Opinião

"Permitida a entrada de rinocerontes": Súmula 450 do TST

Autor

18 de julho de 2022, 15h07

Não expulse a razão em favor da desigualdade, mas deixe que a razão lhe sirva para fazer com que a verdade apareça onde parece estar escondida e esconda o falso que parece verdadeiro[1].
William Shakespeare

Tenho uma sobrinha [2] apaixonante que, além da graciosidade, possui um intelecto prodigioso a ponto de provar que a natureza não teve preocupações com justiça e equidade ao distribuir predicados. Certa vez, entrávamos eu e ela num parque em Campo Grande (MS), quando Fefê, então aos 7 anos, leu a seguinte placa: "Proibida a entrada de cães".

Com sua arguta percepção e senso de humor sofisticado, indagou-me: "Tio, quer dizer que eu posso entrar aqui com um rinoceronte?" Ela captara instantaneamente a incompletude do comando e, para demonstrá-la, montou um sofisma baseado na legalidade negativa: à míngua de proibição, tenho autorização.

É claro que o mandamento do dístico desejava vedar a entrada de animais lato sensu, tendo reduzido o gênero à espécie pelo fato de serem os cachorros aqueles com os quais os donos mais tenderiam a entrar. Todavia, mesmo se o comando fosse abrangente — e vedasse a "entrada de animais" —, Fefê provavelmente seria implacável com a lei, dessa vez na acepção positiva da legalidade: "Tio, quer dizer que se eu comprar um peixinho em um saco plástico com água e estiver com ele nas mãos eu não posso entrar?", indagaria.

A sua inteligência infantil vislumbrou as armadilhas filológicas. Ao estressar o preceito, brincando com as fronteiras conceituais, pressentiu a necessidade de entender os exatos termos da regra. Certíssima, pois, "dada a ordem, o primeiro passo para a sua observância é compreender o que se estatuiu como comportamento, o que concretamente se ordenou" [3], leciona Mallet. Compreendida a lei como o comando de um soberano, correto Holmes ao cogitar que "as we are dealing with the commands of the sovereign the only thing to do is to find out what the sovereign wants" [4].

No julgamento da ADPF 501, que aprecia a constitucionalidade ou não da Súmula 450 do TST, a expectativa — talvez mais a torcida — é de que a Suprema Corte consiga bem compreender o significado dos letreiros. Entretanto, o único voto tornado público, até o momento, sinaliza que o STF não permite estender a proibição a rinocerontes, porque a regra a ser cumprida menciona apenas cachorros. O verbete sob escrutínio possui o seguinte enunciado:

"FÉRIAS. GOZO NA ÉPOCA PRÓPRIA. PAGAMENTO FORA DO PRAZO. DOBRA DEVIDA. ARTS. 137 E 145 DA CLT. É devido o pagamento em dobro da remuneração de férias, incluído o terço constitucional, com base no art. 137 da CLT, quando, ainda que gozadas na época própria, o empregador tenha descumprido o prazo previsto no art. 145 do mesmo diploma legal."

A proposta de decisão levada ao Plenário Virtual pelo relator é pela inconstitucionalidade da súmula, e tem como fundamento a lei ter estabelecido o pagamento em dobro apenas se "as férias forem concedidas após o prazo" (CLT, 137, caput), de modo que o seu não pagamento no prazo constitui ato jurídico inapto a deflagrar a penalidade, por se tratar de consequência jurídica não prevista em lei.

O problema da solução indicada no voto reside na interpretação do vocábulo "concessão". Ele foi considerado um ato simples. Assim, se o empregador determina que o empregado fique em casa por 30 dias, sem nada lhe pagar, e, no retorno dele ao trabalho, anuncia: "Surpresa! Você estava de férias!", a obrigação de conceder férias está cumprida. Afinal, a lei exigiu apenas que "cachorros" não entrassem, silenciando a respeito dos "rinocerontes".

O equívoco é patente. "Concessão" de férias é ato complexo, que envolve: (1) consulta prévia ao empregado (Convenção 132/OIT, 10.1); (2) participação, por escrito, com, no mínimo, 30 dias de antecedência (CLT, 135, caput); (3) pagamento com pelo menos dois dias de anterioridade do início do gozo e, (4) licença remunerada pelo período de fruição definido.

É do encadeamento desse leque de atos que se extrai o significado do significante "concessão" de férias. O pressuposto epistemológico é o de que, sem ele, frustra-se o escopo de proporcionar ao empregado um período de desconexão, no qual possa restaurar suas energias e vivenciar o direito ao lazer (CF, 6º). Disso resulta a consequência de que o Direito do Trabalho exige que a obrigação seja adimplida por inteiro, e não pela metade. A interpretação finalística deve ser haurida da regra, pois, conforme escólio de Cooley, "the court, if possible, must give the statute such a construction as will enable it to have effect" [5].

