Opinião

Cognição judicial sumária/superficial não é analisar "por alto"

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16 de julho de 2022, 14h11

Desde Kazuo Watanabe [1], a cognição judicial passou a ser classificada de maneira sistemática, dentre outros critérios, pela profundidade da cognição, que poderia ser sumária/superficial ou exauriente. A cognição sumária é aquela típica dos pronunciamentos provisórios, como as decisões liminares e/ou que decidem tutelas provisórias com base em juízo de probabilidade, enquanto que a cognição exauriente é típica das sentenças, que contém em si um juízo de certeza sobre a inadmissibilidade do processo (em caso de sentença extintiva) ou sobre o mérito (em caso de sentença definitiva).

A cognição sumária é caracterizada, então, pela sua provisoriedade e pelo momento processual em que é exercida, e não forma coisa julgada por estar fundada em juízo de probabilidade, mutável por natureza. A cognição exauriente, por sua vez, traz em si um juízo de certeza necessário a tornar o pronunciamento imutável, protegido pela coisa julgada, em especial a coisa julgada material, pois a sentença, por definição legal (artigo 203, §1º, CPC), encerra a fase cognitiva do procedimento comum.

Até aqui o que foi dito é um resumo daquilo que usualmente se encontra em qualquer manual ou curso de Direito Processual Civil, porém parece não haver uma clareza acerca de qual deve ser a conduta dos juízes quando lhes é demandado um pronunciamento fundado em cognição sumária. Aparentemente, tem se difundido uma concepção de que a cognição superficial demanda uma análise superficial, de modo que o juiz não poderia analisar o caso com profundidade para não "antecipar o mérito da causa". E essa concepção é, evidentemente, equivocada.

Essa concepção tem resultado, de maneira cada vez mais frequente, em indeferimentos de tutelas provisórias simplesmente porque demandam uma análise mais complexa e uma fundamentação mais robusta. São decisões que, usualmente, afirmam inexistir a probabilidade do direito, porém sequer analisam adequadamente os fatos e fundamentos apresentados, de modo que a improbabilidade do direito decorre meramente da complexidade da análise exigida para uma decisão adequada (ainda que seja para indeferir o pedido).

Por algum motivo, arraigou-se no imaginário jurídico de juízes e tribunais uma concepção de que o pedido de tutela provisória, para que seja deferido, não pode demandar do julgador esforço cognitivo (ou uma cognição profunda). Para ilustrar a metáfora da profundidade da cognição, se o autor cavasse um poço e o mostrasse ao juiz dizendo "com base nesse poço tenho direito a uma tutela provisória", o juiz só poderia conceder o direito se fosse possível vislumbra-lo já na borda do poço, ou se o poço fosse raso; se o poço fosse profundo e, como consequência, fosse necessário olhar ao fundo do poço e ilumina-lo com uma lanterna, então não seria o caso de deferimento.

É importante, portanto, esclarecer que cognição sumária/superficial não significa análise superficial, e que o direito provável não é necessariamente aquele que exige pouco esforço cognitivo do juiz.

Watanabe, atento à possível incompreensão do que seria a cognição "superficial", fez uma advertência importante, embora essa advertência não tenha sido adequadamente reproduzida na maioria dos manuais e cursos que o referenciam.

A advertência é justamente no sentido de que a superficialidade da cognição não quer dizer análise superficial, mas análise com base nos fatos e provas disponíveis naquele momento, sem prejuízo de mudança naquilo que havia sido decidido com base nas provas que ainda venham a ser produzidas pelo réu ou até mesmo pelo autor. O réu tem a oportunidade de demonstrar que um direito inicialmente considerado provável, na verdade não é direito, ao mesmo tempo em que o autor pode vir a demonstrar que um direito inicialmente considerado improvável, na verdade é direito. A cognição sumária/superficial, portanto, tem tudo a ver com o exercício do contraditório. Em suas palavras [2]:

"Ao referir-se à cognição superficial, está o autor apenas posicionando a cognição sumária no plano vertical da cognição, sem que isso tenha qualquer referência a uma atitude ou forma de aproximação do juiz ao material probatório. Não se cuida, portanto, de exame superficial, e sim de exame atento e consequente acerca da necessidade de tutela em face de um material probatório ainda incompleto. Embora pareça tola, a advertência é relevante, visto que a praxe toma a expressão 'cognição superficial' como uma autorização para a decisão irrefletida e carente de fundamentação."

A advertência não é tola, como pude constatar. E pior: embora relevante e necessária, a advertência não tem sido ouvida por parte do Poder Judiciário.

