Opinião

Retirada imotivada em sociedade limitadas com regência supletiva das normas de S.A.

Autor

  • Fernanda Regina Negro de Oliveira

    é coordenadora jurídica no Escritório Ernesto Borges Advogados especialista em Direito Processual Civil e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Comissão de Sociedade de Advogados da OAB/MS.

22 de julho de 2022, 6h30

O REsp nº 1.839.078/SP julgado em 9 de março de 2021 tratava, na origem, de uma ação declaratória de nulidade de convocação de reunião a ser realizada com o intuito de deliberar pela exclusão de sócio, tendo em conta que este já havia exercido seu direito de retirada imotivada.

Em primeiro grau, a ação foi julgada procedente, tendo em conta que a convocação da reunião se deu posteriormente ao pedido de retirada, contra o qual os demais sócios não poderiam se opor. Todavia, após a interposição de recurso, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que o sócio não poderia ter se retirado de maneira imotivada, uma vez que a sociedade limitada havia optado pela regência supletiva das normas relativas às sociedades anônimas, na qual não há o direito de retirada imotivada.

O acórdão foi reformado pelo Superior Tribunal de Justiça que entendeu pela possibilidade de retirada voluntária imotivada, ainda que o contrato social tenha optado pela regência supletiva da Lei nº 6.404/76, aplicando ao caso o artigo 1.029 do Código Civil e a garantia constitucional prevista no artigo 5º, XX da Constituição que garante a liberdade de não permanecer associado.

Sobre as normas de regência, o Código Civil dispõe, no artigo 1.053 [1], acerca da regência das sociedades limitadas pelas normas da sociedade simples em casos de omissão, além da possibilidade de regência supletiva pelas normas da sociedade anônima, caso seja de interesse dos sócios.

A doutrina majoritária na matéria, até a prolação do citado Acórdão, seguia o entendimento de que, podendo os sócios optar pela regência supletiva das normas da sociedade anônima e, o fazendo, à sociedade aplicar-se-iam essas regras, não mais havendo que se falar em aplicação das regras das sociedades simples em casos de omissão [2].

Contudo, o Ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino, acompanhado pelos demais membros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, entendeu por separar em regência subsidiária das normas das sociedade simples e regência supletiva das normas das sociedades anônimas [3].

Acrescentaram os ministros que, também o artigo 1.089 do Código Civil [4] dispõe que, mesmo as sociedades anônimas sendo regidas por lei especial, a elas também se aplica, nos casos omissos, as disposições previstas no Código.

Assim, entendeu-se por separar semanticamente o artigo 1.053 caput, que trata da regência subsidiária pelas normas da sociedade simples, do seu parágrafo único, que trata da regência supletiva (completiva) e à escolha da sociedade, pelas normas da sociedade anônima.

O caso que chegou ao STJ dizia respeito acerca da possibilidade de um sócio retirar-se imotivadamente de uma sociedade limitada que, em seu contrato social, dispôs serem aplicáveis as normas relativas às sociedades anônimas, nas quais não há tal previsão.

A análise feita pelo ministro relator foi no sentido de que, como já mencionado, aplicando-se às sociedades limitadas o disposto no regramento das sociedades simples e, dispondo o artigo 1.029 [5] do Código Civil, que o sócio pode retirar-se da sociedade de prazo indeterminado mediante simples notificação aos demais sócios, essa possibilidade é aplicável também às sociedades que optarem pela aplicação da regência supletiva das normas das sociedades anônimas.

Tal entendimento foi reforçado por dois outros grandes fundamentos, o primeiro é o fato de que a Constituição Federal expressamente garante, em seu artigo 5º, XX [6] o direito de, não o querendo, ninguém será compelido a permanecer associado e o segundo se baseia na diferenciação existente entre as sociedades limitadas e anônimas.

Essa diferenciação está principalmente no fato de serem as primeiras consideradas sociedades de pessoas, nas quais o affectio societatis (disposição em constituir e participar de uma sociedade) é componente necessário, enquanto as segundas são consideradas sociedades de capital, nas quais a participação se funda não nas pessoas, mas sim no capital social da empresa [7].

Assim, com o julgamento do Recurso Especial nº 1.839.078/SP o Superior Tribunal de Justiça, ao entender possível a retirada voluntária imotivada ainda que no contrato social esteja prevista a regência supletiva da Lei das S.A., trouxe resposta à uma questão que há muito povoava os debates doutrinários, fundamentando seu entendimento no artigo 1.029 do Código Civil e na garantia constitucional de não permanecer associado prevista no artigo 5º, XX da Constituição Federal.


[1] Artigo 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.

Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.

[2] Nesses termos, o artigo 1.053, do Código Civil, determina que as sociedades limitadas regem-se, nas omissões da disciplina da sociedade limitada, pelas normas da sociedade simples. Essa aplicação supletiva ocorrerá a menos que o contrato social preveja a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima, Lei nº 6.404/76, e desde que as regras sejam compatíveis ao regime contratual da sociedade limitada diante do caso específico em que houve sua omissão legislativa. (Sacramone, Marcelo B. Manual de Direito Empresarial. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. 9786553622418. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553622418/. Acesso em: 25 abr. 2022. Fl. 86.)

[3] Com efeito, o artigo 1.053 do CC, ao mesmo tempo em que estabelece que a sociedade limitada deve se reger subsidiariamente pelas normas da sociedade simples, expressamente autoriza, em seu parágrafo único, que o contrato social preveja a regência supletiva pelas normas da sociedade anônima. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.839.078/SP (2017/0251800-6). Relator: Paulo de Tarso Sanseverino  Terceira Turma. Brasília, 9 mar 2021. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2030014&num_registro=201702518006&data=20210326&formato=PDF. Acesso em 25 abr. 2022).

[4] Artigo 1.089. A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código.

[5] Artigo 1.029. Além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa.

[6] Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

[7] São pessoais as sociedades em que o fator pessoal é preponderante para a realização do fim social: a incapacidade, a insolvência ou a morte do sócio podem acarretar a dissolução da sociedade. Nas sociedades de capital a garantia de terceiros e alienação da participação societária fundam-se exclusivamente no capital social. (NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Empresarial. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. 9788553616190. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553616190/. Acesso em: 25 abr. 2022. Fl. 35)

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