Opinião

"Apagão das canetas", inovação e controle externo: o que os gestores têm a dizer?

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21 de julho de 2022, 15h12

Muito já se falou e escreveu sobre o fenômeno do "apagão das canetas" que tem assolado a administração pública brasileira nas últimas décadas. De acordo com a doutrina que já se debruçou sobre a matéria, o tal "apagão" seria resultado de um empoderamento desmedido que se atribuiu aos órgãos de controle externo, sobretudo com a Constituição de 1988 e os instrumentos legislativos de combate à corrupção que lhe sucederam. Criou-se, assim, um ambiente institucional propício para o fortalecimento da atividade controladora do Estado, reconhecidamente fundamental para o regime republicano e democrático, mas que, com o decorrer dos anos, teria passado a ser exercida de modo disfuncional, desproporcional e atentatória à separação dos poderes. Sob essa perspectiva, portanto, o controle externo, a pretexto de combater a corrupção e de exigir a estrita observância da legalidade, ainda que bem-intencionado, tem sido fonte de verdadeira paralisia e ineficiência administrativa [1].

No cenário descrito pela doutrina mais crítica, "administrar" estaria deixando de ser uma atividade precipuamente orientada à concretização de políticas públicas em benefício da sociedade para se transformar numa espécie de engrenagem burocrática na qual os agentes estatais apenas se dispõem a fazer o mínimo necessário para manter a máquina administrativa em funcionamento, num ambiente em que ninguém quer assumir riscos ou fazer qualquer movimento em direção a soluções inovadoras ou criativas, haja vista o receio permanente de que, no futuro próximo, poderão vir a ser questionados e sancionados pela atuação dos órgãos de controle externo com consequências severas sobre suas esferas de direitos individuais.

Pelo que se tem visto, o fenômeno do "apagão das canetas" é retratado em livros, artigos e reportagens como uma realidade vivenciada pelos gestores públicos. No entanto, em geral, a análise não vem acompanhada de pesquisa ou sondagem que permita verificar a opinião dos agentes públicos “de carne e osso” sobre o tão alardeado medo que é atribuído à atuação dos órgãos de controle externo, particularmente, dos tribunais de contas.

Além de saber que o medo existe, é preciso tentar medi-lo para encontrar a melhor maneira de enfrentá-lo, evitando, com isso, que seja subestimado ou superdimensionado. Nesse passo, a escuta direta dos agentes públicos atingidos pelos supostos excessos do controle contribui sobremaneira para o diagnóstico do problema e a definição de estratégias para combatê-lo, com vistas a criar um ambiente seguro e estável para as iniciativas inovadoras.

A tentativa empírica que se tem notícia na qual se procurou identificar a percepção do medo que a ação dos órgãos de controle externo exerceria sobre os gestores públicos e em que medida tal sentimento, se existente, seria capaz de inibir iniciativas inovadoras consta do relatório de pesquisa elaborado pelo Centro de Promoção de Cultura e Inovação do Laboratório de Inovação do Tribunal de Contas da União (TCU/coLAB-i), abrangendo o período de ago/set de 2019 [2].

O estudo envolveu a aplicação de questionário a servidores, empregados públicos e outros colaboradores, integrantes dos quadros de órgãos e entidades da administração federal direta e indireta, tendo por escopo coletar opiniões sobre o tema contratação de soluções inovadoras pela administração pública.

Foram elaboradas 24 questões atinentes à percepção dos participantes sobre inovação no setor público, tendo sido consideradas, para a avaliação dos resultados, apenas as respostas dos que finalizaram o preenchimento de todas as questões, o que totalizou 2.560 pessoas. Desse total, cerca de um terço (35%) exercem função ou cargo de natureza gerencial, a maioria é composta por agentes concursados (94,5% entre servidores e empregados públicos) e 19,7% foram caracterizados como pessoal do controle de modo genérico, ou seja, compreende unidades dos controles internos e externos, de consultoria jurídica e de auditoria interna.

Das 24 proposições para identificar a percepção sobre inovação na administração pública, chama a atenção aos resultados para os itens 7.8 e 7.17, pois, dentro das limitações metodológicas da pesquisa, procura revelar se o medo do controle tolhe o gestor público de adotar medidas inovadoras, além de indicar se o controle externo tem mais atrapalhado do que ajudado nesse processo, conforme adiante será detalhado.

