Opinião

Uma revolução em curso

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8 de julho de 2022, 17h03

Num dos melhores escritos que li sobre a Revolução Francesa[1], Gabrielle, neta, dirigindo-se a Michel Vovelle, seu avô, que sobre aquela lecionou por mais de quarenta anos, pergunta: "Vovô, o que é uma revolução?" A resposta foi direta: "Diferentemente da revolta, a revolução muda o curso da história de um país".

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É de se refletir que tal definição não se circunscreve à política, somente. Outros segmentos dos estudos científicos também podem apresentar iniciativas do gênero. O Direito, pela influência que sofre dos imperativos da realidade, não se encontra inteiramente ao largo da combustão revolucionária. De tempos em tempos, os sistemas jurídicos precisam de ajustes, para que a sua eficácia perante os seus destinatários e aplicadores não resulte desprestigiada.

Tal parece vir sucedendo, na atualidade, com o direito administrativo brasileiro, especialmente no que diz respeito à província das invalidades. Se, num primeiro instante, a ausência de um código ou de uma lei geral fez com que parte relevante dos autores, na qual se ineriu Tito Prates da Fonseca[2], alvitrasse a aplicação, com temperamentos, do modelo estruturado pelo Código Civil de 1916, ao fim, prevaleceu, entre nós, uma concepção autoritária, consistente na imposição da invalidade como decorrência intransponível do quebrantamento da ordem jurídica.

Assim, Hely Lopes Meirelles[3] que, ao recusar a possibilidade de atos anuláveis, preconizava a nulidade como uma solução cogente, o que foi reforçado pela adoção, sem maiores reflexões, da orientação consignada pelo STF na Súmula nº 473.

A rebeldia a esse entendimento foi sendo expressa pela doutrina. Primeiramente, tem-se a formulação de compreensões no sentido da convalidação (Weida Zancaner[4]) e, mesmo, da impossibilidade da invalidação após o decurso de um razoável lapso de tempo, em face da boa-fé do administrado (Almiro do Couto e Silva[5] e Juarez Freitas[6]), mesmo que tais possibilidades, representativas de institutos jurídicos, não restassem, ao contrário de outros sistemas jurídicos, amparadas em normas legais de alcance geral.

O movimento prosseguiu. A ousadia dos mais jovens transpôs à ribalta a estabilização, cuja singularidade é a manutenção da postura tida por inválida, mesmo sem a extirpação do vício, e independente do fator temporal, mas única e principalmente porque o recurso à invalidação acarretará consequências mais gravosas ao interesse público concreto do que a invalidação, pura e simples.

Assim sucedeu quanto aos efeitos dos contratos administrativos, segundo expôs Jacintho de Arruda Câmara[7], passando-se aos comportamentos administrativos em geral, o que pode ser visualizado na leitura de Ricardo Marcondes Martins[8] e Rafael Valim[9].

Essa compreensão não ignorou a poesia do tempo. Nela se encontra rejuvenescida a concepção decorrente do viés crítico de Seabra Fagundes[10], para quem a incidência do Código Civil às invalidades no direito administrativo somente poderia ser admissível supletivamente. Isso porque a invalidade, no direito privado, tem uma finalidade restauradora do equilíbrio individual perturbado, enquanto, no direito público, atua com feição bastante diversa. O ato jurídico privado tem, em regra, a sua eficácia restrita a repercutir entre os seus participantes, diverso do que ocorre no direito administrativo, quando se há que se considerar o interesse público.

Daí o autor[11] haver propugnado por agrupar os atos administrativos viciados em três categorias (atos absolutamente inválidos, atos relativamente inválidos e atos irregulares), moduladas em razão de uma maior ou menor afetação do interesse público, as quais são, por conseguinte, diferenciadas quanto aos seus efeitos, que não podem corresponder a um esquema matemático, de uma rigidez inflexível. A medida da eficácia da invalidação, assim, haveria de corresponder às exigências do que denominou interesse público concreto e não ao interesse público abstrato, decorrente da violação da lei, tout court.

