Opinião

Princípio da intranscendência subjetiva das sanções e cadastros federais de crédito

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2 de junho de 2022, 19h27

O princípio da intranscendência subjetiva das sanções, respaldado no artigo 5º, inciso XLV, da Constituição da República Federativa do Brasil  (CRFB/88), estabelece que "nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido". Esse aspecto normativo, amplamente reconhecido na seara penal, é típica concretização do Estado democrático de Direito e, por efeito, do respeito à sistemática dos direitos e garantias fundamentais e à proibição do retrocesso social ou irreversibilidade dos direitos fundamentais ou "efeito cliquet".

Essa disposição jurídica trouxe discussões no âmbito do Direito Administrativo, tendo em vista a dúvida sobre (in)aplicação do princípio da intranscendência subjetiva das sanções a entes federativos, bem como o conflito entre essa norma e o princípio da impessoalidade, centrado no artigo 37, caput, da CRFB/88. A impessoalidade estabelece que os atos administrativos devem ser imparciais, proibindo-se quaisquer espécies de interesses ou discriminações escusas, visando a efetiva realização do interesse público e dos princípios que regem a Administração Estatal. Nessa lógica, os atos de gestores públicos não lhe pertencem estritamente, mas são intrínsecos ao Poder Público, a exemplo do artigo 37, §1º, da CRFB/88, que trata da publicidade de atos, programas, obras, serviços e campanhas de órgãos públicos.

Nesse contexto é que se estabeleceu o conflito entre os princípios da impessoalidade e o da intranscendência subjetiva das sanções, no âmbito de atos de gestacionais da res publica praticados por diferentes administradores. O Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, já decidiu que o princípio da intranscendência subjetiva das sanções veda a aplicação de sanções às administrações atuais por atos de gestão praticados por administrações anteriores, quando realizadas ações eficazes para sanar irregularidades da administração anterior, a exemplo da tomadas de contas especial, conforme STF, 1ª Turma, AC 2.614/PE, AC 781/PI e AC 2.946/PI, rel. min. Luiz Fux, julgados em 23/6/2015, Info 791. Isso porque, nesse caso, verifica-se a concretização do princípio da boa administração pública e da boa-fé objetiva do gestor atual em dirimir falhas ou ilicitudes de atos administrativos da gestão anterior que poderiam prejudicar a elaboração de eventuais parcerias financeiras com a União.

É válido ressaltar que a inscrição de entes federativos no Cauc (Cadastro Único de Exigências para Transferências Voluntárias), no Cadin (Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal) e no Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal), realizada pela União, pode dificultar certos acordos com estados e municípios. Isso porque, a União, para verificação da regularidade de recursos repassados a entes federativos mediante convênios, concretizando os princípios da moralidade e da eficiência, vide artigo 37, caput, da CRFB/88, utiliza as medidas legais acima referidas que podem impossibilitar, em um primeiro momento, a celebração de parcerias ou garantias entre a União e pessoas jurídicas de Direito Público que estejam pendentes nos referidos cadastros restritivos.

Nesse contexto, outro caso interessante é a situação em que a União inscreve conjuntamente nos cadastros não apenas a entidade responsável pela irregularidade de regras de um dado convênio federal, mas o próprio ente federativo vinculado à referida entidade. O STF, analisando caso concreto semelhante, julgou com base no princípio da intranscendência subjetiva das sanções, posto que "os Estados-membros e o Distrito Federal, em consequência, não podem sofrer limitações em sua esfera jurídica, motivadas só pelo fato de se acharem administrativamente vinculadas as autarquias, as entidades paraestatais, as sociedades sujeitas a seu poder de controle e as empresas governamentais alegadamente inadimplentes e que, por tal motivo, hajam sido incluídas em cadastros federais (Cauc, Siafi, Cadin, v.g.)", STF. Plenário. ACO 1848 AgR, rel. min. Celso de Mello, julgado em 6/11/2014.

