Incidência monofásica do ICMS nas operações com combustíveis
6 de julho de 2022, 12h04
As duas primeiras décadas do século passado foram caracterizadas por um período de intensa movimentação na cultura brasileira, com muitas produções desde o seu início até a Semana de Arte Moderna, em 1922, que representou um marco na renovação da linguagem artística, qual seja, a transição para a arte denominada modernismo.
O motivo da digressão cultural, neste artigo jurídico, lembrando o período do pré-modernismo, que marcou a transição do simbolismo para o modernismo nas duas primeiras décadas do século passado, foi utilizar a licença poética para atenuar a árida tarefa de analisar o objeto cultural (direito posto) pertinente ao ICMS, revelando-se, assim, polêmicas relacionadas com a pretensa modernização na tributação dos combustíveis, em face da tentativa de transição do regime de substituição tributária para a incidência monofásica, nas duas primeiras décadas deste século.
O artigo 155 da Constituição de 1988, desde a EC 33/2001, atribuiu à lei complementar (LC) a competência para definir os combustíveis e os lubrificantes sobre os quais o ICMS incidirá uma única vez.
Dessa forma, a previsão da incidência concentrada representou, no início deste século, uma expectativa de simplificação e, por conseguinte, de modernização, na complexa tributação do ICMS nas operações com combustíveis, imposto que representava, em novembro de 2021, 25,9% do valor da gasolina vendida ao consumidor final [1].
Todavia, apenas recentemente, um pouco mais de duas décadas após a previsão constitucional e cem anos após a Semana da Arte Moderna, a LC 192/2022 definiu, na minha opinião, com várias inconstitucionalidades, os combustíveis sobre os quais o ICMS poderá ter sua incidência concentrada: gasolina, diesel, gás, etanol anidro combustível (EAC) e biodiesel — B100 [2].
Ressalte-se que a LC 192/2022 foi aprovada, mas os debates sobre um assunto tão polêmico duraram menos de uma semana [3], na Câmara dos Deputados e no Senado, além de ter sido sancionada pelo presidente da República e publicada no Diário Oficial, em 11/3/2022.
A referida LC estabeleceu que os estados e o DF definirão, sem fixar prazo, as alíquotas da incidência monofásica apenas na forma específica (ad rem), que dificilmente acompanha a variação do preço dos combustíveis — contrariando a previsão constitucional, que também admite que os entes estaduais escolham a alíquota ad valorem.
Importa destacar que enquanto os estados-membros não estabelecerem essa alíquota — um dos componentes do critério quantitativo da regra-matriz de incidência — RMIT —, inviabiliza-se o início da incidência monofásica para os combustíveis identificados na referida LC [4].
Nesse contexto, além da finalidade de diminuir o preço do óleo diesel, possivelmente com o intuito de apressar a implantação do sistema monofásico na operação com o mencionado combustível, por parte dos entes federativos estaduais, o artigo 7º da LC 192/2022 prescreve um benefício de redução da base de cálculo do imposto, com questionável constitucionalidade. O referido artigo prevê que, enquanto não for disciplinada a incidência monofásica do ICMS, a base de cálculo, para fins de substituição tributária em relação às operações com diesel, será, até 31/12/2022, em cada UF, a média móvel dos preços médios praticados ao consumidor final nos últimos 60 meses anteriores à sua fixação.
A estratégia deu certo: rapidamente, os estados e o DF, por unanimidade, aprovaram o Convênio ICMS 16, publicado em 25/3/2022. Estabeleceram, porém, a alíquota ad rem com base no preço mais alto, praticado no Acre (cerca de um real, conforme seu Anexo I), bem como a sua cláusula sétima estabeleceu a previsão dos seus efeitos a partir de 1º/7/2022, data do efetivo disciplinamento da incidência monofásica. Dito de outra maneira, a definição da alíquota única, ad rem, sobre operações com óleo diesel, não vigorou a partir da publicação do mencionado convênio.
