Opinião

Introdução à originalidade na história das ideias jurídicas no Brasil

Autor

  • Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen

    é advogado e consultor previdenciário bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais pós-graduado em Direito Previdenciário e Prática Previdenciária pela Faculdade Legale membro do grupo de estudos "Teoria Crítica e Constitucionalismo" da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-MG — Subseção Contagem.

30 de janeiro de 2022, 6h34

Desde o período colonial, o Direito brasileiro sempre foi importado, ou seja, as bases da legislação aqui desenvolvida, bem como as teorias integrantes da ciência jurídica aqui ensinada, não nasceram em terrae brasilis. Tal constatação não é nenhuma novidade. Sendo um país de sistema jurídico romano-germânico, o Brasil por séculos foi regido pelas Ordenações Portuguesas: Afonsinas, Manuelinas e Filipinas sucessivamente, todas elas influenciadas pelo Corpus Iuris Civilis e pelo Direito Romano em geral.

A criação dos cursos jurídicos no Brasil só se daria em 1827, sendo um instalado em São Paulo e o outro em Olinda. Nos cinco anos anteriores, o Brasil havia se tornado um Império independente e promulgado sua primeira Constituição. Naquela época, começavam a surgir juristas de renome, para além dos egressos de Coimbra, responsáveis por comentar a legislação imperial e os novos códigos.

Não obstante, os alicerces romanos e portugueses do nascente Direito brasileiro seriam abalados ao longo de todo século 19 pela chegada de novas influências oriundas da Europa que alimentariam os estudos e as discussões entre os juristas nacionais. No nordeste, o movimento intelectual conhecido como "Escola do Recife", capitaneado por Tobias Barreto, bebeu da fonte do Direito alemão, que se encontrava em plena efervescência através da propagação das ideias de autores como Von Lhering, Savigny, Lassale e Jellinek. Clóvis Beviláqua, por sua vez, foi influenciado pelo Código Civil Alemão, o BGB (Bürgerliches Gesetzbuch), no desenvolvimento do Código Civil de 1916, norma de sua autoria.

A relevância do Direito Canônico também não pode ser olvidada. Segundo o filósofo Cruz Costa, pioneiro no estudo da "história das ideias" no Brasil, "dizia Sílvio Romero, nas Explicações Indispensáveis que precedem um dos livros de seu amigo Tobias Barreto, que até 1868 nenhuma oposição se apresentara à principal corrente de pensamento que recebemos da herança portuguêsa [sic]: o catolicismo" (Cruz Costa, 1954, p. 307) [1].

Por outro lado, o positivismo sociológico de Auguste Comte, oriundo da França, fazia coro entre a jovem intelectualidade e os estudiosos da ciência jurídica no Brasil. O germanismo e a francofilia ainda eram atravessados pela influência norte-americana, que se dava através de documentos como a Declaração de Independência (1776) e a Constituição dos Estados Unidos da América (1787). Já no início do século 20, o gênio Pontes de Miranda foi fortemente influenciado pela teoria da integração desenvolvida pelo autor alemão Rudolf Smend [2].

Todos os exemplos citados, bem como o perfunctório esboço histórico acima desenhado, possuem a função de servir de prefácio para o seguinte questionamento: em meio a influências romanas, portuguesas, alemãs, francesas, estadunidenses e até mesmo religiosas, haveria espaço para a originalidade na história das ideias jurídicas no Brasil?

Acreditamos que sim. Afirmar que uma teoria ou ideia é originalmente brasileira não significa dizer que o seu criador não sofreu influências externas, mas, sim, que aquela teoria ou ideia é minimamente autêntica ou suficientemente inovadora. Superado esse ponto, podemos passar aos exemplos de juristas brasileiros e suas ideias de repercussão no mundo jurídico.

O primeiro exemplo é a famosa teoria tridimensional do Direito, desenvolvida por Miguel Reale (1910-2006) que "foi concebida como uma proposta de construção do pensamento jurídico e uma das principais inovações no estudo e compreensão deste fenômeno. Conforme proposta pelo professor Reale, a teoria correlaciona três fatores interdependentes que fazem do Direito uma estrutura social axiológico-normativa. Esses três elementos são: fato, valor e norma. Importa, desde logo, afirmar que esses três elementos devem estar sempre referidos ao plano cultural da sociedade onde se apresentam. Na ótica tridimensional fato, valor e norma são dimensões essenciais do Direito, o qual é, desse modo, insuscetível de ser partido em fatias, sob pena de comprometer-se a natureza especificamente jurídica da pesquisa. É buscada, na Teoria Tridimensional do Direito […] a unidade do fenômeno jurídico, no plano histórico-cultural, sem o emprego de teorias unilaterais ou reducionistas, que separam os elementos do fenômeno jurídico (fato, valor e norma)" (Gonzaga; Roque, 2017) [3]. Ainda estudada nos cursos de Direito por todo país, a teoria tridimensional continua fornecendo um interessante caminho para a intepretação do fenômeno jurídico.

