Opinião

Monitoração biológica no eSocial e os direitos constitucionais fundamentais

Autor

  • Frederico Borges Silva

    é técnico de Segurança do Trabalho sócio-proprietário da empresa Seg Gram Saúde e Segurança do Trabalho LTDA empresa prestadora de Consultoria e Assessoria em Segurança e Saúde Ocupacional (SSO).

25 de julho de 2022, 16h09

Com o advento do eSocial (instrumento de unificação da prestação das informações referentes à escrituração das obrigações fiscais, previdenciárias e trabalhistas, nos termos do expresso no Decreto n.º 8.373, de 11 de dezembro de 2014), corpo integrante do Sped (Sistema Público de Escrituração Digital), tem-se o objetivo junto ao governo, em linhas gerais, de simplificar (e unificar) o cumprimento das obrigações tributárias acessórias, atendendo às necessidades da Receita Federal, do Ministério do Trabalho e Previdência, da Previdência Social, da Caixa Econômica Federal e da Justiça do Trabalho (havendo a necessidade). Nesse sentido, REZENDE et al. (2017, p. 13) esclarecem:

"Assim, ao cumprir suas obrigações mensais, o empregador não precisará preencher vários formulários, declarações e registros públicos (exemplos: GFIP, Rais, Caged, Dirf, CAT), pois passará a enviar ao governo apenas os arquivos do eSocial (e também da Escrituração Fiscal Digital das Retenções e Informações da Contribuição Previdenciária Substituída  EFD-Reinf), que terão todas as informações necessárias à medida que forem ocorrendo e dentro do prazo legal para isso."

Logo, visa-se haver no eSocial a deposição de dados de forma centralizada, onde cada ente governamental encontrará as informações de que precisar, úteis à sua análise.

Faz-se necessário ressaltar que, o eSocial não altera a legislação vigente e o envio dos arquivos em sua plataforma (software) deverá obedecer aos prazos fixados pelas leis atuais referentes a cada evento da esfera trabalhista, dentre outras.

E, dentre os vários eventos (não periódicos  eventos que podem ocorrer a qualquer momento no dia a dia das empresas  e periódicos  eventos que contêm as informações que ocorrem constantemente (regularmente) na empresa) existentes junto ao eSocial, há os eventos ligados à saúde, à higiene e à segurança do trabalho ou "SST (segurança e saúde no trabalho) para o eSocial", assim, popularmente, conhecido, para serem enviados pelo empregador junto ao software governamental em comento.

Nesse diapasão, tratando-se dos eventos ligados à saúde, à higiene e à segurança do trabalho junto à plataforma governamental ora em análise, atualmente, depara-se com os seguintes eventos não periódicos: S-2210 (Comunicação de Acidente de Trabalho); S-2240 (Condições Ambientais do Trabalho); e S-2220 (Monitoramento da Saúde do Trabalhador). E seria este último evento não periódico, S-2220, que trata do monitoramento da saúde do trabalhador, o cerne (o ponto central) deste artigo, uma vez que, nos termos da Instrução Normativa Pres/INSS n.º 128, de 28 de março de 2022, que "Disciplina as regras, procedimentos e rotinas necessárias à efetiva aplicação das normas de direito previdenciário", dispositivo legal em vigência, não há referência a monitoração biológica (ou monitoramento da saúde) do trabalhador.

Nessa linha de raciocínio, indaga-se: persistir no envio do evento não periódico S-2220 (Monitoramento da Saúde do Trabalhador), a monitoração biológica no eSocial, fere os direitos constitucionais fundamentais da intimidade e da vida privada?

Inicialmente, é importantíssimo ressaltar que, consoante a Carta Magna que se encontra vigorando no país, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (artigo 5º, inciso X, da Constituição da República), e que, a intimidade, bem como a vida privada, fazem parte do contexto legal que leva o Direito, o ordenamento jurídico brasileiro, a direcionar ações no sentido de promover, proteger e resguardar constantemente a dignidade da pessoa humana, bem jurídico protegido pelas leis em vigor.