O TST entende que se dois desses quatro fatores não estiverem combinados (a dação e a quitação tempestivas das férias), não há "concessão" capaz de obliterar a penalidade. Menos do que dois, aliás. O órgão mitigou a exigência do pagamento das férias dentro do prazo, ao afirmar que atrasos mínimos não têm o condão de malograr os objetivos das férias (E-RR-10128- 11.2016.5.15.0088, Tribunal Pleno, relator ministro Ives Gandra, DEJT 8/4/2021). Perfeito, pois não faz sentido interditar a entrada de uma criança com um peixinho dentro de um saco plástico com água só porque o letreiro proíbe "animais", em geral. O objetivo da norma foi atingido.

Chega a ser burlesca a lembrança de que o Brasil internalizou (D. 10.888/2009, 2º, Anexo LXVI) um tratado internacional segundo o qual a "concessão" de férias deve levar em conta "as possibilidades de repouso e diversão ao alcance da pessoa empregada" (Convenção 132/OIT, 10.2). Hipnos e Morfeu não seriam capazes de proporcionar um repouso tão tranquilo quanto ficar em casa sem um tostão. Também deve ser muito divertida a aventura de preocupar-se em pagar as contas e passar férias numa situação de insegurança jurídica. Uma "experiência" — para usar um jargão mais sintonizado. É como ir à Disney, com a vantagem de não aborrecer nenhum premiê. "Isso não são férias, é um castigo", diria Fefê.

De acordo com o voto, "o propósito de proteger o trabalhador não pode exponenciar-se (sic) a ponto de originar sanções jurídicas não previstas na legislação vigente, ante a impossibilidade de o Judiciário atuar como legislador positivo". Ele afirma, outrossim, ser "impossível transportar a cominação fixada em determinada hipótese de inadimplemento para uma situação distinta, ante a necessidade de conferir interpretação restritiva a normas sancionadoras".

O raciocínio, a partir de tais premissas, é que a Súmula 450 do TST aplica uma penalidade por fato jurídico não previsto em lei, utiliza a analogia mesmo sem lacuna a ser colmatada e interpreta ampliativamente uma prescrição punitiva.

Não foi o que aconteceu. A sanção está lá, despudoradamente entalhada no artigo 137, caput da CLT. Aliás, a analogia não pode ser inferida nem sequer do texto da Súmula 450 do TST. Ela assegura o direito à multa "com base no art. 137 da CLT", e não "por analogia ao art. 137 da CLT". Isso faz toda diferença.

A exegese da palavra "concessão" não inova no ordenamento, não estipula cominações imprevistas e quejandos. Limita-se a escoimar soluções heurísticas para problemas mais intrincados, mediante interpretação teleológica, baseada na finalidade social da norma (Lindb, 5º). Das muitas metáforas que poderia utilizar com o escopo de demonstrar meu argumento, pegarei de empréstimo a de Posner [6], a quem não se pode atribuir a pecha de "esquerdista".

Suponha que alguém peça à secretária que desmarque o almoço com José, pois se encontra a caminho do aeroporto para uma viagem às pressas. Ela desliga o telefone, olha a agenda, e verifica que, na verdade, o almoço programado para hoje é com Pedro. O que se espera [7] dela é que cancele o almoço com Pedro. Toda atitude diferente dessa é descumprir a ordem. Não adianta alegar que o comando tinha como destinatário José, e, assim, utilizá-lo para Pedro equivaleria às "práticas de ‘guerrilhas institucionais’, que acabam minando a coesão governamental e a confiança" [8] entre chefes e secretárias. Seria também obtuso cogitar a impossibilidade de aplicar a ordem, analogicamente (!?), para Pedro, pelo fato de a interpretação ser restritiva, quando a interpretação literal equivale à morte da regra — rectius, ao cancelamento de um encontro jamais marcado.

Consta do voto que a Suprema Corte "tem rechaçado, em contextos próximos, posturas corretivas que não encontram guarida em normas construídas pelo Poder Legislativo, como na: a) impossibilidade de o STF tipificar delitos e cominar sanções de Direito Penal" [9]. Com isso, descobri a necessidade de entender o que foi feito quando se proclamou a tese de que "até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, […], ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989" (ADO 26, Tribunal Pleno, DJe 6/10/2020). Lacuna normativa e identidade de razão. Ubi eadem ratio, ibi eadem ius. Antigamente isso tinha nome.

