Opinião

Interpretação do negócio jurídico e o novo artigo 113 do CC/02 (Parte 1)

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3 de junho de 2022, 7h02

Decidimos tratar na primeira parte deste ensaio de aspectos relativos às alterações imprimidas pela Lei da Liberdade Econômica no artigo 113, CC/02. Muito se tem escrito que as regras, agora positivadas nos incisos do artigo 113, CC/02, não são verdadeiras novidades no rol de regras de interpretação do negócio jurídico. Ainda que, em certa medida, esta afirmação seja verdadeira, ao se distanciar desta constatação pautada numa análise mais focada no seu aspecto inovativo, percebe-se que a alteração legislativa em comento, sob um retrato maior deste cenário legislativo, revela uma significativa modificação — histórica e de controlabilidade da atividade do intérprete, por exemplo — do posicionamento do legislador a respeito do tema.

O enfoque dado a esta primeira parte se limita, portanto, a comentar o processo legislativo que resultou na edição da Lei da Liberdade Econômica, mais especificamente o que se passou em relação às regras de interpretação do negócio jurídico. Tratar-se-á nas partes que se seguirão especificamente das regras agora positivas no artigo 113, do CC/02, e o que representam para o estudo da interpretação do negócio jurídico.

As recentes alterações promovidas no artigo 113, do CC/02, que se apresenta como principal dispositivo a ditar regras interpretativas do negócio jurídico do Código Civil Brasileiro, como dito, operaram-se pela chamada Lei da Liberdade Econômica (Lei n° 13.874/2019) que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, e "estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador" (artigo 1.º).

A Lei n° 13.874/2019 derivou da Medida Provisória n° 881/2019 editada pelo  presidente da República em 30/4/2019. Todavia, no que se refere às regras relativas à interpretação do negócio jurídico, anota-se que poucas estavam previstas originalmente na Medida Provisória, as quais somente vieram a ser acrescidas ao longo do processo legislativo que resultou no acréscimo de dois parágrafos e cinco incisos ao artigo 113, do CC/02.

Sua tramitação ocorreu em regime de urgência (artigo 62, da CF/88), e contou com 306 emendas formuladas por deputados(as) e senadores(as) da república. Relativamente às regras de interpretação, em consulta ao site da Câmara dos Deputados[3], poucas foram as emendas sugeridas[4] a seu respeito.

Referida lei, como se sabe, não alterou exclusivamente o artigo 113, do CC/02, mas promoveu amplas e significativas alterações em importantes dispositivos legais, como, por exemplo, na figura da desconsideração da personalidade jurídica (artigo 50, do CC/02).

Quanto ao tema deste ensaio, de partida vale notar que havia a previsão de nova redação para o artigo 423, do CC/02, que felizmente não veio a ser convertida em lei, que dispunha o seguinte: "Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas que gerem dúvida quanto à sua interpretação, será adotada a mais favorável ao aderente. Parágrafo único. Nos contratos não atingidos pelo disposto no caput, exceto se houver disposição específica em lei, a dúvida na interpretação beneficia a parte que não redigiu a cláusula controvertida." (grifo nosso).

O equívoco existente em referido dispositivo era semelhante ao que se verificava, por exemplo, no artigo 535, do CPC/1973, que previa na sua redação original que seriam cabíveis embargos de declaração, dentre outras hipóteses, em caso de dúvida. Referido dispositivo veio a ser modificado pela Lei n° 8.950/1994 porque a dúvida é um estado de espírito[5], logo, subjetivo e próprio da parte, que diferentemente das demais hipóteses de cabimento dos embargos de declaração (omissão, erro, contradição e obscuridade) não poderia ser objetivamente demonstrada, no sentido de se poder confrontar entre o que se decidiu e o que deveria se decidir de acordo com as alegações apresentadas pelas partes.

O mesmo equívoco ocorria com a proposta de nova redação para o artigo 423 contido na Medida Provisória n.°881/2019, pois a dúvida sobre o sentido das cláusulas contratuais é estado próprio do indivíduo, que poderá ou não surgir a depender do processo de interpretação desenvolvido pela parte ou pelo juízo. Ademais, veja-se que a redação não era dotada da melhor técnica ao se verificar que se fala em "dúvida quanto à sua interpretação". Como se sabe, a palavra interpretação pode ser usada para designar o procedimento de atribuição de sentido, ou para se referir ao próprio resultado desta atividade[6]. Deste modo, o termo "interpretação" melhor seria substituído pelo termo "significação", porque a dúvida é sobre o sentido, resultado da interpretação, e não dúvida a respeito do processo de interpretação, que agora é orientado pelas regras do artigo 113, CC/02.