Nesse sentido, o desembargador do Trabalho na Bahia (TRT da 5ª Região) e pós-doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, MEIRELES (2019, p. 79), ensina que:

"No atual estágio de nosso desenvolvimento civilizatório já se sedimentou o entendimento de que o patrimônio da pessoa não é somente composto pelos bens que estão no comércio jurídico, ou seja, que podem ser objeto de disposição jurídica (bens móveis e imóveis, corpóreos ou incorpóreos, etc.). A eles se agregam, também, os bens que são inerentes à pessoa humana em sua dignidade. Ao lado dos bens materiais, pois, inclui-se, no patrimônio da pessoa os bens jurídicos inerentes à liberdade, vida, igualdade, dignidade, saúde, honra, recato, segredo (pessoal e profissional), imagem, etc. Não se tem, assim, o patrimônio da pessoa apenas composto pelos seus bens materiais ou pelo produto de seu trabalho. Os valores inerentes à pessoa humana, em sua integralidade e dignidade também compõem o patrimônio protegido juridicamente. Daí porque tanto é um bem jurídico a coisa material, como o bem-estar da pessoa. Ambos, cada qual na sua medida, fazem bem à pessoa, daí porque são bens jurídicos, pois bonificam (dar proveitos) e geram prazer (felicidade) ao ser humano".

Logo, conforme a doutrina aplicada ao caso em análise, a dignidade da pessoa humana se encontra como bem jurídico tutelado pelo Direito brasileiro, além de fundamento da República Federativa do Brasil, consoante o expresso no artigo 1º, inciso III, da CR (1988), in verbis:

"A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III- a dignidade da pessoa humana;".

Ainda, fortalece esse entendimento, o desembargador dito acima, MEIRELES (2019, p. 81), dissertando acerca dos bens, patrimônio e danos imateriais, nos termos seguintes:

"Pode-se, assim, definir, para a ciência jurídica, o bem como ‘algo’ que é relevante para o indivíduo ou para a sociedade como um todo e que, dada sua significação social, é protegido juridicamente. A vida, a saúde, a honra, as coisas, a liberdade, o meio-ambiente, por exemplo, são bens de grande relevância para o indivíduo. Bem jurídico, assim, é 'um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual, reputado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem em sociedade' e, por isso mesmo, protegido juridicamente. Parte-se do que deve ser protegido a partir dos valores que são valiosos para a comunidade. 'É um interesse humano necessitado de proteção'. Bem jurídico define-se por um conceito relacional. 'Uma relação considerada como positiva, valiosa – como um bem (no sentido de algo que agrada) – entre um 'algo', isto é, entre uma realidade e um sujeito'. Bem jurídico, assim, seria algo que faz bem (agrada; satisfaz; é valioso; positivo) a um sujeito. E o Direito procura proteger a pessoa humana em toda a sua integralidade, física ou moral, logo, cabe também tutelar os direitos da personalidade e outros que são inerentes ao indivíduo".

Assim, tem-se que a intimidade e a vida privada, bem como a honra e a imagem das pessoas, são bens jurídicos protegidos juridicamente (além de direitos invioláveis preconizados na Carta Magna vigente).

Assim também já entendia o Conselho Federal de Medicina, quando da publicação da sua Resolução nº 1.715, de 08 de janeiro de 2004, de forma mais específica, no seu artigo 2º, caput, que assim expressa:

"É vedado ao médico do trabalho, sob pena de violação do sigilo médico profissional, disponibilizar, à empresa ou ao empregador equiparado à empresa, as informações exigidas no anexo XV da seção III, 'SEÇÃO DE RESULTADOS DE MONITORAÇÃO BIOLÓGICA', campo 17 e seguintes, do PPP, previstos na Instrução Normativa nº 99/2003".

