Segunda Leitura

Como garantir a igualdade nas demandas repetitivas sobre direitos sociais?

Autor

  • Vânila Cardoso André de Moraes

    é juíza federal doutora em Sociologia e Direito mestre em Justiça Administrativa coordenadora do Grupo Operacional do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e do Laboratório de Inovação da Justiça Federal de Minas Gerais (iluMinas).

30 de janeiro de 2022, 8h00

Cabe aos direitos fundamentais sociais garantir as condições mínimas para o desenvolvimento das aptidões pessoais que permitam uma vida digna e o consequente exercício dos direitos civis e políticos com liberdade, estruturando, assim, uma sociedade justa. Com efeito, a noção de justiça está estreitamente relacionada à de igualdade, pois se entende a primeira como a possibilidade de todos terem acesso a bens e direitos considerados essenciais à sociedade.

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Vânila Cardoso André de Moraes
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Acrescente-se a isso, o fato de que os recursos são escassos e há necessidade de distribuição dos bens de forma a garantir patamares mínimos que assegurem a dignidade humana entre desiguais, consequentemente "a igualdade poderá ser um critério de razoabilidade na aplicação da justiça" [1].

A América Latina, conforme o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, mantém-se como a região com maior desigualdade de renda do planeta, e o Brasil aparece como o nono país mais desigual do mundo [2].

Além de alterações na legislação e de políticas públicas que possam vir a modificar esse quadro, constata-se que o sistema de reforço das desigualdades pode ser interrompido pelo Direito, mediante a ativação de mecanismos de correção. Sem embargos, produzem-se desigualdades racionais legitimadas pela ordem jurídica [3].

É tarefa das instituições construir e realizar a igualdade [4]. No âmbito jurídico, pode-se falar em igualdade em construção [5] a partir da atuação da administração pública e do Poder Judiciário com a inclusão de todos os integrantes da sociedade como sujeitos de direitos.

As demandas sobre direitos sociais, que têm por fundamento uma ação ou omissão administrativa de alcance geral, são bons exemplos do potencial de multiplicação de demandas repetitivas [6] , fenômeno em que tem sido posta em cheque a igualdade formal e material e que tem acarretado o ajuizamento de milhares de ações relacionadas à saúde, educação, questões previdenciárias etc. Muitas dessas matérias são, contudo, próprias de políticas públicas e têm sido enfrentadas de forma individual pelo Poder Judiciário, gerando uma espiral de desigualdade no trato de questões de interesse público, reforçando assim, no sistema de justiça, a desigualdade estrutural da sociedade brasileira.

O que se pode afirmar, neste primeiro momento, é que sem direitos sociais para todos, um número crescente de indivíduos irá considerar seus direitos políticos de pouca utilidade ou indignos de atenção [7]

Nesse contexto, um questionamento que precisa ser feito é: como o Judiciário e a administração pública podem atuar para não fragmentar a igualdade de acesso aos bens públicos?

Como premissa básica, é preciso considerar a interdependência entre a seara administrativa e a judicial, a partir de procedimentos administrativos e judiciais que busquem a universalização dos bens públicos. Precisamos ultrapassar a racionalidade individualista, nascedouro das demandas repetitivas, enfrentando as distorções dos processos administrativo e judicial que acarretam a exclusão das minorias.

Quanto ao procedimento administrativo, destaca-se a interdependência entre a seara administrativa e a judicial a partir do dever constitucional de transformação da igualdade jurídica em igualdade social. O Judiciário deve analisar e considerar o devido processo legal administrativo, ou seja, há impossibilidade de desconsiderar-se toda a elaboração lógica do requerimento, do procedimento e do processo administrativo no momento da judicialização, sob pena de adentrar-se numa espiral de repetição de etapas, deixando de observar as atribuições dos poderes que compõem a complexa estrutura estatal. Nesse aspecto, torna-se indispensável que o devido processo legal administrativo prévio não se apresente como mera etapa burocrática, mas que seja realizado dentro de uma administração estruturada e por autoridades independentes, significa reafirmar: que possam transformar a igualdade jurídica em igualdade social.

Quanto ao processo judicial, defende-se, como premissa para assegurar a igualdade formal e a universalização dos bens públicos, a análise das preliminares administrativas da lide e da possibilidade do controle da ação ou omissão de efeitos gerais da administração pública ser realizada por qualquer juiz ou tribunal no caso concreto, difuso, ou de forma concentrada, resolvendo a questão abstratamente e com efeitos erga omnes.

Não há como o Judiciário abarcar toda a realidade social, ou adentrar no campo da política e das escolhas realizadas pela sociedade via participação eleitoral legítima — à exceção da função contramajoritária da justiça no que toca à proteção da dignidade humana —, mas apontar caminhos procedimentais e processuais no espaço de aplicação do direito – administração pública e Poder Judiciário — para a construção da igualdade.

Não se pode pensar com exclusividade na satisfação individual de cada direito fundamental social tão somente pela via judicial; assim, é imperioso buscar mecanismos processuais que sejam manejados a partir da perspectiva da igualdade e que transbordem a seara judicial.

Os direitos sociais estão intimamente ligados aos princípios da igualdade e da eficiência da administração pública, especialmente no que tange à elaboração das políticas públicas que visem garantir as condições mínimas de existência [8]. Trata-se de um objeto de estudo de profunda complexidade, que necessita urgentemente de um olhar diferenciado dos juristas, considerando o quadro de explosão de litígios relacionados aos direitos prestacionais que vivemos no Brasil e que tem como pano de fundo, uma das sociedades mais desiguais do planeta.

 


[1] FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. A construção da igualdade e o sistema de justiça no Brasil: alguns caminhos e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.17

[2] O Brasil é o nono país com mais desigualdade social no mundo. Os dados são da Síntese de Indicadores Sociais, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base nos parâmetros do Banco Mundial (Bird)

[3] GIORGI, Raffale de. Modelos jurídicos de la igualdad y de la equidad. In: MONTEROS, Javier Espinoza de los; ORDÓÑES, Jorge (Coord.). Los Derechos sociales en el Estado constitucional. Trad. do italiano de Javier Espinoza e Mon- SÉRIE MONOGRAFIAS DO CEJ, V. 24 240 ters S. e Juan Carlos Barrios Lira. Valência: Tirant ló Blanch, 2013.

[4] (FRISCHEISEN, 2007, p. 15) FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. A construção da igualdade e o sistema de justiça no Brasil: alguns caminhos e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.15.

[5] A expressão "construção da igualdade" é cunhada por Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (2007, p. 17)

[6] (MORAES, 2012, p. 45) MORAES, Vânila Cardoso André de. Demandas repetitivas decorrentes de ações ou omissões da administração pública: hipóteses de soluções e a necessidade de um direito processual público fundamentado na Constituição. Brasília: CJF, 2012. Disponível no site: file:///C:/Users/Ju150/Downloads/seriemono14vanilamoraes%20versaoatualizadacompleta.pdf

[7] BAUMAN, Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 22.

[8] TORRES, Cláudia Vechi; SILVA, Maria dos Remédios Fontes. Estudo da concretização da norma jurídica de direito social no estado brasileiro, sob a ótica de Müller e Alexy. Revista CEJ, Brasília, ano 26, nº 64, p. 13-19, set./ dez. 2014, p. 19.

Autores

  • é juíza federal em Belo Horizonte, doutora em Sociologia e Direito, mestre em Justiça Administrativa, coordenadora do Grupo Operacional do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e do Laboratório de Inovação -iluMinas, e professora da PUC-MG.

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