Opinião

Réquiem da imprescritibilidade nos tribunais de contas

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21 de julho de 2022, 17h14

Há dois anos o Supremo Tribunal Federal, ao decidir o tema de repercussão geral nº 899, assentou a tese de que "[é] prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas" [1]. De lá para cá, os tribunais de contas têm temperado a decisão com os mais diversos argumentos. Trataremos aqui do mais prevalente deles, muito invocado pelo Tribunal de Contas da União: o STF teria se limitado a reconhecer a prescrição da pretensão de executar os acórdãos dos tribunais de contas.

O argumento pode fazer sentido a quem se depara superficialmente com o debate. Primeiro, porque o enunciado refere de modo específico à pretensão fundada em decisão de tribunal de contas, o que pressupõe, evidentemente, uma decisão anterior do órgão em que a pretensão possa se fundar. Segundo, porque o recurso extraordinário paradigma foi proferido exatamente em um processo de execução de um julgado do TCU. Aliás, a ementa do acórdão em que se reconheceu a repercussão geral parecia enfatizar esse aspecto:

"Administrativo. Recurso extraordinário. Execução fundada em acórdão proferido pelo Tribunal de Contas da União. Pretensão de ressarcimento ao erário. Prescritibilidade (art. 37, § 5º, da Constituição Federal). Repercussão geral configurada" [2].

Então, seguindo esse raciocínio, se o recurso extraordinário paradigmático tratava unicamente do prazo prescricional para executar decisões de tribunais de contas, pode parecer que restou em aberto a questão relativa ao prazo para o próprio julgamento pelos órgãos de controle. Não é bem assim, porém.

Antes de se demonstrar objetivamente a razão pela qual o argumento não procede, vale aqui uma primeira nota: não é nada comum que a representação judicial da União, dos estados e, quando é o caso, dos municípios, demore mais do que cinco anos para ajuizar uma execução fundada em acórdão dos tribunais de contas. Por que, então, o STF verificaria repercussão geral precisamente nessa fase?

Antes de mais nada, vale aqui uma breve volta ao cenário anterior ao julgamento dos temas nº 897 e 899 de repercussão geral.

Até aquele momento, a jurisprudência vinha interpretando de maneira bastante extensiva o direito da Fazenda Pública de ressarcir-se a qualquer tempo com base na parte final do artigo 37, § 5º, da Constituição. A orientação, de certa forma, acompanhava o espírito do tempo. Estava em voga o atropelo de diversas garantias em nome de um suposto combate à corrupção. Os nefastos efeitos dessa abordagem já são bem conhecidos, e hoje, felizmente, tem-se notado uma bem-vinda inversão na tendência tanto no entendimento dos tribunais quanto em reformas legislativas, a exemplo das que sobrevieram na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro e na Lei de Improbidade Administrativa.

O tema da prescrição ilustra bem essa mudança dos ventos. A bem da verdade, o texto do artigo 37, § 5º, da Constituição comporta uma única exceção, bastante específica:

"§ 5º. A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento."

A prescrição, como se vê, sempre deveria ter sido a regra. A ressalva constitucional vale unicamente para as ações de ressarcimento. Aliás, conforme determinou o próprio STF, ao julgar o tema n. 897, já sob essa nova inspiração garantista — um pouco antes do julgamento do tema nº 899 —, nem todas as ações de ressarcimento ao erário são imprescritíveis; apenas aquelas "fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa" [3]. Antes ainda, nessa mesma linha, a Corte já havia decidido que as ações decorrentes de ilícito civil prescreviam normalmente [4].

Como tão somente as ações de ressarcimento — ou algumas delas — é que podem implicar ressalva à regra da imprescritibilidade, o STF, ao voltar-se para a questão dos tribunais de contas, só tinha mesmo uma questão a dirimir: se a execução dos julgados dos tribunais de contas podia ser considerada uma ação de ressarcimento, a despeito das evidentes disparidades processuais. "Ação", como sabem leigos e bacharéis, afinal, é aqui uma referência evidente a "ação judicial". Ninguém há de referir-se a uma tomada de contas como ação de ressarcimento, até porque o procedimento do tribunal de contas só pode mesmo levar ao ressarcimento se a decisão condenatória vier a ser executada.

