Comissão Parlamentar de Inquérito e o direito político das minorias
18 de julho de 2022, 6h33
A ampla divulgação de denúncias de corrupção no Ministério da Educação, inclusive com indícios de interferência do presidente da República nas investigações, fez com que senadores articulassem a coleta de assinaturas para a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). A CPI do MEC.
A origem histórica das CPIs radica na Inglaterra. No Brasil, a CPI encontrou sua primeira previsão constitucional em 1934. As CPIs são comissões temporárias, cujo escopo é cumprir uma das funções típicas do Poder Legislativo: a fiscalização. Por meio dessas comissões, a atuação dos Poderes, bem como fatos de interesse público, submetem-se ao escrutínio público do Poder Legislativo.
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) expressamente prevê as CPIs e estabelece os requisitos para a sua criação: fato determinado, prazo certo e requerimento de um terço dos membros do Poder Legislativo. São requisitos simples. Para a CF/88 é suficiente a indicação de um fato determinado a ser investigado, a definição de sua temporalidade e um terço de parlamentares a solicitar a abertura da CPI para que ela se justifique. E o fato de o pedido ser subscrito por apenas um terço de parlamentares revela a sua mais importante índole: possibilitar às minorias parlamentares uma atuação proativa no cumprimento de investigações parlamentares, independente das maiorias formadas no Poder Legislativo.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece que a natureza investigatória de uma CPI não pode se submeter a imposição dos interesses majoritários. O voto proferido pelo ministro Celso de Mello é modelar: "É que a prerrogativa institucional de investigar — deferida às Casas do Congresso Nacional (especialmente aos grupos minoritários que nelas atuam) — não pode ser comprometida pelo bloco majoritário existente no Parlamento" [1].
A compreensão da CPI como um direito político das minorias, protegido, pois, das forças majoritárias contrárias, justifica a obrigatoriedade de abertura das CPIs, se preenchidos os requisitos constitucionais. Não foi outra a ratio decidendi presente na decisão do Plenário do STF que confirmou a decisão liminar, concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso, determinando a instalação da CPI da Covid no Senado [2]. No caso, havia o pedido de instalação de uma CPI, que era obstado pelo presidente da Casa Legislativa sob o argumento de que competia a ele, por meio de um juízo de oportunidade e conveniência, definir pela abertura ou não da CPI. A abertura de uma CPI é matéria constitucionalmente vinculante, dotada de autonomia normativa funcional, porque prerrogativa político-jurídica das minorias. Portanto, sem espaço para juízos de índole discricionária.
A questão que surge com a "CPI do MEC" apresenta uma variação. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, diante do requerimento de abertura da CPI com os requisitos constitucionais presentes, formaliza a sua abertura, mas define o seu funcionamento para depois das eleições. Tal medida, como uma nova cepa das manobras políticas protetivas de um governo ameaçado por investigações, esvazia o pretendido pela minoria que pretende, desde logo, investigar denúncias que atingem o MEC.
A discussão político-constitucional que se estabelece gira em torno da legitimidade da decisão do presidente do Senado em definir o momento oportuno (juízo discricionário) para o início dos trabalhos de uma CPI. Se é matéria interna corporis ou se caberá ao STF determinar o início de sua atividade. Acaso, o postergar da abertura da referida CPI, enquadra-se em uma espécie alargada de constitucional hardballs [3] (jogo duro constitucional) identificado por Mark Tushnet? Isto é: uma prática compatível com a constituição, embora em conflito com a compreensão do que seja devido, diante do respeito exigido pelo jogo político. A normatividade constitucional confere ao presidente do Parlamento o poder de definir o momento adequado para o início de uma CPI? Ou o seu funcionamento deve ser concomitante à sua abertura formal?
O que está em causa é a afirmação normativo-intencional da CF/88 e a preservação de seus valores republicanos e democráticos. Assegurar a prerrogativa investigatória das minorias é resguardar o próprio núcleo do regime democrático, conferindo-se transparência aos atos do administração pública e limitando o poder das maiorias. A participação plena e ativa dos atores políticos minoritários no processo de investigação legislativa é autônoma e prescinde da anuência da maioria parlamentar. Não se coaduna com a integridade axiológica da CF/88 a formalização procedimental de instauração de uma CPI sem o iniciar de seus trabalhos. Assegurar apenas a instauração de uma CPI sem a definição da instrumentalização de suas atividades é medida inócua — e, ao invés de um "jogo duro constitucional", uma "canelada constitucional". Se, conforme jurisprudência do STF [4], a definição do momento adequado para instalar a investigação parlamentar não cabe ao presidente da casa legislativa, tampouco a ele — ou a uma maioria — caberá a decisão do momento inicial de seus trabalhos. Sob pena de se fragilizar um dos pilares do Estado de direito: o reconhecimento do direito de oposição e a proteção da atuação das minorias parlamentares. A regra do jogo democrático deve permitir às minorias a possibilidade de agir e vencer o jogo político, que se decide em uma eleição. Conforme Streck e Motta [5], ancorados na compreensão de Samuel Issacharoff, "a medida do sucesso de uma democracia política, (…), é relativamente modesta, embora nada trivial: trata-se da capacidade de os perdedores de hoje emergirem como os vencedores de amanhã, ou seja, da possibilidade de substituição pacífica daqueles encarregados do governo, em conformidade com eleições que reflitam a vontade da população". A atuação investigatória da minoria parlamentar em uma CPI é elemento institucional assecuratório da disputa política democrática e indutor do equilíbrio das forças políticas legitimamente representadas no Parlamento.
Ao fim e ao cabo, advoga-se que, se provocado, o STF, mais uma vez, afirme a propriedade da sua atuação e tutele direitos e garantias constitucionais, conformando o exercício do poder político às aspirações democráticas. A arquitetura constitucional afivela os atos políticos a uma exigência normativa própria e juridicamente principiológica, amoldada a um conjunto de direitos superiores a voluntas do poder. Ao STF cabe a defesa da Constituição diante das formas líquidas e sutis de autoritarismo presente na contemporaneidade dos nossos dias que provocam retrocessos democráticos.
[1] MS 26.441/DF. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=606848
[2] Referendo na Medida Cautelar em Mandado de Segurança 37.760/DF. Rel. min. Roberto Barroso. Data do julgamento: 14/4/2021.
[3] Disponível em http://nrs.harvard.edu/urn-3:HUL.InstRepos:12916580.
[4] Ver referendo na Medida Cautelar em Mandado de Segurança 37.760/DF. Rel. min. Roberto Barroso. Data do julgamento: 14/4/2021.
[5] Democracias frágeis e cortes constitucionais: o que é a coisa certa a fazer? Pensar — Revista de Ciências Jurídicas. V. 25. Nº 4. 2020. Disponível em https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/11284/0.
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