Qual é, então, a correta concepção da cognição sumária? A resposta, como já antecipado acima: aquela que entende que a cognição sumária diz respeito ao exaurimento ou não do contraditório. Em outras palavras, enquanto ainda houver contraditório a ser exercido, não pode haver juízo de certeza sobre o mérito da demanda.

Podem, nesse sentido, existirem casos em que o esforço cognitivo será o mesmo na cognição sumária e cognição exauriente, como neste exemplo: o autor demanda contra o réu, e pede uma tutela provisória antecipada, juntando as provas que possui naquele momento e que entende serem suficientes para que seu pleito possa ser acolhido inicialmente. O juiz, então, defere a tutela provisória, em cognição superficial, e determina a citação do réu, porém o réu não apresenta defesa. Como consequência da revelia do réu, o juiz prolata sentença de procedência, em cognição exauriente, e o faz com base no exato mesmo conjunto probatório que o levou a deferir a tutela provisória inicialmente.

Nesse caso hipotético, a "profundidade" da cognição (leia-se: esforço cognitivo) foi exatamente o mesmo na decisão que apreciou o pedido de tutela provisória e o que prolatou a sentença de procedência. O conjunto probatório e os argumentos fático-jurídicos eram exatamente iguais. Na prática, portanto, o esforço cognitivo foi o mesmo. O que diferencia os pronunciamentos, em termos de profundidade da cognição, é que a sentença foi prolatada após o estabelecimento do contraditório (ainda que o réu não tenha exercido seu direito de defesa).

Retomo a metáfora do poço para ilustrar o que quero demonstrar: se o autor cava um poço para mostrar ao juiz que tem direito ao que pede, o juiz pode até entender que o autor tem razão inicialmente olhando o poço na profundidade cavada pelo autor. Porém, uma vez que ao réu tenha sido oportunizada a defesa, este pode "aprofundar" o poço inicialmente cavado pelo autor para convencer o juiz que o autor, na verdade, não tem razão. Olhando novamente o poço, após a defesa do réu, o juiz pode mudar de ideia, ou não, e esse segundo exame será definitivo porque ambas as partes tiveram a oportunidade de influenciar o julgamento. O que importa é que o réu teve a sua chance de aprofundar o poço cognitivo, ainda que não o tenha feito. E é, em síntese, isso que irá diferenciar a cognição sumária da cognição exauriente, não o esforço cognitivo a ser exigido do juiz no momento da análise. Esse esforço cognitivo, portanto, não pode e não deve ser o critério que diferencia a cognição sumária da cognição exauriente.

Marinoni e Arenhart chegam a criticar a ideia de que a cognição sumária exige um "juízo de probabilidade", em contraposição ao juízo de certeza característico das sentenças. O fundamento da crítica, correta a meu ver, diz respeito justamente à importância do contraditório nesse contexto [3]:

"Quando o juiz é obrigado a decidir com base em uma participação restrita das partes, o seu juízo é obviamente sumário, não porque seu conhecimento sobre os fatos apenas possa ser dito provável, mas sim porque as partes ainda não se utilizaram de forma plena das suas oportunidades de participação para o conhecimento do juiz."

É dever do juiz, portanto, analisar com toda a profundidade necessária os fatos e fundamentos apresentados pela(s) parte(s), independentemente de ser a cognição sumária ou exauriente. Uma tutela provisória só pode ser indeferida se o juiz, após analisar com cuidado e atenção tudo o que foi apresentado pelo autor, entender que o direito pleiteado não é provável, por mais que essa análise seja complexa. E, claro, essa análise deve constar na decisão prolatada.

Talvez o ideal seria abandonar a noção de profundidade da cognição a favor de uma noção de "profundidade do contraditório". Afinal, se o que diferencia a cognição sumária da cognição exauriente é o contraditório, melhor seria falar em "contraditório sumário" e "contraditório exauriente". A profundidade da cognição, nesse sentido, seria sempre exauriente, mas exauriente de acordo com o contraditório até então exercido pelas partes no momento em que a decisão foi prolatada.

De qualquer modo, ainda que sejam preservadas as noções de cognição sumária e exauriente, é imprescindível que a advertência de Kazuo seja ouvida: cognição sumária não é analisar "por alto".


[1] WATANABE, Kazuo. Da cognição processual civil. Campinas: Bookseller, 2000.

[2] WATANABE, Kazuo. Da cognição processual civil. Campinas: Bookseller, 2000, p. 121.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHAR, Sérgio Cruz. Prova e convicção: de acordo com o CPC de 2015. 3ª ed. São Paulo: RT. 2015. P. 87.

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