Dessa forma, como o critério quantitativo da RMIT da incidência monofásica sobre as operações com diesel está previsto para iniciar a partir de 1º/7/2022, desde 11/3/2022, com a vigência da LC 192/2022, deve prevalecer seu artigo 7º, ainda que transitório, que prevê, na fixação da base de cálculo do imposto, a consideração dos preços do diesel dos últimos 60 meses, para fins de determinação do valor do ICMS por meio da substituição tributária, enquanto não for efetivamente implantado o regime monofásico.
Com a publicação da LC 194, em 23/6/2022, foi suprimida a condição temporal (enquanto não disciplinada a incidência monofásica) para a aplicação da redução da base de cálculo do ICMS prevista no artigo 7º da LC 192/2022. Logo, no cálculo do ICMS por meio da substituição tributária, relativamente às operações com óleo diesel, até 31/12/2022, a base de cálculo deve ser mensura considerando-se os preços médios do diesel dos últimos cinco anos.
Entretanto, como os estados vêm utilização, desde novembro de 2021, o mesmo Preço Médio Ponderado ao Consumidor Final (PMPF) do diesel como referência para o cálculo do ICMS ST, este valor presumido, relativo à futura venda ao consumidor final, está inferior ao imposto próprio, calculado sobre o valor real da operação da substituta tributária, no início da cadeia econômica. Por exemplo, é R$ 4,7060 o valor do PMPF para calcular o ICMS ST, na saída de um litro de diesel A S10 de uma refinaria de petróleo, localizada em PE. Considerando o acréscimo de 10% da mistura do biodiesel e o fator de conversão de volume, em face da variação da temperatura (0,9935), a base de cálculo para fins de substituição tributária é (4,7060/0,90/0,9935 = R$ 5,2631). Mas os sucessivos aumentos de preço, desde novembro de 2021, independentemente do ICMS, fizeram com que o litro de óleo A S-10 fosse comercializado pela refinaria pernambucana, em junho de 2021, por cerca de R$ 5,70. Dessa forma, nessa operação o ICMS ST é zero porque sua base de cálculo é negativa (5,26 – 5,70).
Portanto, atualmente, apenas o ICMS próprio está sendo relevante para o cálculo do imposto estadual sobre o diesel A S-10. Por conseguinte, a redução da base para fins de cálculo do ICMS ST, prevista no artigo 7º da LC 192/2022, perdeu a relevância.
A LC 194/2022 também vedou a fixação de alíquotas nas operações com combustíveis em patamar superior ao das operações em geral. De tal modo, o critério quantitativo, com vista à cobrança do ICMS deve considerar a alíquota geral de 17% ou 18%, dependendo do Estado da Federação. Como consequência, os estados devem aprovar leis ordinárias [5], com aplicabilidade retroativa à 23/6/2022, para adequar suas legislações à referida LC.
A LC 194/2022 também incluiu o artigo 32-A na LC 87/1996, impondo que os estados e o DF, ao deliberarem sobre a alíquota ad rem, aplicada na incidência concentrada das operações com combustíveis, considerem como parâmetro a alíquota máxima para mercadorias, em geral, de 17% ou 18%, dependendo da unidade federativa, utilizada no cálculo do ICMS ST, em face da essencialidade dos combustíveis.
Por conseguinte, nas operações com diesel, o critério quantitativo do ICMS monofásico (valor do imposto por litro de óleo diesel comercializado a consumidor final), se for deliberado pelos estados, em 2022, deve considerar: 1) a redução da base de cálculo do ICMS ST até 31/12/2022 e 2) a alíquota máxima de 17% ou 18%, geralmente aplicada no cálculo do ICMS das mercadorias, em geral.
Ademais, o Convênio ICMS 16/2022 também prescreveu a possibilidade de os estados utilizarem um mecanismo de fator de equalização de carga tributária (Fect), que possibilita a diminuição da alíquota ad rem. Na prática, permite-se a concessão de um benefício fiscal que possibilita a diferenciação do valor do imposto do litro de óleo diesel em face do estado em que será consumido.
