Opinião

Custos do ativismo judicial à separação dos Poderes

Autor

  • Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade

    é advogada graduada pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Empresarial pela USP ex-conselheira da OAB-SP durante 12 anos membro do Instituto dos Advogados de SP da Academia Paulista de Letras Jurídicas e da Academia Paulista Direito do Trabalho ex-vice presidente Aliança Francesa de SP conselheira da AATSP palestrante e debatedora sobre temas jurídicos.

3 de julho de 2022, 9h13

A cada ano vem crescendo e se consolidando o fenômeno do ativismo judicial no Brasil, que muitos atribuem ao enfraquecimento e à falta de representatividade do Executivo e do Legislativo, que não conseguem mais responder às demandas por justiça social da população brasileira. O tema, contudo, é bastante controvertido no país, estando presente em todas as instâncias do Judiciário e no Supremo Tribunal Federal, onde ganhou projeção, movida pelo incremento das ações diretas de constitucionalidade, ações de arguição de descumprimento de preceito fundamental e efeito vinculante das decisões, abrindo novas margens de constitucionalidade, trazidas pela Constituição de 1988.

O ativismo judicial pode ser conceituado como o "exercício jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos )" [1].

Nesse diapasão, o ativismo judicial acaba produzindo resultados considerados afrontosos à separação dos Poderes, a despeito de no Brasil a Alta Corte ter o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos.

Quando as decisões dos magistrados, previstas no ordenamento jurídico, encontram um terreno fértil para fazer prosperar novas técnicas interpretativas, entramos no campo do ativismo judicial.

O juiz deve ser imparcial, embora não ignore suas convicções políticas, econômicas e sociais, sendo que o ativismo judicial possibilita ampliar o horizonte jurisdicional, como se o debate do processo político democrático fosse abarcado pela função jurisdicional, expondo as dificuldades do Executivo e Legislativo em darem cumprimento às premissas de uma sociedade mais justa, na qual os direitos fundamentais são garantidos.

A propósito, já afirmava o grande Guimarães Rosa, em "Grande Sertão: Veredas": "Eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! (…) Este mundo é muito misturado …".

Para o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Barroso, o ativismo judicial é positivo por ter um "modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo deslocamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva" [2]. Para Barroso, o ativismo judicial é primo da judicialização, cujas causas estão na redemocratização do país, na constitucionalização abrangente e no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.

Já o ativismo se manifestaria pela aplicação direta da CF a situações não contempladas no texto constitucional, declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados pelo legislador e imposição de condutas ou abstenções do Poder Público.

O Brasil, onde predomina o sistema do civil law (primazia da lei), pela Emenda constitucional 45, de reforma do Judiciário, abriu caminho para que o Supremo Tribunal Federal criasse súmulas vinculantes, importadas do sistema common law. Um exemplo disso foi o artigo 103 incluído na Constituição Federal, pela qual o Supremo poderá, de ofício ou por aprovação, por decisão de dois terços dos seus membros, aprovar súmula vinculante aos órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, atingindo, portanto, o Poder Executivo.

As súmulas vinculantes são consideradas uma mola propulsora do ativismo judicial contra a omissão do legislador, deixando de assegurar uma norma regulamentadora constitucional.

Assim sendo, cabe ao Judiciário ingressar com medida para suprir essas omissões, que seriam violadoras de direito.

O texto constitucional está eivado de sinalizações em que "a lei definirá" determinado ponto, que cabe ao poder Legislativo levar a termo, sendo que nos casos de descumprimento, o STF é acionado.

Um exemplo disso é a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos civis quanto às atividades essenciais. O ministro relator, Gilmar Mendes, determinou a aplicação da Lei 7.783/89, que regulamenta a greve da iniciativa privada até o cumprimento de nova lei regulamentadora. Isso ensejou controvérsia jurídica quanto ao regramento do setor privado e do setor público frente aos descontos dos dias paralisados.

Outra decisão importante do STF foi exarada no ano passado, quando analisou as Ações Diretas de Constitucionalidade 58 e 59 e Ações Diretas de Inconstitucionalidades 5.867 e 6.021, firmando tese sobre correção de débitos trabalhistas, ao declarar a inconstitucionalidade da Taxa Referencial (TR) como índice de atualização dos débitos e estabelecendo a Selic como índice de correção. Os processos em tramitação, que estavam sobrestados na fase de conhecimento, puderam aplicar, de forma retroativa, a taxa Selic.

Ainda há muitos temas de repercussão geral envolvendo as relações de trabalho pendentes de análise de mérito do Supremo. Recentemente, o Supremo deu provimento para garantir que os acordos e convenções coletivas de trabalho tivessem prevalência sobre o legislado, nos casos em que houvesse supressão de direitos não contemplados pela Constituição Federal, mas sem ferir um patamar civilizatório mínimo. Tema 1.046 da repercussão geral que deve ser observado por todas as instâncias do Judiciário, uniformizando a interpretação da matéria que atinge 60 mil processos, que tiveram sua tramitação interrompida até essa decisão.

A intensificação do ativismo judicial surge também quando os ministros do STF decidem monocraticamente medidas cautelares em ações direta de inconstitucionalidade, que deveriam ser submetidas a referendo, mas que pode levar anos para chegar à avaliação do plenário da Corte e a um julgamento definitivo.

Essa judicialização extensa tem gerado uma reação negativa por ser uma prática que entra em rota de colisão com o processo constitucional, sendo incompatível com as regras constitucionais.

O ativismo judicial pode colocar em risco o equilibro da separação dos Poderes e a democracia, embora esteja imbuído das melhores intenções como assegurar direitos fundamentais, reduzir desigualdades e impedir os abusos do Estado frente aos cidadãos.

Nesse sentido, uma das práticas mais comuns de ativismo judicial são as concessões de medicamento pela Justiça para estratos mais carentes da população, negados pelo SUS e que alcançam altos custos, que a maioria dos brasileiros não têm condições de acessar, principalmente quando os juízes acompanham os ricos de vida que correm os demandantes. Contudo, ao conceder o medicamento de alto custo, o Judiciário também tangencia as questões do planejamento econômico do Executivo, podendo gerar danos em outra ponta.

As principais críticas ao ativismo judicial giram em torno do fato de ignorar as regras do direito posto, conceber conceitos jurídicos nem sempre precisos, possibilitar deficiência do controle da constitucionalidade e criar interpretações despropositadas de uma norma.

Certamente, esse não é um fenômeno localizado, mas que vem ocorrendo em inúmeras democracias em todo o mundo; mas que no Brasil assumiu grandes proporções e pode acabar desequilibrando a independência dos Poderes e esgarçando o tecido constitucional.


[1] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.
[2] BARROSO. Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática . Disponível em https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/5498.

Autores

  • é advogada militante, especialista em Direito Empresarial pela USP, membro do IASP, Academia Paulista de Letras Jurídicas, Academia Paulista de Direito do Trabalho e conselheira da AAT-SP, integra o Conjur (Conselho Superior de Altos Estudos Jurídicos) e o Cort (Conselho de Relações do Trabalho) da Fiesp e foi conselheira OAB-SP.

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