Opinião

Stare decisis e a superação de precedentes no direito dos Estados Unidos

Autor

  • Leonardo Machado Ramos

    é estagiário do núcleo tributário do escritório Barufaldi Advogados e graduando do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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19 de julho de 2022, 11h04

Com a edição do Código de Processo Civil de 2015 e a introdução das inovações trazidas pelos artigos 926 e 927,  muito se falou na doutrina e na jurisprudência a respeito de uma "anglicização" ou, até mesmo, "americanização" do direito brasileiro, com a adoção  por nosso sistema romano germânico  de um sistema de precedentes com traços muito semelhantes àqueles dos países da common law.

Tal sistemática foi introduzida no direito pátrio justamente com o objetivo de tornar mais célere o processo, dando resposta em tempo aos jurisdicionados e, ao mesmo tempo, uniformizando a aplicação do direito legislado ao propiciar a segurança, a confiança e a cognoscibilidade necessárias ao cumprimento da lei e garantir que os mesmos dispositivos não seriam objeto de várias interpretações diferentes.

Por isso causa surpresa  especialmente àqueles mais familiarizados com a teoria dos precedentes  a surpreendente reviravolta promovida pela Suprema Corte dos Estados Unidos (Scotus) ao realizara superação (overturning) do precedente firmado há quase cinco décadas, em 1973, de Roe v. Wade que reconhecia o direito ao aborto como sendo corolário da proteção ao direito constitucional à privacidade que não pode ser totalmente coibido pelos estados (embora se admitisse uma certa regularização).

Em resumidas linhas, a Suprema Corte, julgando o caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization (2022), reformou o entendimento de Roe v. Wade para decidir que o aborto não encontra proteção geral na Constituição Americana e que, portanto, cabe aos estados estabelecerem suas próprias legislações a respeito da matéria, situação própria do federalismo americano. Ou seja, a bem da  verdade, a decisão não proibiu o abordo, como extensamente noticiado, mas, sem adentrar às polêmicas questões de mérito da decisão, é importante notar a existência de questão central para a teoria dos precedentes, qual seja, a possibilidade ou não de superação de um precedente firmado e reafirmado há tanto tempo a despeito da Stare Decisis, em que pese não tenha ocorrido uma grande mudança de paradigma que justificasse tal superação, eis que Roe v. Wade vinha sendo reafirmado e aplicado pela Scotus até atualmente.

Sendo assim, é necessário ter em mente que a vinculação dos precedentes judiciais nos Estados Unidos resultou na doutrina do Stare Decisis, instituto fundamental da common law fundando no antigo brocardo romano stare decisis et non quieta movere, cujo tradução literal é "mantenha-se a decisão e não se mexa no que está quieto" [1].  Para Scalia, a doutrina da stare decisis é pedra basilar da common law, elemento fundamental sem o qual a law making authority dos juízes seria completamente esvaziada [2].

A importância da doutrina do staris decisis é expressa em um dos documentos americanos mais importantes, quando Hamilton, no artigo nº 78 dos Federalist Pappers sustenta que: "to avoid an arbitrary discretion in the courts, it is indispensable that they should be bound down by strict rules and precedents, which serve to define and point out their duty in every particular case that comes before them" [3].

Realizar o processo de superação de um precedente é muito complicado, na medida em que envolve desafiar a Stare Decisis, ou seja, o elemento que lhes confere autoridade sobre o sistema judicial. Dessa maneira, deve-se encarar tal processo como um método excepcional  porquanto a regra é que os precedentes judiciais devem ser mantidos de maneira a criarem confiança, igualdade e estabilidade na aplicação do direito  mas necessário a manutenção do próprio sistema como meio de desenvolvimento sem o qual a interpretação judicial estaria engessada.

Como se pode observar, não é qualquer coisa que justifica a superação de um precedente, eis que  para tanto  se deve analisar e infirmar todas as razões que formaram o entendimento que se pretende superar.

Dessa forma, muitos dos críticos da decisão tomada em Dobbs argumentam que o overturning se deu apenas por conta da alteração de composição da Scotus que, recentemente, passou a contar com uma maioria de justices conservadores seguidores da teoria jurídica do originalismo. Também sustentam que inexistiu qualquer mudança de paradigma jurídico/social que pudesse ensejar a alteração de posicionamento da Corte.

Por outro lado, a Scotus acabou adotando entendimento consolidado em parte da doutrina americana de que o tratamento dado a stare decisis não deve ser absoluto, uma vez que  conquanto seja questão sujeita a polêmicas  admite-se abertamente a possibilidade de a Suprema Corte rever os seus posicionamentos anteriores frente a competência que lhe é atribuída de realizar o controle de constitucionalidade.

Justamente, ao julgar Planned Parenthood v. Casey (1992), oportunidade em que reanalisou a questão do aborto, a Scotus utilizou-se justamente da stare decisis para justificar a manutenção do entendimento firmando em Roe v. Wade.  Merece destaque, entretanto, o fato de que o julgamento da Corte em Planned Parenthood foi por maioria, com a minoria liderada pelos justices Clarence Thomas (presente no julgamento de Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization) e Scalia argumentando exatamente que a  stare decisis não pode impedir a correta intepretação do texto constitucional. Sustentavam os justices que — se em algum momento a corte havia atribuído ao texto constitucional significado equivocado  essa intepretação errada não poderia ser albergada ao manto da stare decisis.

Ora, não se mostra contraditório à teoria dos precedentes o fato de que  em reconhecimento a primazia do texto constitucional — a Scotus reveja a leitura adotada e aplique o que entende ser a leitura mais correta das palavras contidas na constituição, desde que suficientemente infirmadas a ratio do precedente superado a fim de demonstrar o que a Corte entende ser o correto entendimento a respeito da constituição [4].

Claro que, em respeito à doutrina da Stare Desisis, e ao próprio sistema de precedentes, tais superações não podem ser habituais e devem proteger todas as situações passadas [5], como exposto no voto na main opiniun (equivalente ao voto vencedor no direito brasileiro) do Justice Samuel Alito em dobbs: "The doctrine of stare decisis does not counsel continued acceptance of Roe and Casey. Stare decisis plays an important role and protects the interests of those who have taken action in reliance on a past decision".

Veja-se que se trata de debate muito polêmico a respeito da manutenção ou não de um precedente que  a bem da verdade  dividiu a sociedade americana desde quando realizado o julgamento agora superado. Por tal razão, naturalmente, não é possível esgotar um assunto tão complexo, mas a superação do entendimento de Roe v. Wade pode trazer importantes lições para a aplicação da sistemática de precedentes no direito brasileiro, a começar pelo caráter de ruptura e exceção trazido pela superação do precedente, o qual contrasta diretamente com a inversão mensal de entendimentos jurisprudenciais que ocorrem nas Cortes Superiores brasileiras.


[1] CHAMBERLAIN, Daniel Henry. The doctrine of stare decisis: its reasons and its extent. New York: Baker, Voorhis & CO Publishers, 1885, p. 22.

[2] SCALIA, Antonin. A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law: an Essay. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1997. p. 07.

[3] THE FEDERALIST No. 78, at 471 (Alexander Hamilton) (Clinton Rossiter ed., 1961).

[4] The Nature of Judicial Reasoning, The University of Chicago Law Review, v. 32, nº 3, Spring 1965, p. 404

[5] MITIDIERO. Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2017, p. 119.

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  • é estagiário do núcleo tributário do escritório Barufaldi Advogados e graduando do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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