Prescreveu também que, nas operações interestaduais com diesel, subsequentes à incidência concentrada, em que a incidência deveria ser única, há substituição tributária com obrigatoriedade, dependendo dos valores do Fect entre os estados envolvidos, com a possibilidade de ser exigido um ICMS complementar por parte das distribuidoras de combustíveis.
Ampliando a polêmica sobre o assunto, o presidente da República propôs a ADI 7.164/DF, questionando parte do Convênio ICMS 16/2022, tendo o ministro André Mendonça deferido a medida cautelar pleiteada, ad referendum do Plenário do STF, para suspender a eficácia das cláusulas quarta e quinta, assim como do Anexo II do mencionado convênio.
A decisão monocrática, na referida ADI, ao invés de diminuir, elevaria a carga tributária a partir de 1º/7/2022. O valor do ICMS por litro de óleo diesel aumentaria de R$ 0,71 (média nacional) para cerca de R$ 1,00, igualando por cima (valor do Acre) o imposto em todos os estados do Brasil em face da exclusão do benefício da redução prevista na cláusula quarta, combinada com o Anexo II, ambos do mencionado Convênio ICMS 16/2022.
Para contornar o imbróglio da ADI 7.164/DF, sua petição inicial foi aditada, aumentando a pretensão, dentre muitos pedidos, para suspender a eficácia da íntegra do Convênio ICMS 16/2022 ou, ao menos, do seu Anexo I, que efetivamente causaria aumento do ICMS a partir de 1º/7/2022.
Além de manter a decisão anterior, o ministro André Mendonça, monocraticamente, deferiu o pedido cautelar da petição aditada, em sua totalidade, inclusive para aplicar, por analogia, a regra do artigo 7º da LC 192/2022 aos demais produtos mencionados no artigo 2º do mesmo diploma, com eficácia a partir de 1º de julho de 2022.
Como consequência, enquanto a referida decisão não for revista ou os Entes estaduais não instituírem o critério quantitativo do ICMS, que possibilite a implantação do regime monofásico nas operações com óleo diesel, gasolina e gás, em tais operações, o imposto continuará sendo exigido por meio da substituição tributária para frente. Do mesmo modo, a base de cálculo presumida, utilizada para determinação do valor antecipado do tributo, será, em cada estado e no DF, desde 11/3/2022, data da publicação da LC 192/2022, para as operações com óleo diesel, e, a partir de 1º/7/2022, para operações com gasolina e gás, em ambas as hipóteses até 31/12/2022, a média móvel dos preços médios praticados ao consumidor final nos 60 meses anteriores à sua fixação.
Portanto, considerando a LC 192 e a LC 194, ambas de 2022, e a decisão monocrática na ADI 7.164/DF, nas operações com gasolina, diesel e gás, enquanto o ICMS for exigido por meio da substituição tributária, o cálculo do imposto antecipado deverá considerar a alíquota máxima de 17 % ou 18% e a redução da base de cálculo, imposta pelo artigo 7º da LC 192/2022.
Importa relembrar que o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 593.849/MG, com repercussão geral reconhecida, consignou o entendimento sobre a possibilidade de restituição no regime de substituição tributária progressiva do ICMS, quando a base de cálculo presumida for maior do que a efetiva. A maioria dos ministros do STF entenderam que a base de cálculo real há de prevalecer com o fito de impedir o enriquecimento ilícito do estado, mas também consignaram, na respectiva decisão, obter dictum, que os estados poderiam exigir o ICMS complementar, quando a base real for maior do que a presumida.
In casu, em face da utilização de uma base de cálculo presumida, com parâmetro no preço dos combustíveis relativo aos últimos cinco anos e, por conseguinte, muito inferior à real, que se exterioriza na venda atual do combustível para o consumidor final, é provável que os estados calculem o ICMS, considerando a redução da base de cálculo, para efeito da exigência antecipada na substituição tributária, mas, posteriormente, cobrem o ICMS complementar do contribuinte que realizar a venda para o consumidor final. Portanto, a retórica da redução do ICMS, em face do cálculo baseado no preço dos combustíveis relativo aos últimos 60 meses, só servirá para o período eleitoral.
