Opinião

O saneamento básico e seus instrumentos jurídicos

Autor

  • Douglas Estevam

    é advogado secretário-geral da Comissão de Saneamento e Recursos Hídricos da Subseção da Barra da Tijuca (OAB-RJ) assessor do Instituto Rio Metrópole (IRM) membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e mestrando em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

7 de julho de 2022, 11h07

O direito administrativo dos serviços de saneamento básico é complexo. Além da multiplicidade dos modos de prestação, também existe um número considerável de ajustes que garantem a segurança jurídica dessas operações. Qual a diferença entre um convênio de cooperação, um contrato de gerenciamento, um contrato de programa, um contrato de concessão e um contrato de interdependência? É intenção deste texto explicá-la.

Na Constituição, a associação voluntária entre municípios e estados foi prevista no artigo 241, por meio dos convênios de cooperação. Nessa parceria interfederativa, os titulares dos serviços públicos de saneamento básico — os municípios [1] — constituem gestão associada com o ente estadual [2].

Portanto, inserta pela Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, a gestão associada tem o escopo de aplicar os "preceitos do federalismo na administração pública, particularmente no que tange à descentralização dos serviços públicos" [3].

No convênio de cooperação, consubstancia-se o interesse mútuo das pessoas jurídicas de direito público interno na parceria pública [4], a fim de conjugar esforços para a melhoria das condições de saneamento básico — competência comum prevista no artigo 23, IX, da Constituição Federal.

Nesse instrumento jurídico, há a comunhão de interesses entre os entes municipal e estadual, por meio das respectivas obrigações a cada qual estabelecidas, a fim de estruturar e organizar a oferta de serviços públicos de maneira integrada e regionalizada.

Trata-se, pois, de uma cooperação técnica entre diversos níveis da Administração Pública, em cujo ajuste se transfere parte das funções públicas do titular do serviço a outro ente federativo.

Contudo, visando pormenorizar os direitos decorrentes da gestão associada desses serviços, os convenentes também costumam celebrar um contrato de gerenciamento, em que se dispõem minuciosamente as obrigações, a forma de execução, ou até mesmo o compartilhamento de responsabilidade por eventual ônus financeiro.

Nesse sentido, o contrato de gerenciamento tem a finalidade de complementar o convênio de cooperação, também podendo dispor sobre a transferência da regulação sobre os serviços públicos, inclusive tarifária, assim como sua fiscalização por eventual agência reguladora, ou até mesmo disciplinar a autorização de transferência, pelo Estado, da prestação desses serviços a terceiros.

Outrossim, havia também um ajuste administrativo, adjeto ao convênio de cooperação, então denominado contrato de programa. Este, por sua vez, era o instrumento que estabelecia e regulava as obrigações que um ente da federação constituía para com a companhia estadual de saneamento básico, nos termos do artigo 13 da Lei nº 11.107/2005.

Esse arranjo institucional fora o principal instrumento de promoção da política pública no país até o advento da nova lei setorial, cujas razões públicas baseavam-se na incapacidade dos municípios de realizar, isoladamente, as melhorias necessárias na área de saneamento básico.

Desse modo, os contratos de programa fixavam a forma de prestação e exploração dos serviços públicos delegados à empresa estatal, que passava então agir em nome do titular dos serviços. Esse conceito jurídico — nota-se —nasceu com o Planasa e sobreviveu aos dias correntes, até o novo Marco Legal do Saneamento Básico proibi-lo no artigo 10, caput, da Lei nº 11.445/2007.

Na prática, até então vigente, os municípios constituíam gestão associada com o estado por meio de convênios de cooperação e delegavam, discricionariamente, a prestação dos serviços à respectiva companhia estadual por meio de contratos de programa.

A partir da nova lei, a situação jurídica da delegação dos serviços às companhias estaduais de saneamento básico passou a se submeter ao mesmo regime jurídico das concessões públicas à iniciativa privada [5], cuja delegação depende de licitação prévia.

Feitas essas digressões afinal, esclarece-se que o contrato de concessão é um instrumento muito específico, pelo qual o titular do serviço público delega, ao adjudicado em certame público, negocialmente a prestação das atividades economicamente restritas por efeito da publicatio. Sua previsão normativa está, precipuamente, no artigo 175, caput, da Constituição.

Por último, cabe também mencionar a existência dos contratos de interdependência, que são os instrumentos jurídicos empregados em áreas onde mais de um prestador atue, e cujas atividades sejam interdependentes.

Na prestação regionalizada dos serviços públicos de abastecimento de água da região metropolitana do Rio de Janeiro, há um exemplo evidente, cujo mercado a montante (captação, adução e tratamento) é explorado pela Cedae, enquanto as fases do serviço à jusante (reserva e distribuição) são prestadas pelas concessionárias públicas adjudicadas nos leilões de 2021. A relação entre ambas as pessoas jurídicas, nesse sentido, é regulada por um contrato de interdependência.

Esse mesmo instrumento, ademais, estipula uma única entidade encarregada de regular e fiscalizar os serviços em toda a área de prestação — no caso, a Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro —, nos termos do artigo 12, da Lei nº 11.445/2007.

 


[1] cf. ESTEVAM, Douglas. A titularidade das funções públicas de interesse comum. ConJur, publicado em 25 mar. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-25/douglas-estevam-titularidade-funcoes-interesse-comum. Acesso em 29 jun. 2022.

[2] v. RIBEIRO, Wladimir António. O contrato de programa in GRANZIERA, Maria Luiza Machado; OLIVEIRA, Carlos Roberto de (Org.). O Novo Marco do Saneamento no Brasil. São Paulo: Editora Foco, 2021.

[3] BRASIL. Emenda Constitucional nº 19, de 1998 (Exposição de Motivos). Modifica o regime e dispõe sobre princípio e normas da Administração Pública, Servidores e Agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1998/emendaconstitucional-19-4-junho-1998-372816-exposicaodemotivos-148914-pl.html. Acesso em 13 jun. 2022.

[4] O instituto jurídico do convênio de cooperação é regulado, naquilo que couber, pela Lei dos Consórcios Públicos, por força do art. 1.º, §4.º, da Lei nº 11.107/2005. Além disso, o art. 116, da Lei n.º 8.666/1993, também regulou a formalização do ajuste, naquilo que couber (mais lacônico foi o art. 184, da Lei n.º 14.133/2021 — nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

[5] v. ESTEVAM, Douglas. A privatização de companhias de saneamento. iNFRADebate, publicado em 7 mar. 2022. Disponível em: https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-a-privatizacao-de-companhias-de-saneamento/. Acesso em 29 jun. 2022.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), membro da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Gás Encanado (OAB-RJ), assessor da Diretoria de Planejamento e Projetos do Instituto Rio Metrópole (IRM), membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e membro da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro (Ujucarj).

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