lei n. 14.133/2021, ocorrido em 1º de abril de 2021, portanto a partir de 1º de abril de 2023, a Lei n. 8.666/1993 restará totalmente revogada e restará vigente apenas aquela primeira.

[5]  Embora a jurisdição, em sentido estrito, seja exclusiva do Poder Judiciário, é fato que a própria Constituição da República, no seu artigo 73, caput e §3º, diz que os ministros do TCU têm as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos ministros do Superior Tribunal de Justiça, aplicando-se-lhes, quanto à aposentadoria e pensão, as normas constantes do art. 40, e que o TCU é tem "jurisdição" (textuais) em todo o território nacional, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no art. 96 (competência privativa de tribunais judiciários).

[6]  Conferir, ainda, o Boletim de Jurisprudência n. 104 e o Informativo de Licitação e Contratos n. 264, ambos do TCU.

[7]  Art. 32, §1º, combinado com o art. 23, II, "a", ambos da Lei n. 8.666/1993, e com o art. 1º, II, "a", do Decreto n. 9.412/2018.

[8]  É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, na forma do art. 5º, XIII, da Constituição da República.

Autores

  • é doutor em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará); mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (PA); especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UCAM (RJ) e em Gestão de Serviços Públicos pela Unama (PA).

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