Por outro lado, há decisões do STF em sentido contrário do exposto alhures, não reconhecendo a incidência do princípio da instranscendência subjetiva das sanções no caso concreto, a exemplo dos julgados STF, 1ª Turma, ACO 732/AP, rel. min. Marco Aurélio, julgado em 10/5/2016 (Info 825), e STF, Plenário, ACO 3.083, rel. Ricardo Lewandowski, julgado em 24/8/2020. Contudo, o entendimento majoritário é no sentido da aplicação do princípio em análise, tendo em vista os enunciados de súmula 615 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e 46 da Advocacia-Geral da União (AGU).

Nessa seara, não se deve omitir a imprescindibilidade da aplicação dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, nos termos do artigo 5º, inciso LV, da CRFB/88, para inscrição de Estado-membro no Cauc, Cadin e Siafi. Isso porque, a finalização do registro em cadastros de existência de débito no âmbito federal feita inexoravelmente de maneira unilateral pode conter razões políticas, indo além da questão meramente financeira.

Com efeito, o STF já decidiu que cabe à União se abster "de proceder à inscrição do estado de Mato Grosso no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), no Serviço Auxiliar de Informações para Transferências Voluntárias (Cadin) e no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (Cauc), até o exaurimento da Prestação de Contas Especial, observados os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório", STF, Plenário, ACO 2.892 AgR/DF, rel. orig. min. Edson Fachin, red. p/ o ac. min. Alexandre de Moraes, julgado em 11/9/2019 (Info 951). Essa medida se justifica pelo fato de que a inscrição nos referidos cadastros pode impossibilitar a repartição constitucional de verbas das receitas voluntárias. É válido expor que a postergação da inscrição não obsta que a União, de plano, suspenda o repasse de finanças ou paralise a execução de convênios.

Outra situação é que a reprimenda ou sanção sofrida por um ente não pode afetar outros membros de consórcio público. Segundo entendimento do STJ, caso um consórcio público celebre convênio com a União, por meio do qual estão fixados repasses federais, o fato de um dos entes integrantes do consórcio possuir pendência inscrita no Cauc não pode impedir que o consórcio receba os valores prometidos — STJ, 2ª Turma, REsp 1.463.921-PR, rel. min. Humberto Martins, julgado em 10/11/2015 (Info 577). 

Ademais, há outros casos fundamentais e específicos para a compreensão satisfatória da temática em estudo, quais sejam: as atividades de pavimentação, drenagem e reforma não são consideradas ação social, conforme artigo 26 da Lei 10.522/2002, com vistas à suspensão de restrição no cadastro federal de créditos não quitados, para recebimento de transferências de recursos da União.

Eis os entendimentos do STJ referentes às situações acima, "a restrição para transferência de recursos federais a município que possui pendências no Cauc não pode ser suspensa sob a justificativa de que os recursos destinam-se à pavimentação e drenagem de vias públicas"STJ, 1ª Turma, REsp 1.372.942-AL, rel. min. Benedito Gonçalves, julgado em 1º/4/2014 (Info 539); STJ, 2ª Turma, REsp 1.527.308-CE, rel. min. Herman Benjamin, julgado em 16/6/2015 (Info 566); "a restrição para transferência de recursos federais a município que possui pendências no Cauc não pode ser suspensa sob a justificativa de que os recursos destinam-se à reforma de prédio público" — STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 1.439.326-PE, rel. min. Mauro Campbell Marques, julgado em 24/2/2015 (Info 556).

Portanto, vê-se, em aspectos gerais, a necessidade de respeito aos princípios constitucionais, para devida inscrição de entes federativos em cadastros de consulta de débitos com a União, posto que tal instrumento não deve servir subterfúgios para efetivação de interesses escusos, ou seja, contrários ao artigo 37, caput, da CRFB/88 e ao próprio interesse público, no que concerne à preservação e ao aperfeiçoamento da res publica, por meio da moralidade administrativa, da boa-fé objetiva e, em moldes atuais, de práticas de integridade.

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