Corrobora o entendimento sobredito o Médico do Trabalho, Perito Médico Previdenciário do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), FURTADO et al. (2016, p. 429), em doutrina literária, dissertando a respeito da Comissão Internacional de Saúde no Trabalho (ICOH), verbis:

"O propósito da Saúde no Trabalho é servir à saúde e ao bem-estar dos trabalhadores, individualmente e coletivamente. O exercício da Saúde no Trabalho deve ser realizado de acordo com os mais elevados padrões profissionais e princípios éticos. Os profissionais de Saúde no Trabalho devem contribuir para a saúde ambiental e comunitária. Os deveres dos profissionais de Saúde no Trabalho incluem a proteção da vida e da saúde do trabalhador, respeitando a dignidade humana e promovendo os mais elevados princípios éticos na implementação de políticas e programas de Saúde no Trabalho. A integridade na conduta profissional, a imparcialidade e a proteção da confidencialidade dos dados de saúde e a privacidade dos trabalhadores constituem parte destes deveres".

Também expressam acerca desta temática, ou seja, quanto à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, bem como da honra e da imagem das pessoas, como direitos e garantias fundamentais do ser humano, mesmo diante de solicitação governamental, como o que ocorre no caso do eSocial, de forma específica, quanto à monitoração biológica, o Médico do Trabalho, Perito Médico do Trabalho, PEREIRA et al. (2021, p. 439), em doutrina atualizada, nos seguintes termos:

"Então, cabe ao Médico do Trabalho aperfeiçoar seu exercício profissional e deter a habilidade de proteger a saúde do trabalhador no domínio jurídico retratando a realidade por fins éticos à profissão. Além disso, é necessário vínculo com o Médico do INSS para reduzir os casos divergentes que acabam por atrasar ou prejudicar a vida do trabalhador que age de maneira coerente. Seguir isso é cumprir o que é estabelecido no CEM, inciso IV: O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade".

Conforme todo o contexto explícito neste artigo, é importante destacar (faz-se necessário pontuar também), visando à defesa dos direitos individuais indisponíveis (que concernem a um interesse público, como por exemplo, o direito à vida, à saúde, etc.), o ensinado por MEIRELES (2019, p. 72), Desembargador do Trabalho na Bahia (TRT 5ª Região) e pós-doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nos termos:

"O empregador deve, ainda, acompanhar de modo regular o estado de saúde do trabalhador com base nos riscos inerentes ao trabalho. Esse monitoramento, porém, somente pode ser realizado com o consentimento dos trabalhadores. Em qualquer caso, cabe optar por realizar exames ou testes que causem o mínimo de transtorno para o trabalhador e que sejam proporcionais ao risco. As medidas de controle e de vigilância sanitária dos trabalhadores será realizada respeitando a privacidade e a dignidade do trabalhador e da confidencialidade de todas as informações relacionadas com a sua saúde, e os resultados dessa monitoração devem ser comunicados aos trabalhadores afetados. Outrossim, os dados relativos à vigilância da saúde dos trabalhadores não podem ser utilizados para fins discriminatórios ou em detrimento do empregado. O acesso à informação médica deve ser limitado ao pessoal médico e as autoridades de saúde para efetuar a vigilância da saúde dos trabalhadores, e não pode ser fornecida para outra pessoa sem o consentimento do trabalhador. Por fim, nos casos em que a natureza dos riscos inerentes ao trabalho o exigir, o direito dos trabalhadores de um acompanhamento regular do seu estado de saúde deve ser prorrogado para além da cessação da relação de emprego".

Nesse sentido, conforme o teor do expresso acima, nota-se a real (e necessária) importância do resguardar da privacidade e da confidencialidade de todas as informações relacionadas à saúde do trabalhador de uma instituição, seja ela pública ou privada.

O resguardar do sigilo médico, nos termos da lei, além de funcionar como algo moral — tão fundamental na sociedade, obedece princípios (fontes) legais, como se encontra explícito no Código de Ética Médica. Logo, o Médico do Trabalho FURTADO et al. (2016, p. 427 e 428), dissertam:

"É vedado ao médico: Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade."