Melhor é a redação que já constava e ainda consta do artigo 423[7] que emprega critérios objetivos, dispondo que a interpretação mais favorável ao aderente ocorrerá quando houver, no contrato concluído por adesão, cláusulas ambíguas e contraditórias (situações que podem levar à incerteza quanto ao seu sentido).

A ambiguidade, por sua vez, é uma característica das palavras que pode ser objetivamente constatada em razão da verificação da pluralidade de possibilidades de usos correntes que determinada palavra pode ser empregada[8]. Isto ocorre porque aquela palavra pode não ter sido utilizada no sentido oficial da língua, mas, por exemplo, de acordo com o código de comunicação utilizado numa determinada localidade. Assim ocorrendo, pode existir dúvida[9] por parte do intérprete se o sentido a se dar à disposição será aquele dado pela comunidade ou não. Neste sentido, vale a leitura de trecho de autoria do Prof. Tércio Sampaio Ferraz[10] que, a despeito de se tratar de interpretação de lei, também se aplica em nosso entender ao negócio jurídico: "Ao disciplinar a conduta humana, as normas jurídica usam palavras, signos linguísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser. Esse uso oscila entre o aspecto onommasiológicoda palavra, isto é, o uso corrente para a designação de um fato, e o aspecto semasiológico, isto é, sua significação normativa. Os dois aspectos podem coincidir, mas nem sempre isto ocorre".

A mesma objetividade é verificável a respeito do que se entende por contradição, que ocorre quando, após a sua interpretação, duas disposição do contrato não poderão ser executadas pois conflitam entre si.

Outra disposição constante da Medida Provisória n° 881/2019 previa a inserção do artigo 480-A no Código Civil com a seguinte redação: “Artigo 480-A. Nas relações interempresariais, é licito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual". Referido dispositivo também não veio a ser inserido, nesses termos, no Código Civil.

Vale notar que não fazia sentido se conferir autonomia negocial para se estabelecer somente parâmetros objetivos de interpretação para as relações interempresariais, pois tal distinção conflitaria com a presunção de paridade propugnada entre contratos civis e empresariais estabelecida pelo novo artigo 421-A. O artigo 480-A, com modificação na sua parte inicial, transformou-se no atual artigo 421-A,I, do CC/02[11], que está em linha com o disposto no novo parágrafo segundo do artigo 113, CC/02.

Quanto à proposta de alteração do artigo 113, CC/02, dada a peculiaridade brasileira de carência de registros históricos sobre propostas de alterações dos códigos civis brasileiros relativamente às regras de interpretação, cola-se a justificativa apresentada pelo deputado Vinicius Poit: "O intuito da norma é impedir que o Estado intervenha na economia. Firme nesse propósito, entendo que é necessário que seja realizada uma alteração no artigo 113 do Código Civil, que regula o princípio constitucional da boa-fé objetiva, no sentido de regular como deve ser efetivada a interpretação desse princípio em relação às atividades empresariais. Lembrando que esse dispositivo pautará como serão interpretados contratos e relações privadas em contendas e demandas judiciais e administrativas país a fora, precisamos delimitar de forma mais clara como se dará essa ação".

A proposta de alteração do artigo 113, CCC/02, em grande medida foi acolhida, realizando-se apenas ajustes pontuais na proposta inicial. Uma rápida leitura da atual configuração do novo artigo 113, CC/02, transparece ao operador do direito a impressão de que as regras agora positivadas não se tratam propriamente de novidades, causando uma possível indiferença naqueles que pensam que a inserção de referidas regras no Código Civil poderia resultar numa revolução dos parâmetros a que os intérpretes do negócio jurídico deverão observar ao definir o sentido da declaração negocial.

Se isso é verdade, por outro lado, cumpre assinalar que o objetivo do legislador foi outro, isto é, de positivar aquelas regras consagradas ao longo de muitos anos pela prática negocial, pela doutrina e pela jurisprudência.

