Opinião

PEC da Relevância: impedir o acesso à Justiça melhora o acesso à Justiça?

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18 de julho de 2022, 10h04

O resumo poderia ser: Alguém acredita, sinceramente, que reduzir recursos melhora a justiça?

Peço desculpas aos 37 leitores, mas insisto em um assunto sobre o qual me debruço, inutilmente, há mais de 30 anos.

Spacca
Desde a promulgação da Constituição, parece que já no dia seguinte iniciaram os planos para a emendar. Hoje já são mais de 120.

Um dos objetos de desejo de reforma é o sistema de justiça. Chegou a haver até uma secretaria de reforma do judiciário.

Neguem ou não, o objetivo central tem sido o de criar filtros e jurisprudência defensiva. Ou seja: em nome do acesso à justiça…retirar acesso à justiça.

Tese central: recorre-se demais. Solução: impedir recursos, dificultá-los ao máximo.

É a total violação da Lei de Hume (que no Direito parece que ninguém conhece): de um "é" não se deve tirar um "deve" ser. "Há muitos processos"  — é um "é". Derivam daí a conclusão de que se deve impedir o acesso pleno ao sistema recursal.

O interessante é que o "deve ser" surge sempre contra o acesso à justiça. Todas as reformas feitas até agora foram para dificultar o acesso à justiça. Por que é assim? Desafio a alguém a apontar alguma emenda à Constituição que visasse a facilitar o acesso. Curioso: além de injustificável, uma vez que derivado de uma premissa puramente factual, o "dever ser" é sempre no sentido de ferrar com a patuleia.

Veja-se agora a PEC da Relevância (estou preparando uma análise para os próximos dias), que vem para dividir os recursos em relevantes e irrelevantes. Como se hoje já a grande parcela dos recursos já não fosse considerada irrelevante. Os tribunais de piso fazem um filtro do qual sequer cabe embargos de declaração — para vermos o nível do torniquete anti acesso.

Mas nada disso parece impressionar à doutrina. Hoje, escrever sobre direito é descrever teses dos tribunais e comparar acórdãos. Dizem os "práticos": discutir coisas mais sofisticadas é coisa da academia. Sabe-se lá o que quer dizer essa cisão. Para que serve a doutrina, afinal?

A boa dogmática é possível aqui?

O Código de Processo Civil de 2015 parecia indicar novos caminhos. Esforcei-me nesse sentido. Achei que coerência e integridade poderiam dar uma maior previsibilidade e, assim, reforçar o devido processo legal das partes. Mais: aliando o artigo 926 com os seis incisos do 489, §1º., poderíamos ao menos avançar em relação à exigência de fundamentação. E somando o artigo 10 (não surpresa), quem sabe o caminho se iluminaria mais ainda.

Todavia, rapidamente ocorreu o backlash interpretativo, representado pelo esvaziamento do artigo 926 e os seis incisos do 489 ficaram anêmicos. Onde está escrito "enfrentar todos os argumentos", passou-se a ler que não era bem assim.  Precedentes constantes no inciso VI passaram a ser divididos em persuasivos e outros.

No processo penal, a criação do artigo 315, espelhamento do 489 do CPC, também passa por um processo de "jecatatudização". Anemia significativa.

O que quero dizer é que de reforma em reforma, vamos esvaziando o cerne do processo: o acesso à justiça e a prestação jurisdicional. Gostaria que a doutrina pensasse sobre isso. Cada vez mais apertamos o torniquete da admissibilidade recursal. Alie-se isso ao Direito 4.0, inteligência artificial e robôs e temos a tempestade perfeita.

Se o ideal da justiça é ter menos recursos e menos processos, por que não fazemos reformas objetivando decisões que obedeçam a uma criteriologia? Se obedecêssemos ao artigo 926 teríamos menos recursos, porque, usando o artigo 489, teríamos já de antemão as condições para expungir matéria fadada ao insucesso. Já escrevi dezenas de textos sobre isso. Dezenas aqui não é exagero. Mas o que importa para setores da doutrina — que escolhem a linha seguida pelo judiciário — é uma ficta eficiência. Efetividade quantitativa: eis o lema. A vítima é a efetividade qualitativa.

Vamos lá: por exemplo, se a tese de que os Tribunais Superiores são, de fato, Cortes de Precedentes, tivesse dado certo, por qual razão precisamos de novas reformas que, exatamente, desmentem a tese do sistema de precedentes? Eis a pergunta de um milhão de livros.

Mas esse assunto parece não importar. Deve ser deixado de lado. Vamos fazer novas reformas. Que diminuam o número de processos judiciais. Depois dessa reforma, outras virão.

Talvez isso nos leve ao paroxismo máximo, a tese do grau zero, algo como o "paradoxo do queijo suíço". Explico. O melhor queijo é o suíço; o queijo suíço é melhor porque tem furos; mais furos, melhor o queijo; mais furos, menos queijo; menos queijo, melhor queijo.

Moral da história: o queijo ideal é o não queijo. No Brasil, o sistema ideal é zero de possibilidade de recurso.

Claro que a observação metafórica do queijo é exagerada. Mas, metáforas sempre exageram. Para isso que servem figuras de linguagem.

De "reforma" em "reforma", a coisa já não é. E assim vamos, de emenda em emenda, reforma em reforma, e o acesso à justiça sempre enfraquecido.

Mas claro. Há processos demais. Logo…

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