De qualquer sorte, quando os entes estaduais definirem o valor do ICMS por unidade de medida de gasolina, diesel e gás (alíquota ad rem), finalmente será implantado o regime monofásico para esses combustíveis, devendo ser considerada, se for implementada a incidência concentrada no ano eleitoral de 2022, a redução da base de cálculo do ICMS ST, além da alíquota máxima de 18%, que também deve ser utilizada nos anos subsequentes.
Diferentemente da incidência plurifásica da substituição tributária, prevista na LC 87/1996, com a incidência concentrada na saída do combustível da refinaria de petróleo ou do importador, prevista na LC 192/2022, haverá desoneração nas outras etapas da cadeia econômica da operação com combustíveis, motivo pelo qual os estados não poderão exigir um ICMS complementar no regime monofásico.
Assim sendo, como os entes estaduais perderão muita arrecadação com a limitação das alíquotas impostas pela LC 194/2022, é provável que não definam a alíquota ad rem em 2022, hipótese na qual também deverão considerar os preços dos combustíveis relativos aos últimos 60 meses.
Enfim, apesar da expectativa de simplificação e, por conseguinte, modernização do direito positivo inerente à tributação do ICMS nas operações com combustíveis, está sendo conturbada e dificultada, principalmente pela crise federativa provocada pela falta de harmonia entre a União e os entes estaduais, a tentativa de transição dos regimes de substituição para a incidência monofásica.
Referências
ALCOFORADO. Antônio Machado Guedes. Regra-matriz de responsabilidade e regra-matriz de substituição tributária no ICMS. Tese apresentada para obtenção do título de Doutor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, 2017.
CARNEIRO, Daniel Dix, Maurício Pereira Faro e Leonardo José Muniz de Almeida. Particularidades tributárias relacionadas com o biodiesel destinado às refinarias de petróleo e às distribuidoras de combustíveis. Aspectos Tributários Relacionados à indústria do Petróleo e Gás. Daniel Dix Carneiro, Marcelo Magalhães Peixoto (coordenadores). São Paulo: MP Editora, 2011.
CARRAZZA, Roque Antônio. ICMS. São Paulo: Malheiros, 2015.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2015.
[1] Percentual do valor do ICMS no preço de um litro de gasolina C (mistura da gasolina A com o etanol anidro combustível – EAC), em novembro de 2021, conforme dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, referente ao preço da gasolina vendida nos postos revendedores. Disponível em: https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/composicao-e-estruturas-de-formacao-dos-precos. Acesso em: 20 jun. 2022.
[2] Portanto, outras espécies de combustíveis, a exemplo de querosene de avião – QAV-1 e o etanol hidratado combustível, além dos lubrificantes, continuarão sendo tributadas pelo regime atual, principalmente por meio da sistemática de substituição tributária para frente.
[3] A LC 192/2022 adveio do Projeto de Lei Complementar PLP 11/2020, que apenas previa "a apuração do ICMS-substituição relativo ao diesel, etanol hidratado e à gasolina a partir de valores fixos por unidade de medida, definidos na lei estadual". Portanto, a incidência monofásica, aprovada em menos de uma semana, não vinha sendo debatida no projeto original.
[4] Sabe-se que a RMIT é uma ferramenta metodológica que facilita o exame da incidência, sendo que um dos requisitos para a sua ocorrência é a exteriorização, em linguagem competente, de todos os seus critérios. Estes precisam estar previstos abstratamente na lei ou, na hipótese do regime monofásico dos combustíveis, excepcionalmente em convênio do ICMS. Ausente um dos seus critérios, seja na hipótese (critérios material, espacial e temporal), seja no consequente [critérios pessoal e quantitativo (base de cálculo e alíquota)], inviável será a incidência.
[5] Alguns Estados, a exemplo de Goiás e São Paulo, mesmo sem aprovação de lei ordinária, por meio de publicações de informativos nos seus Diários Oficiais, estão adequando suas alíquotas aplicáveis nas operações com combustíveis nos patamares máximos de 17% ou 18%, seguindo a previsão da LC 87/1996 e do CTN, alterados pela LC 194/2022.es
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