Goffredo Teles Júnior (1915-2009), por sua vez, desenvolveu a partir da década de 1970 a peculiar concepção quântica do Direito na qual o autor atrela a ordenação jurídica a própria ordenação universal. Ultrapassando as barreiras das Ciências Sociais aplicadas, o professor catedrático da Universidade de São Paulo pretendeu introduzir o desenvolvimento científico da Matemática, da Biologia e da Física no campo do Direito, através de um "pensamento jus-filosófico próprio e original" (Covolan; Gonzales, 2006) [4]. Sua teoria inovadora foi registrada na obra "Direito Quântico Ensaio Sobre o Fundamento da Ordem Jurídica". Nas palavras do próprio autor, este afirma que "em 1970, publiquei um artigo intitulado 'O Direito Quântico', saído na Revista Brasileira de Filosofia (número 80), a classe dos juristas ainda não se havia familiarizado com as descobertas recentes da biologia, e nem de longe suspeitava de qualquer relacionamento da molécula do DNA com a disciplina do Direito" (Teles Júnior, 1999) [5]. Maria Helena Diniz (2009, p. 48-50) afirma que o Direito Quântico é uma expressão do jusnaturalismo [6].

Ao final da década de 1990, o professor Rosemiro Pereira Leal desenvolveu a em Minas Gerais a teoria neoinstitucionalista do processo, muito influente no campo do Direito processual. A partir dessa teoria, "se verifica o processo como instituição constitucionalizada que visa implementar direitos fundamentais e construir discursivamente o provimento final a partir dos princípios institutivos do processo, por meio do princípio do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, da isonomia da participação das partes na formação do provimento e da indispensabilidade de advogado" (Ferreira; Gomes, 2017) [7]. A preocupação com essa "dialética-processual-democrática" marca esse conjunto de ideias que talvez seja o mais relevante produto da Escola Mineira de Processo.

Por fim, não poderíamos deixar de mencionar a famosa tese da constitucionalização simbólica desenvolvida por Marcelo Neves. A tese foi primeiramente defendida no concurso para professor titular de Teoria Geral do Estado na Universidade Federal de Pernambuco, em 1992, e posteriormente foi publicada como livro em 1994. O próprio autor explica na introdução da versão original de 1994 que aquele trabalho pretende "abordar o significado social e político dos textos constitucionais, exatamente na relação inversa da sua concretização jurídico-normativa. O problema não se reduz, portanto, à discussão tradicional sobre ineficácia das normas constitucionais. Por um lado, pressupõe-se a distinção entre texto e norma constitucionais; de outro lado, procura-se analisar os efeitos sociais da legislação constitucional normativamente ineficaz. Nessa perspectiva, discute-se a função simbólica de textos constitucionais carentes de concretização normativo-jurídica" (Neves, 1994) [8]. Ao longo da obra o autor desenvolve sua teoria utilizando-se de conceitos como "legislação simbólica", "legislação álibi", "eficácia" e "efetividade", conceitos esses que enfeixam a tese extremamente relevante "para a discussão teórico-constitucional brasileira" (Gomes, 2017) [9].

Todas as teorias acima, apresentadas à guisa de introdução, constituem legítimas produções do pensamento jurídico brasileiro, ainda longe de sua independência. É verdade que algum ranço do passado colonial persiste no intelecto dos operadores do Direito que julgam inferior a produção intelectual nacional. De qualquer forma, esse modo de pensar definitivamente não apaga o brilhantismo das mentes inquietas que continuarão a existir ao sul do Equador.


[1] COSTA, João Cruz. Esbôço de uma História das idéias no Brasil na primeira metade do século XX (II). Revista de História, [S.l.], v. 9, nº 20, p. 307-332, 1954. DOI: 10.11606/issn.2316-9141.v9i20p307-332. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/36425. Acesso em: 20/1/2022.

[2] BERCOVICI, Gilberto. O Estado Integral e a Simetrização das Classes Sociais em Pontes de Miranda: O Debate dos Anos 1930. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 6, nº 2, p. 272-293, jun. 2015. ISSN 2179-8966. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2015.16528. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/16528/12415. Acesso em: 18/1/2022.

[3] GONZAGA, Alvaro de Azevedo, ROQUE, Nathaly Campitelli. Tridimensional do Direito, Teoria. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1ª ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/64/edicao-1/tridimensional-do-direito,-teoria

[4] COVOLAN, F. C.; GONZALES. E. T. Q. O culturalismo jurídico de Goffredo Teles Júnior: uma leitura à luz da teoria crítica do direito. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 15., 2006, Manaus, Amazonas. Anais…..Manaus: Conpedi, 2006, p; 6174-6185. http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/everaldo_tadeu_quilici_gonçalves.pdf. Acesso em: 20/1/2022.

[5] TELES JUNIOR, Gofredo. A folha dobrada – Lembranças de um Estudante. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

[6] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 20ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

[7] FERREIRA, Leandro José; GOMES, Magno Federici. A TEORIA NEOINSTITUCIONALISTA DO PROCESSO E A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA LIMINAR PARA A PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE. Revista Argumentum, Marília, v. 18, nº 3, pp. 625-643, Set.-Dez. 2017. Disponível em: http://ojs.unimar.br/index.php/revistaargumentum/article/view/284. Acesso em: 20/1/2022.

[8] NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994.

[9] GOMES, David F.rancisco Lopes. PARA UMA CRÍTICA À TESE DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA. Revista Eletrônica Do Curso De Direito Da UFSM, v. 12, nº 2, pp. 442–471, 2017. DOI: https://doi.org/10.5902/1981369424821. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/24821. Acesso em: 20/1/2022.

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