Opinião

Progressão de regime: artigo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos

Autor

  • Diego de Azevedo Simão

    é autor do livro "Lei de Execução Penal comentada e anotada" publicado pela editora D'Plácido. Defensor público em Rondônia. Mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Unir. Especialista em direito processual penal. Especialista em Direitos Humanos. Especialista em Direito de Execução Penal. Membro do Ibep (Instituto Brasileiro de Execução Penal). Membro do IDPR (Instituto de Direito Processual de Rondônia). Membro do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

14 de julho de 2022, 7h07

Nas penas privativas de liberdade, a progressão de regime prisional consiste na transferência para o regime menos rigoroso quando satisfeitos os requisitos legais. Conforme disciplina a LEP, a progressão de regime prisional exige a satisfação do requisito objetivo  tempo de cumprimento de pena previsto no artigo 112, incisos I a VIII e §3º  e o requisito subjetivo  boa conduta carcerária, conforme artigo 112, §1º, da LEP. Especificamente nos casos de crimes contra a administração pública, além dos requisitos acima indicados, a progressão de regime também exigirá a reparação do dano ou a devolução do produto do crime praticado, com os acréscimos legais (artigo 33, §4º, CP).

Apesar da disciplina legal, a jurisprudência tem exigido mais um requisito para a progressão de regime, a saber: o adimplemento da pena de multa. Reiteradas decisões do STJ têm apontado no sentido de que o inadimplemento involuntário da pena de multa imposta cumulativamente à pena privativa de liberdade impede a progressão de regime. Atualmente a matéria é objeto do tema 1.152, e será julgada no STJ sob o rito dos recursos repetitivos.

A exigência do adimplemento da pena de multa aplicada cumulativamente com a pena privativa de liberdade como condicionante para a progressão de regime não encontra amparo legal na legislação, consubstanciando-se, portanto, em requisito extralegal, de criação jurisprudencial.

Diante desse panorama, com o objetivo de contribuir para a discussão sobre o tema, no presente texto proponho a análise desse entendimento jurisprudencial face à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), adotando, por parâmetro, especificamente, a norma protetiva de direitos humanos prevista no artigo 7.3. da CADH, que veda o encarceramento arbitrário.

Essa análise é importante porque ao ratificar a CADH o Brasil se comprometeu a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social (artigo 1). Dessa maneira, não apenas a legislação interna, mas a interpretação e aplicação da lei deverá guardar compatibilidade com as normas de proteção de direitos humanos previstas na CADH.

A CADH em seu artigo 7.3. dispõe que "Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários". Trata-se de norma que veda a privação de liberdade de forma arbitrária, ou seja, que veda a prisão nos casos em que inexiste amparo legal [1] ou quando, mesmo prevista em lei, resulte irrazoável ou carente de proporcionalidade [2].

Embora a maioria dos julgados sobre a norma do artigo 7.3. da CADH que trata sobre a vedação do encarceramento arbitrário diga respeito a casos envolvendo prisão preventiva, o fato é que o fundamento adotado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para definir se uma prisão é ou não arbitrária leva em consideração a existência de previsão legal para autorizar a prisão ou, em havendo previsão legal, se a prisão atende critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

No caso Fleury e outros vs. Haiti a Corte IDH decidiu que: "Qualquer causa de privação ou restrição do direito à liberdade pessoal não deve apenas estar prevista na lei, nos termos do artigo 7.3 da Convenção, sua finalidade deve ser legítima e compatível com a Convenção e não deve ser consequência do exercício dos Direitos". Neste caso, o senhor Fleury não foi detido em flagrante delito e sua detenção pela PNH nunca teve o objetivo de acusá-lo ou levá-lo a julgamento pela suposta ou possível prática de ato ilícito, mas que teve outros objetivos, como possível extorsão ou, no contexto de ameaças e perseguição de defensores de direitos humanos, intimidando e dissuadindo-o de realizar seu trabalho. Por esta razão, o sr. Fleury foi detido arbitrariamente, em violação ao artigo 7.3 da Convenção [3].

Adotando por parâmetro o artigo 7.3. da CADH e a interpretação do Corte IDH sobre a referida norma, é possível concluir que caracteriza encarceramento arbitrário a submissão da progressão de regime prisional ao adimplemento da pena de multa imposta cumulativamente à pena privativa de liberdade, posto que, nesses casos a prisão em regime mais gravoso é mantida: 1] mesmo quando satisfeitos os requisitos legais para a progressão de regime; 2]  sem amparo legal, já que o adimplemento da pena de multa não é requisito para a progressão de regime e nem mesmo causa legal obstativa da progressão de regime prisional; 3] e sem a observação de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, posto que a vedação da progressão e manutenção da pessoa no regime mais grave acaba servindo de meio para coagir o pagamento da pena de multa, além de impactar negativamente no sistema prisional por gerar encarceramento, já que obsta a saída para regime mais brando a quem já preencheu os requisitos legais para a progressão de regime.

A caracterização do encarceramento arbitrário por ausência de previsão legal é de fácil constatação, na medida em que, conforme já anotado, o adimplemento da pena de multa não é requisito legal para a progressão de regime. Logo, não pode obstar a implementação desse direito de execução penal quando satisfeitos os requisitos legais para a progressão, e nem autorizar o encarceramento em regime de cumprimento de pena mais gravoso.