Foi também erigido o argumento de que não se poderia estabelecer sanção pelo pagamento intempestivo das férias, porquanto o artigo 153 da CLT já comina multa para tal ato infracional, razão pela qual "não se vislumbra vácuo legal propício à atividade integrativa, por mais louvável que seja a preocupação em concretizar os direitos fundamentais do trabalhador" [10]. A raciocínio é falho e incoerente. Falho porque a multa tem natureza administrativa, não se comunicando, nem remotamente, com algum tipo de penalidade trabalhista. E incoerente porque ela é aplicável a todas as violações ao capítulo de férias, inclusive, ao artigo 137, caput da CLT ("concessão" em atraso), o que demonstra a existência da tal "lacuna" — fosse esse o problema a ser equacionado por analogia.

Por fim, o voto louva o dispositivo que consagra o sepultamento hermenêutico, ao dizer que "súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei" (CLT, 8º, § 2º).

São tantos os problemas nessa regra que fica difícil até saber por onde começar a crítica. Mas vai aqui o ponto nevrálgico: não há método de interpretação que não implique criar ou retirar obrigações. Mesmo porque, "interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singular, através do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular" (STF — ADPF 153, Pleno, DJ 6/8/2010). Nos dizeres de Junqueira, "todo texto, para além das palavras, há sempre um contexto, um transtexto, um metatexto. Quem dá sentido e vida ao conjunto de expressões, frases e símbolos, é o intérprete. Do mesmo modo que não existe vida sem luz, não existe linguagem sem metáfora, sem um dizer para além das meras palavras" [11].

O adjetivo "proibida", o artigo definido "a", o substantivo "entrada", a preposição "de" e o substantivo "cães", vagando isoladamente, não revelam preceito algum. É da junção deles na oração "Proibida a entrada de cães", devidamente interpretada, que se extrai um cânone. Só que ele tem um inconveniente: restringe o direito legalmente previsto à liberdade de ir e vir. "Mas isso está previsto em lei", alguém poderia protestar. Sim, é verdade. Mas somente para a locomoção com cachorros. Não me proíba de entrar com o meu rinoceronte.

É possível, deveras, proceder à análise da norma e chegar à conclusão diferente da do TST, aqui defendida. Dizê-la afrontosa à separação dos Poderes (CF, 2º), porém, é interditar, por via oblíqua, a atividade hermenêutica. É esquecer que "o Direito é um meio para atingir os fins colimados pelo homem em atividade; a sua função é eminentemente social, construtora". Por isso, "o princípio da divisão dos poderes, observado sem restrições, o que, aliás, não se pratica em país algum" extingue "o antigo papel criador do Direito, atribuído à jurisprudência" [12] .

A exigência da concessão de férias — em sentido amplo — quitadas tempestivamente, sob cominação de dobra do valor, é simplesmente o resultado legítimo do processo de interpretação realizado pelo órgão responsável por uniformizar a legislação trabalhista infraconstitucional. O sistema só faz sentido se "produzir resultados que sejam individual e socialmente justos" [13]. Fora disso, justiça é quimérico devaneio que talvez só exista no céu. Porque aqui é cruel. É cruel, Fefê.

 


[1] SHAKESPEARE, William. Medida por Medida. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 115.

[2] Joãozinho e Duda também são incríveis. Como eles algum dia podem ler esse texto, apresso-me a dizer, em minha defesa, que eles só não foram citados aqui por não terem dito nada — ao menos que eu me lembre — de relevante para esse trabalho.

[3] MALLET, Estêvão. Breves notas sobre a interpretação das decisões judiciais. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 102, 161-190, p. 161.

[4] HOLMES JR., Oliver Wendell. The Theory of Legal Interpretation. Harvard Law Review, v. XII, n. 6, pp. 4-8, p. 7.

[5] COOLEY, Thomas M. A Treatise on the Constitutional Limitations – Which Rest Upon the Legislative Power of the States of the American Union. New Jersey: The Lawbook Exchange, Ltd., 2012, p. 24.

[6] POSNER, Richard. Problemas de Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 360.

[7] Ela poderia entrar novamente em contato comigo, mas suponha que eu fique incomunicável. Não posso entrar em contato com a lei — senão via hermenêutica — para saber o que ela realmente me determinou.

[8] ADPF 501, voto do rel. Alexandre de Moraes.

[9] Idem.

[10] Ibidem.

[11] JUNQUEIRA, Fernanda Antunes Marques. A limitação da função interpretativa do juiz: era do cabresto? Revista Ltr, São Paulo, v. 81, nº 12, p. 1455-1466, dez. 2017.

[12] MAXIMILIANO, Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed. 3ª tir. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 169 e 49.

[13] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 8.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!