 Vale lembrar também que as regras de interpretação do negócio jurídico têm origem em um âmbito social muito mais amplo do que o estritamente jurídico, porque tem por função estabelecer condições de conhecimento e entendimento da comunicação negocial dos contratantes. Não é por uma alteração legislativa que as pessoas deixarão de, em suas relações negociais, se comunicar como tradicionalmente o fizeram por centenas de anos para atender a um novo modo de se expressar determinado pelo legislador[12].

 As formas de se expressar e se compreender negocialmente são parte da cultura de um povo. Assim, como bem procedeu ao legislador, deve-se buscá-las na realidade, reconhecê-las e não ditá-las[13].

Vale lembrar ainda que não é porque as recentes regras positivadas nos incisos do artigo 113, do Código Civil, já eram — ou deveriam ser — de conhecimento dos operadores do direito, que sua aplicação era, de igual forma, atendida pelo intérprete. Num cenário ideal em que todos os juízes e árbitros fossem conhecedores das complexidades existentes na temática da interpretação do negócio jurídico, e o volume de trabalho permitisse esta análise pormenorizada das regras de interpretação, quem sabe, a positivação de referidas regras seria dispensável[14].

É importante perceber que a iniciativa de positivar referidas regras no texto do Código Civil — a despeito das críticas sobre algumas de suas impropriedades assinaladas nas próximas partes deste ensaio — de imediato confere maior segurança jurídica às partes que, ao não notaram a aplicação das regras contidas no artigo 113, CC/02, podem objetivamente apontar a violação à lei cometida pelo juiz ou árbitro. Até a positivação de referidas regras, a impugnação que se fazia à interpretação de determinado dispositivo do negócio jurídico requeria apoio em doutrina e jurisprudência, ante à comedida forma de disciplinar regras desta natureza pelo legislador.

A modificação do artigo 113, CC/02, também representa relevante marco na história da legislação civil brasileira no que se refere à disciplina das regras de interpretação do negócio jurídico, pois tanto o Código Civil de 1916, como o Código Civil 2002, foram comedidos na sua disciplina.

O novo artigo 113, CC/02, rompe, conforme se verá na parte seguinte deste ensaio, com um histórico de mais de 100 anos (desde a vigência do Código Civil de 1916) de pouco se legislar sobre regras de interpretação e, principalmente, de como o legislador enxerga o papel do intérprete.

Continua parte 2


[4] Foram apenas 3 sugestões de emendas.

[5] “Ação, estado ou efeito de duvidar, de sentir desconfiança, hesitação, incerteza. Incerteza entre confirmar ou negar um julgamento ou a realidade de um fato. Hesitação entre opiniões diversas ou várias possibilidades de ação”. (Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1091).

[6] “‘A interpretação é uma atividade destinada a expor o significado de uma expressão. Mas pode ser também o resultado de tal atividade. Daí alguns autores mencionarem uma teoria da interpretação-atividade e uma teoria da interpretação-produto’”. (BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3.ª. revista e ampliada. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 37).

[7]Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”.

[8]“Propriedade que possuem diversas unidades linguísticas (morfemas, palavras, locuções, frases) de significar coisas diferentes, de admitir mais de uma leitura; anfibologia [A ambiguidade é um fenômeno muito frequente, mas, na maioria dos casos, os contextos linguístico e situacional indicam qual a interpretação correta”. (Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Op.Cit, p. 183)

[9] Dúvida que, diferentemente do mencionado no parágrafo anterior, decorre de uma incerteza a respeito dos sentidos objetivamente identificáveis dentro das reconhecidas possibilidades de serem atribuídos a determinado signo ou palavra.

[10] Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 8ªed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 210.

[11] “Art. 421-A (….). I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução”.

[12] A este respeito vale lembrar as regras de Pothier.

[13] “É de ajuste à vida, e não de rígidos tipos, que trata a atividade hermenêutica”. (grifo nosso). (MARTINS-COSTA, Judith. O método da concreção e a interpretação dos contratos: primeiras notas de uma leitura suscitada pelo Código Civil. In: Temas Relevantes do Direito Civil Contemporâneo: reflexões sobre os Cinco Anos do Código Civil. Estudos em Homenagem ao Professore Renan Lotufo. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 506).

[14] FORGIONI, Paula A. A interpretação dos negócios jurídicos II- alteração do art. 113 do código civil: art. 7º. In: Comentários à Lei da Liberdade Econômica. Coord: Floriano Peixoto Marques Neto, Otávio Luiz Rodrigues Jr e Rodrigo Xavier Leonardo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 365

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