Atento aos reclamos doutrinários, o legislador pôs a questão nos seus devidos termos, fazendo acrescentar, pela Lei nº 13.655/2018, artigo 21 à Lindb, preceituando:

"Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos."

Porventura mais incisiva, a Lei nº 14.133/2021 (LLCA), a qual delineia o novo regime das licitações e contratos administrativos, prevê, no seu art. 147, que, em se constatando irregularidade no procedimento licitatório ou na execução do contrato, haverá de se verificar, primeiramente, a possibilidade de seu saneamento (convalidação). Não sendo cabível a superação da ilegalidade, ainda assim não será cabível a decisão pela invalidação quando a medida não se revelar em compasso com o interesse público, avaliado, dentre outros, pelos aspectos que indica nos seus 11 incisos, sem contar que, mesmo quando a invalidade se evidencie como inelutável, a LLCA (art. 148, §2º) permite que o contrato possua eficácia para o futuro, com a execução pelo tempo de até seis meses, prorrogável uma só vez.

O lugar comum de que a invalidade se impõe retroativamente (ex tunc) também perdeu sua consistência. O artigo 2º, parágrafo único, XIII, segunda parte, da Lei nº 9.784/99, assim veda quando a invalidade decorrer de uma alteração interpretativa e, quanto aos contratos, o art. 148, §1º, da LLCA, cogita da possibilidade de sua invalidação suceder ex nunc.

Nesse diapasão, a autoridade competente, inserindo-se o juiz, uma vez constatada ilegalidade, tem à sua disposição várias escolhas, devendo optar pela que melhor atender ao interesse público, além da invalidação, pura e simples. Dentre elas, estão a convalidação, a conversão, a invalidade parcial, a não retroação dos seus efeitos, a estabilização etc[12].

Assim deverá ser, pois, conforme ensina Vieira de Andrade, sempre a doutrina e jurisprudência portuguesas são instadas a conviver com a invalidade, no confronto da avaliação da conformidade das atuações administrativas com o Direito, razão pela qual não se pode desconhecer que "a figura jurídica não deixa por vezes de surpreender, quando se tem de escolher o comportamento certo a adotar perante ela em algumas situações da vida, quando se trata de conseguir a solução justa de determinados litígios ou, numa dimensão mais reflexiva, quando se pretende definir-lhe com maior rigor os contornos dogmáticos" [13].

Tem-se, indiscutivelmente, nestas plagas, uma revolução no que concerne à visão majoritária da invalidade administrativa, mediante uma radical mudança de paradigma. É preciso, então, que, não somente o administrador e os órgãos de controle, mas especialmente os juízes atentem para a necessidade prática dessa transformação.


[1] A Revolução Francesa explicada à minha neta. São Paulo: Editora UNESP, 2005, pp. 10-11. Tradução de Fernando Santos

[2] Direito administrativo. Livraria Freitas Bastos: Rio de Janeiro, 1939, p. 388-390.

[3] Revogação e anulação de ato administrativo. Revista de Direito Administrativo, v. 75, p. 35, abril-junho de 1964).

[4] Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

[5] Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo, Revista de Direito Público, n. 84, p. 46-63.  

[6] Estudos de direito administrativo. 1ªed. São Paulo: Malheiros, 1995.

[7] Obrigações do Estado derivadas de contratos inválidos. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 40.

[8] Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 295-296.

[9] O princípio da segurança jurídica no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 121.

[10] O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, pp. 46-47. A primeira edição recua ao ano de 1941.

[11] Ibidem, pp. 54-59.

[12] Ver Ricardo Martins (op. cit., pp. 275-282 e 402-404).

[13] A nulidade administrativa, essa desconhecida. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 138, nº 3957, p. 333-334, julho-agosto de 2009.

Autores

  • é desembargador do Tribunal Regional da 5ª Região, professor titular da Faculdade de Direito do Recife – Universidade Federal de Pernambuco e pós-doutor pelo Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra.

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