Em relação ao item 7.17, 56,7% dos respondentes "concordam ou concordam totalmente" [3] que "o medo do controle é um empecilho para o gestor público contratar soluções inovadoras" (item 7.17). Esse percentual sofre ligeiro acréscimo quando se seleciona apenas o grupo dos que exercem cargo ou função de natureza gerencial, chegando ao patamar de 60,6%. Portanto, isoladamente, o resultado obtido para a questão 7.17 corrobora a percepção apontada pela doutrina aqui referida sobre o fenômeno do "apagão das canetas", no sentido de que a atividade de controle incute sentimento de medo aos gestores públicos e isso teria o condão de desestimular contratações inovadoras. O resultado é representativo porque seis em cada dez dos respondentes disseram que têm medo do controle a ponto de identificá-lo como empecilho para contratar soluções inovadoras.

No entanto, a fim de evitar análises parciais e precipitadas, esse medo não pode ser tomado de forma isolada. É preciso confrontá-lo com a percepção do gestor sobre o que ocorre na realidade, ou seja, verificar se, na prática, a atuação efetiva dos órgãos do controle externo, por meio de suas intervenções na atividade administrativa, cria, de fato, embaraços indesejáveis às ações de inovação. Essa percepção mais aderente à observação da realidade pelos participantes sobre a interferência do controle externo foi captada pelo item 7.8 do questionário, cuja redação é a seguinte: "a atuação do controle externo atrapalha a contratação de soluções inovadoras para a administração pública".

Conforme se observa do relatório de pesquisa, 25,2% dos respondentes “concordam ou concordam totalmente” com a afirmação constante do item 7.8. Importante notar que esse percentual praticamente não se altera quando se observa apenas o grupo dos que exercem cargo ou função de natureza gerencial, atingido o valor de 26,3%. Vê-se, pois, que 1 em cada 4 dos respondentes considera que a atividade de controle externo atinge negativamente a promoção da inovação na administração pública, por meio da contratação de soluções inovadoras.

Cotejando-se os resultados dos itens 1.17 e 7.8, apenas para o grupo dos gestores (embora o mesmo raciocínio se aplique ao público total participante pois as diferenças percentuais são pouco significativas), verifica-se que 60% dos que responderam ao questionário concordam que o medo do controle se coloca como um obstáculo para o gestor contratar soluções inovadoras. Contudo, o índice de concordância cai para menos da metade, isto é, 26%, quando se afirma que a atuação do controle externo atrapalha a contração de soluções inovadoras para a administração pública.

Assim, pesquisa aponta que o medo do controle de modo genérico existe, inclusive, revela-se preocupante, pois foi apontado como empecilho à inovação na administração pública por seis em cada dez dos gestores que responderam ao questionário. Todavia, esse medo do controle de feição subjetiva não se projeta com a mesma intensidade na percepção dos mesmos gestores quando se coloca a atuação do controle externo e os possíveis embaraços que criaria para a contratação de soluções inovadoras, sendo que, para esta hipótese, a relação cai para um em cada quatro respondentes que concordam com o impacto negativo da atuação do controle externo na busca de soluções inovadoras pela administração pública.

Desse modo, a referida distinção entre o que se sente e aquilo se percebe no mundo real, conforme se depreende do relatório de pesquisa do TCU/coLAB-i, precisa ser levado ao debate sobre o apagão das canetas. O contexto muitas vezes descrito pelos pesquisadores que estudam o fenômeno do imobilismo decisório é o de absoluto terror, pânico e desespero que a atuação dos órgãos de controle externo tem gerado à gestão pública. A impressão é de que existe um medo profundo do gestor público de tomar decisões, principalmente quando se trata de medidas inovadoras, pois tem a certeza de que a sombra do controle externo sempre estará por perto para, sem dó nem piedade, persegui-lo e puni-lo ao menor cochilo com alguma formalidade legal, ainda que esteja de boa-fé e a sua decisão tenha sido fundamentada numa intepretação razoável da norma, mas que desagradou o controlador externo.

Talvez a percepção desse medo pelos gestores públicos não corresponda à exata medida que vem sendo anunciada de longa data por parte da doutrina, ao menos não quanto a sua projeção na realidade administrativa a respeito da percepção dos gestores de que o controle externo atuaria como um agente fortemente inibidor da inovação e que tem dificultado o processo de incorporação de novas tecnologias pelo setor público, por meio de obstáculos criados à contratação de soluções inovadoras.

Cabe destacar, ainda, uma outra informação gerada pela pesquisa e que ajuda a entender melhor o papel que o controle pode desenvolver no processo de transformação digital do setor público. Refere-se ao alto índice de concordância relacionado à proposição do item 7.9 do citado questionário. Do total de 2.560 pessoas, 80,2% responderam que "concordam ou concordam totalmente" com a seguinte assertiva: "considero adequado que os órgãos de controle orientem a administração pública na contratação de soluções inovadoras". Veja-se que esse percentual praticamente não se altera quando se examina apenas o grupo dos gestores (79,9%).