Percebe-se, conforme o disposto supra, que o segredo (sigilo) médico é a regra, sendo a exceção se "o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade", o que, em muitos momentos  na maioria das vezes, não ocorre (o silêncio não coloca em risco a saúde dos empregados ou da comunidade), principalmente no que diz respeito a realização de envio junto a órgão governamental, no tocante ao caso em comento, quanto ao envio do evento S-2220 (Monitoramento da Saúde do Trabalhador) no eSocial.

Além de todo o externado acima, não se pode esquecer que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37, caput, da CR/1988).

Assim, de encontro com a temática deste artigo, no que diz respeito ao princípio constitucional, bem como administrativo, da moralidade (princípio explícito na Constituição Federal, conforme expresso acima), aplicado tanto ao servidor público, bem como à Administração Pública, seja ela direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e indireta (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista), o mestre em Direito do Estado BOLZAN (2016, p. 27), ensina:

"Esse princípio exige uma atuação ética da Administração Pública. Isso significa que o agente público deverá distinguir não só o ato legal do ilegal, o justo do injusto, o conveniente do inconveniente, o oportuno do inoportuno, mas principalmente o honesto do desonesto (Código de Ética do Servidor Federal  Decreto nº 1.171, II). Assim, o agente público deverá atuar segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé (artigo 2º, parágrafo único, IV, da Lei nº 9.784/99)".

Por conseguinte, consoante todo o expresso acima, de forma sucinta e conclusiva, levando em consideração o disciplinado na legislação, regulamentação e doutrinas vigentes, aplicadas ao caso em análise, mesmos cientes que no ordenamento jurídico brasileiro não há direito absoluto, porém deve-se buscar defender e aplicar a lei, as disposições legais e regulamentares, bem como em observância ao bom senso de acordo com o senso comum, à boa-fé e à defesa de direitos, entende-se, por fim, que o envio do evento S-2220 (Monitoramento da Saúde do Trabalhador) junto ao software governamental ora em comento, junto ao eSocial, fere os direitos constitucionais fundamentais da intimidade e da vida privada, bem como o da honra e o da imagem das pessoas, cuja inviolabilidade se encontra resguardada  protegida  pelo artigo 5º, inciso X, da Carta Magna em vigência no país, assegurado, caso necessário, o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Referências
Rezende, Mardele Eugênia Teixeira. eSocial aplicado às rotinas trabalhistas: o novo modelo de gestão/Mardele Eugênia Teixeira Rezende, Marilene Luzia da Silva, Ricardo Alexander Gabriel.  São Paulo: Érica, 2017. 160 p.

Brasil. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas constitucionais nº 1/1992 a 95/2016, pelo Decreto legislativo nº 186/2008 e pelas Emendas constitucionais de revisão nº 1 a 6/1994. — 51. ed. — Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017.

Responsabilidade civil no acidente de trabalho: questões processuais e materiais/Edilton Meireles — Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

Medicina do trabalho preparatório para concursos e prova de título/Coordenação de Rodrigo Menezes Furtado; Autores, Rodrigo Menezes Furtado … [et al.]. — Salvador: SANAR, 2016.

Medicina do trabalho: aspectos teóricos e práticos/Gerson Odilon Pereira, Anderson de Moura Pereira, organizadores; Aída Maria Ferrário de Carvalho Rocha Lôbo, Gabriel Lessa de Souza Maia, José Robson Casé da Rocha, co-organizadores. — Brasília, DF: Editora Venturoli, 2021.

Bolzan, Fabrício. Direito administrativo para concursos/Fabrício Bolzan. — 2. ed.  São Paulo: Saraiva, 2016.
https://www.contabeis.com.br/legislacao/187488/resolucao-cfm-1715-2004/

Autores

  • é técnico de Segurança do Trabalho, sócio-proprietário da empresa Seg Gram Saúde e Segurança do Trabalho LTDA, empresa prestadora de Consultoria e Assessoria em Segurança e Saúde Ocupacional (SSO).

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