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Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal

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16 de julho de 2022, 13h17

A Emenda Constitucional 125, de 2022, acrescentou os §§2º e 3º ao artigo 105 da Constituição para prever "a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso" como requisito de admissibilidade do recurso especial.

O §2º do artigo 105 da Constituição tem a seguinte redação: "No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento".

O novo requisito de admissibilidade do recurso especial depende de regulamentação, pois o referido §2º dispõe que o recorrente deve demonstrá-lo "nos termos da lei", a exigir que haja disciplinamento legal. Logo, enquanto não for regulamentado o dispositivo, não poderá ser exigido tal requisito de admissibilidade, até porque não se sabe, ainda, quais são as exatas exigências legais.

Nos termos do §3º do artigo 105 da Constituição, haverá relevância automática nos casos que indica, inclusive nas "ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos".

Embora o requisito dependa de regulamentação legal, o artigo 2º da Emenda Constitucional 125, de 2022, enuncia que ele será exigido "nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional, ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º do referido artigo".

Daí se percebe a existência de uma antinomia, sendo necessária a adoção ou de uma "interpretação corretiva", ou de uma "interpretação ab-rogante". A propósito desses tipos de interpretação que resolvem antinomias, assim já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal: "A antinomia aparente é aquela que permite a conciliação entre os dispositivos antinômicos, ainda que pelo que se denomina 'interpretação corretiva', ao passo que a antinomia real é aquela que, de forma alguma, permite essa conciliação, daí decorrendo a necessidade de se adotar a chamada 'interpretação ab-rogante', pela qual ou o intérprete elimina uma das normas contraditórias (ab-rogação simples) ou elimina as duas normas contrárias (ab-rogação dupla). Dessas três soluções, a que deve ser preferida — só sendo afastável quando de forma alguma possa ser utilizada — é a interpretação corretiva, que conserva ambas as normas incompatíveis por meio de interpretação que se ajuste ao espírito da lei e que corrija a incompatibilidade, eliminando-a pela introdução de leve ou de parcial modificação no texto da lei" [1].

Cumpre, então, conferir uma interpretação corretiva ao artigo 2º da Emenda Constitucional 125, de 2022, a fim de preservá-lo e ajustá-lo ao sistema atualmente em vigor. E há, efetivamente, a possibilidade de se conferir utilidade à regra, emprestando-lhe uma interpretação que a harmoniza com o sistema atual. De acordo com o §2º do artigo 105 da Constituição, é necessário haver regulamentação da relevância da questão federal. O artigo 2º da emenda prevê que a exigência se aplica aos recursos interpostos depois de sua vigência. O dispositivo há de ser lido da seguinte forma: o novo requisito de admissibilidade deve aplicar-se aos recursos interpostos depois do início de vigência da lei que o regulamentar.

Não é possível exigir o novo requisito de admissibilidade antes de sua regulamentação. No particular, cumpre relembrar a mudança constitucional operada pela Emenda Constitucional 45, de 2004, que introduziu o requisito da repercussão geral no recurso extraordinário.

O §3º do artigo 102 da Constituição prevê a repercussão geral no recurso extraordinário "nos termos da lei". A repercussão geral no recurso extraordinário dependeu de regulamentação legal. De igual modo, a relevância da questão federal depende de regulamentação legal.

A repercussão geral no recurso extraordinário veio a ser regulamentada pela Lei 11.418, de 2006, vindo, posteriormente, a ser incorporada no atual Código de Processo Civil. O artigo 3º da referida Lei 11.418, de 2006, previu, ainda, caber ao STF estabelecer, em seu regimento interno, "as normas necessárias à execução desta Lei".

Foi, então, necessária dupla regulamentação: a Lei 11.418, de 2006, regulamentou o §3º do artigo 102 da Constituição e o regimento interno do STF regulamentou a Lei 11.418, de 2006.

No caso da repercussão geral em recurso extraordinário, sua exigência somente passou a ocorrer depois da regulamentação pelo regimento interno do STF. Não foi suficiente a regulamentação pela Lei 11.418, de 2006. Foi necessário aguardar a regulamentação pelo regimento interno do STF. Isso porque não se pode exigir o cumprimento de uma regra que depende de regulamentação.

Ao julgar a Questão de Ordem no Agravo de Instrumento 664.567, o plenário do STF entendeu que "a exigência da demonstração formal e fundamentada, no recurso extraordinário, da repercussão geral das questões constitucionais discutidas só incide quando a intimação do acórdão recorrido tenha ocorrido a partir de 03 de maio de 2007, data da publicação da Emenda Regimental n. 21, de 30 de abril de 2007" 2].

O direito intertemporal no âmbito recursal exige que se observe o momento em que se adquire o direito ao recurso. Enquanto não proferida a decisão judicial, a parte não pode interpor o correspondente recurso. Uma vez prolatada a decisão, surge uma espécie de direito adquirido processual àquele recurso. Enquanto não proferida a decisão, a parte dispõe, apenas, de mera expectativa de direito à interposição do recurso [3].

Caso a lei superveniente que modifique, crie ou extinga um recurso surja antes da prolação da decisão, tal alteração vai atingir o processo, frustrando a expectativa (e não o direito) da parte em poder interpor (ou não) aquele recurso específico. Tendo, contudo, já sido proferida a decisão, e sobrevindo lei que modifique, crie ou extinga um recurso, tal inovação legislativa não deve atingir o processo, pois, do contrário, estaria retroagindo para frustrar um direito já adquirido no processo.

Com efeito, já proferida a decisão, a parte pode exercer seu direito de interpor o recurso cabível. Já existe, no particular, direito adquirido. É o que dispõe o §2º do artigo 6º da LINDB, ao enunciar que se consideram adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

É antiga a orientação segundo a qual "a lei em vigor ao ser proferida a decisão regulará o recurso" [4]. A admissibilidade do recurso rege-se pela lei em vigor ao tempo da decisão.

Se surge uma nova previsão normativa, a criar um requisito de admissibilidade, este somente será exigido a partir das decisões proferidas após o início de sua vigência. Se, porém, a nova previsão normativa depende de regulamentação, é preciso aguardar a regulamentação. Feita a regulamentação, o novo requisito de admissibilidade somente poderá ser exigido dos recursos a serem interpostos das decisões proferidas depois do início de vigência da regulamentação.

A previsão contida no artigo 3º da Emenda Constitucional prevê, como marco temporal, a interposição do recurso, o que ofende a garantia constitucional do direito adquirido: imagine que a vigência surja no 15º dia do prazo, quando a parte já está prestes a interpor seu recurso. Não poderá ser apanhada pela exigência de demonstração da relevância, pois isso configura uma inadmissível retroatividade, atentando contra o direito adquirido processual.

Enfim, a exigência deve somente passar a ser feita para os casos nos quais as decisões recorríveis forem proferidas depois do início de vigência da lei que venha a regulamentar a relevância da questão federal.

 


[1] STF, 1ª Turma, HC 68.793/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, rel. p/ acórdão Min. Moreira Alves, DJ 6.6.1997, p. 30.287.

[2] STF, Pleno, AI 664.567 QO, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJe 6.9.2007.

[3] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, n. 8.1, p. 132.

[4] VALLADÃO, Haroldo. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 1974, v. 13, n. 24, p. 91.

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