Decerto que "orientar" não significa que o controlador externo deve se desvirtuar de suas competências constitucionais e "pular para o outro lado do balão", passando a decidir sobre questões afetas à discricionaridade do gestor público ou servindo de instância revisora de atos administrativos. Não é disso que se trata.

A mensagem, neste caso, é no sentido de reforçar o caráter pedagógico e orientativo da função de controle, particularmente em situações de estado de incerteza severa, como sói acontecer na área de inovação, em que o gestor é chamado a decidir sobre matérias altamente complexas e poucas conhecidas. Sequer as ferramentas legais para implementar as inovações [4] foram testadas e absorvidas aos processos de trabalho pela administração. Ainda não é possível mapear todos os riscos associados às novas tecnologias, em especial quando envolve o risco tecnológico, no qual o insucesso da solução contratada é um resultado possível para a administração pública. Certo é que há uma longa curva de aprendizado que precisa ser percorrida e isso se aplica tanto para o controlado quanto para o controle.

Nesse particular, o estudo conclui que, entre as questões prioritárias para apoiar o projeto de contratação de soluções inovadoras pelo poder público, conduzido pelo Laboratório de Inovação do Tribunal de Contas da União (TCU/coLAB-i), está o compromisso de:

"promover ações para aproximação entre gestor público e controle externo, sobretudo para gerar maior segurança nas iniciativas de contratação de soluções inovadoras. Neste sentido, são especialmente úteis documentos de referência, que expressem claramente a posição do controle, assim como experiências em que representantes do controle acompanhem iniciativas principalmente que apliquem o marco legal de inovação;"

Recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU) deu um grande passo em direção à aproximação com importantes atores de promoção da inovação no Brasil, por meio da assinatura, em 27/6/2022, de Acordo de Cooperação Técnica com o Ministério da Economia e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), com a finalidade de viabilizar a construção da Plataforma de Compras Públicas para a Inovação [5].

A iniciativa resulta da compreensão de que o avanço no processo de transformação digital do país, em que as contratações públicas inovadoras assumem papel primordial como instrumento de política de inovação e melhoria dos serviços públicos, depende da conjugação de esforços para que se desenvolva uma cultura de inovação por meio do compartilhamento de experiências e da disseminação do conhecimento entre todos os envolvidos; gestores públicos, controladores, academia e o mercado. Busca-se criar um ambiente mais seguro e confortável para que o gestor se sinta encorajado a contratar soluções inovadoras, haja vista, sobretudo, as condições criadas pelo marco legal da inovação [6], marco legal das startups e do empreendedorismo inovador (Lei Complementar 182/2021) e a nova lei de licitações e contratos (Lei 14.133/2021).

Nos dias de hoje, não se questiona que o poder público precisa buscar soluções inovadoras para enfrentar seus desafios. Portanto, a notícia de iniciativas como essa que procuram colocar o país num patamar mais elevado de maturidade digital nos faz refletir se, de fato, em termos de inovação na administração pública, ainda padecemos do “apagão das canetas” ou caminhamos para uma revolução silenciosa.

 


[1] O estudo detalhado das denominadas disfunções do controle externo, bem como a análise de suas causas e consequências pode ser verificado na obra de Rodrigo Valgas do Santos. Direito Administrativo do Medo [livro eletrônico]: risco e fuga da responsabilização de agentes públicos. 1ª ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

[3] Conforme consta da metodologia da pesquisa, para responder aos 24 itens referentes a percepções pessoais, foi usada a seguinte escala: (1 discordo totalmente; 2 discordo; 3 não concordo, nem discordo; 4 concordo; 5 concordo totalmente). Incluiu-se também a opção “0 – não sei responder” considerando que alguns itens poderiam demandar conhecimento ou experiência prévia no tema. Para os fins da presente análise, trabalha-se apenas com o índice de concordância que resulta do percentual acumulado dos que concordam e concordam totalmente.

[4] Cita-se, por exemplo, a Encomenda Tecnológica (Etec) — Lei 10.973/2004, alterada pela Lei 13.243/2016 e regulamentada pelo Decreto 9.283/2018), o Diálogo Competitivo (Lei 14.133/2021) e o Contrato Público de Solução Inovadora (CPSI) (Lei complementar 182/2021).

[5] Entre outras iniciativas, destaca-se também a parceria que o Tribunal de Contas da União firmou com a Agência Espacial Brasileira (AEB) e posteriormente também com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) para acompanhar contratação por Encomenda Tecnológica. Disponível na internet em: https://portal.tcu.gov.br/colab-i/

[6] Emenda Constitucional 85/2015, Lei 10.973/2004, alterada pela Lei 13.243/2016 e regulamentada pelo Decreto 9.283/2018.

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