De mais a mais, a pena de multa possui um regime próprio para a sua execução. Isso significa dizer que a execução da pena de multa deve observar o rito previsto em lei, não se podendo admitir que a vedação da progressão de regime  direito de execução penal vinculado a pena privativa de liberdade  seja utilizada como medida para buscar o adimplemento da pena de multa. A vedação da progressão de regime, nessa hipótese, não pode ser considerada como meio legítimo para executar a pena de multa, até mesmo porque os meios constritivos que podem ser adotados para a execução da pena de multa estão previstos em lei, sendo vedada a adoção da prisão para tal finalidade, e mesmo a conversão da pena de multa em prisão, vedada desde a Lei 9.268/1996. Por essa razão, o impedimento à progressão de regime pode ser caracterizado como encarceramento arbitrário no regime mais gravoso em razão da ilegitimidade da medida para buscar o adimplemento da pena de multa.

Se a pena de multa não pode ser convertida em prisão, não há razão para que o inadimplemento da multa seja considerado medida idônea para obstar a progressão de regime e autorizar a manutenção da pessoa em regime mais grave, quando satisfeitos os requisitos legais para a progressão de regime.

Além do que já foi exposto, um outro aspecto merece atenção. A vedação da progressão de regime nesses casos irá resultar em um maior tempo de aprisionamento em regime mais gravoso, ou seja, irá gerar ainda mais hiperencarceramento num sistema carcerário que atualmente conta com 917.327 pessoas privadas de liberdade [4]. Como consequência, irá gerar um maior impacto financeiro e gasto público com a manutenção, em regime mais gravoso, de pessoas que já preencheram os requisitos legais para progredirem ao regime mais brando. Não se pode desconsiderar que o custo médio da pessoa privada de liberdade por unidade federativa em dezembro de 2021 foi de R$ 2.430,89 [5], conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.

Não é novidade que os estabelecimentos penais brasileiros são superlotados, e que os direitos de execução penal são sonegados. Especificamente no que se refere ao trabalho prisional, apenas 19,25% [6] da população prisional tem acesso ao trabalho, sendo que nem todas essas pessoas em atividade laboral recebem remuneração. Esse déficit de acesso ao trabalho durante o cumprimento da pena também é fator que necessita ser levado em consideração, sobretudo porque, durante o período de encarceramento, é o trabalho prisional a fonte de renda da pessoa privada de liberdade, cuja remuneração deverá atender: à indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e não reparados por outros meios; à assistência à família; a pequenas despesas pessoais; ao ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção do condenado, em proporção a ser fixada e sem prejuízo da destinação prevista nas letras anteriores; e o restante será depositado para constituição do pecúlio, em Caderneta de Poupança, que será entregue ao condenado quando posto em liberdade (artigo 29, §§1º e 2º, da LEP).

Dessa maneira, caso dependa do desenvolvimento de atividade laboral durante o cumprimento da pena, tendo em conta a ausência de trabalho prisional, ou mesmo nos casos em que o trabalho prisional é ofertado com remuneração, em que os rendimentos não superam ¾ do salário-mínimo (artigo 29, LEP), dificilmente a pessoa privada de liberdade possuirá meios para o adimplemento da pena de multa.

De todo modo, seja em relação a pessoa privada de liberdade que não possua meios para adimplir a pena de multa, ou mesmo em relação às pessoas que possuam condições para o adimplemento da pena de multa, a execução da pena de multa deverá observar o regramento legal previsto no artigo 51 do CP.

Assim, tendo em conta a argumentação acima apresentada, é possível concluir que a interpretação jurisprudencial até então dominante, no sentido de que o inadimplemento involuntário da pena de multa imposta cumulativamente à pena privativa de liberdade impede a progressão de regime, confronta a regra do artigo 7.3. da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, caracterizando hipótese de encarceramento arbitrário em regime de cumprimento de pena mais gravoso, na medida em que, quando satisfeitos os requisitos legais, a progressão de regime prisional é impedida 1] sem amparo legal, já que o adimplemento da pena de multa não é requisito para a progressão de regime e nem mesmo causa legal obstativa da progressão de regime prisional; 2] e sem a observação de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, posto que a vedação da progressão e manutenção da pessoa no regime mais grave acaba servindo de meio para coagir o pagamento da pena de multa, além de impactar negativamente no sistema prisional por gerar encarceramento no regime mais gravoso, já que obsta a saída para regime mais brando a quem já preencheu os requisitos legais para a progressão de regime.

Considerando a importância prática do tema e o dever do Estado Brasileiro em respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na CADH e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, o presente texto apresentou contribuição para que no julgamento do tema 1.152 pelo STJ possa ser adotada interpretação combatível com as normas de proteção de direitos humanos previstas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, especificamente aquela prevista no artigo 7.3. da CADH.


[1] Corte Interamericana. Caso Fleury e outros vs. Haiti. Antecedentes e Reparos. Sentença de 23 Novembro de 2011. Série C Nº 236

[2] Corte IDH. Caso Pacheco Teruel y otros Vs. Honduras. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 27 de abril de 2012. Serie C No. 241.

[3] Corte Interamericana de Derechos Humanos. Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos No. 7 : Control de Convencionalidad / Corte Interamericana de Derechos Humanos.  San José, C.R.: Corte IDH, 2021. p. 36.

[4] CNJ, Estatística BNMP. Disponível em: https://portalbnmp.cnj.jus.br/#/estatisticas acesso em 7 de julho de 2022.

Autores

  • é defensor público no estado de Rondônia, mestrando em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Unir, especialista em Direito Processual Penal, especialista em Direitos Humanos, membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (Ibep), membro do Instituto de Direito Processual de Rondônia (IDPR) e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!