Assim, visto em profundidade, o argumento de que o STF se limitou a analisar o prazo para a execução, como se restasse a ser decidida a questão relacionada à possibilidade de prescrição antes da tomada de contas ou durante o procedimento no órgão, constitui uma notável inversão da lógica. Na verdade, a corte examinou o prazo para a execução do julgado não por alguma particularidade do procedimento executivo mas por se tratar da única fase em que, de fato, faria algum sentido avaliar a aplicabilidade da ressalva do artigo 37, § 5º, da Constituição. Subentende-se que, para todos os demais atos, a prescrição sempre foi e continuará sendo o padrão.

A bem da verdade, os próprios órgãos de controle, sempre repletos de equipes de grande capacidade, parecem antever que essa sobrevida da imprescritibilidade, mesmo após o julgamento do tema nº 899 pelo STF, não será longa na jurisprudência. A fim de evitar que o longo tempo de tramitação da maior parte das tomadas de contas — em razão da sobrecarga de trabalho — resulte na prescrição em massa, já têm sido aventados outros argumentos, relacionados ao início do prazo prescricional, a possíveis marcos interruptivos e até à constatação de elemento subjetivo dos agentes pelos próprios tribunais de contas.

Para lá desses novos argumentos, que vêm surgindo para relativizar o direito à prescrição, o correto entendimento do enunciado que se fixou no julgamento do tema nº 899 autoriza a conclusão de que o prazo prescricional tem início, em princípio, com o evento causador do dano, e corre até o momento do ajuizamento da execução fiscal pelo órgão de representação judicial do ente. Na falta de uma disposição específica na legislação, o prazo usualmente aplicado, ao menos na esfera federal, é o de cinco anos da Lei nº 9.873/99.

Independentemente da discussão sobre eventuais marcos interruptivos, esperar que os órgãos de controle, em cinco anos, exonerem os agentes que se relacionaram com o Estado de eventuais questionamentos pode parecer utópico na realidade de hoje. O prazo, porém, é mais do que razoável, ainda mais se não há indício de improbidade administrativa ou de dolo. Por similaridade, é exatamente esse o prazo de que a Receita Federal dispõe para cobrar os seus contribuintes, com poucos temperamentos e nenhuma possibilidade de interrupção. Também é esse o prazo para o ressarcimento dos particulares contra o próprio erário, segundo a disciplina do Decreto n. 20.910/32, quase centenário, mas ainda em pleno vigor.

Nos termos da ementa do RE nº 852.475 [5], "a prescrição é instituto que milita em favor da estabilização das relações sociais". A interpretação expansiva da imprescritibilidade e dos diversos embaraços à prescrição pode até causar a impressão de favorecer imediatamente o interesse do erário. No médio prazo, porém, afasta muitos talentos da gestão pública e contribui para que empresas idôneas precifiquem o risco de um passivo semiperpétuo nos contratos e parcerias com a administração pública.


[1] RE 636.886, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 20/4/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-157 DIVULG 23/6/2020 PUBLIC 24/6/2020

[2] RE 636.886 RG, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 2/6/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-123 DIVULG 14-06-2016 PUBLIC 15-06-2016

[3] "(…) O texto constitucional é expresso (art. 37, § 5º, CRFB) ao prever que a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos na esfera cível ou penal, aqui entendidas em sentido amplo, que gerem prejuízo ao erário e sejam praticados por qualquer agente. 4. A Constituição, no mesmo dispositivo (art. 37, § 5º, CRFB) decota de tal comando para o Legislador as ações cíveis de ressarcimento ao erário, tornando-as, assim, imprescritíveis. 5. São, portanto, imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa. 6. Parcial provimento do recurso extraordinário para (i) afastar a prescrição da sanção de ressarcimento e (ii) determinar que o tribunal recorrido, superada a preliminar de mérito pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento por improbidade administrativa, aprecie o mérito apenas quanto à pretensão de ressarcimento." (RE 852.475, relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, relator(a) p/ acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 8/8/2018, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-058 DIVULG 22/3/2019 PUBLIC 25/3/2019)

[4] "CONSTITUCIONAL E CIVIL. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. IMPRESCRITIBILIDADE. SENTIDO E ALCANCE DO ART. 37, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO. 1. É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil. 2. Recurso extraordinário a que se nega provimento." (RE 669.069, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 3/2/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL — MÉRITO DJe-082 DIVULG 27/4/2016 PUBLIC 28/4/2016

[5] Já citado acima.

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