Opinião

Reformar o Poder Judiciário não é suficiente

Autor

  • Luiz Henrique Antunes Alochio

    é doutor em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) mestre em Direito pela Universidade Candido Mendes (Ucam) conselheiro federal da Ordem dos Advogados e procurador do município de Vitória/ES.

30 de janeiro de 2022, 14h19

Recente manifestação do pré-candidato Sérgio Moro a respeito de uma nova reforma do Poder Judiciário foi prontamente rebatida por diversos setores, desde as profissões jurídicas ao campo político. A noção de uma nova reforma não encontraria, automaticamente, qualquer pecha de inconstitucionalidade. É preciso lembrar que no ano de 2004 o então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva publicou a Emenda Constitucional 45, tratando igualmente de uma reforma judiciária. Resta a análise do conteúdo e da extensão da reforma pretendida, mas sem a argumentação ad terrorem de que toda e qualquer modificação seja violação da independência do órgão judicante.

De uma coisa podemos ter certeza: uma reforma destinada unicamente ao Judiciário está fadada a ser fragorosamente incompleta, um fracasso anunciado. O que demanda reforma é um conceito maior, o de administração da Justiça, que alcança todas as profissões jurídicas no Brasil, tendo por início o ensino jurídico, pois esses campos temáticos passaram do tempo de uma reforma conjuntural.

Houve no Brasil um avanço com a criação da Secretaria Nacional da Reforma do Judiciário. A secretaria abordou temas relevantes, como o acesso à Justiça, com estudos e debates, por exemplo, a respeito das Defensorias Públicas e Procuradorias, estudos sobre mediação de conflitos e tantos outros. Em 2016, a secretaria foi extinta, fato que representou uma perda institucional [1], especialmente para os avanços democráticos nos órgãos de jurisdição, ainda tão autocentrados.

Desde então, a reforma do Judiciário e do acesso à Justiça, especialmente para os mais necessitados, tem gravitado em torno de mudanças de leis ordinárias, como o Código de Processo Civil de 2015, e algumas decisões judiciais que impactam o setor, como o reconhecimento da constitucionalidade do exame de Ordem (Recurso Extraordinário 603.583) e, mais recentemente, a extensão da autonomia dada às Defensorias (Recurso Extraordinário 1.240.999 e ADI 4636).

Uma lição foi esquecida: a reforma não poderia ser vista como um fim em si mesmo, muito menos uma obra acabada. É uma obra aberta e em andamento. Por isso é necessário pensar a criação de uma nova modelagem de secretaria no Ministério da Justiça, inclusive para o fortalecimento e avanços das profissões jurídicas como um todo e para o fortalecimento das relações institucionais do Poder Executivo com o Poder Judiciário.

No Brasil as profissões legais parecem entrincheiradas, cada uma em sua posição de defesa-ataque. Desde o ensino jurídico tudo é deficitário. Note-se, por exemplo, que nos Estados Unidos o Department of Education [2] (o equivalente ao nosso Ministério da Educação) outorga à American Bar Association (ABA) a acreditação (ou aprovação) das faculdades de Direito. Aqui no Brasil, como está nosso sistema jurídico, dificilmente se outorgaria exclusivamente à Ordem dos Advogados tal certificação. Porém, não seria estranho trazer parte dessas tarefas de credenciamento e descredenciamento de faculdades de direito para o Ministério da Justiça, que poderia operar mediante uma comissão de juristas, com origens na magistratura, no Ministério Público e na advocacia.

San Tiago Dantas em sua aula inaugural no curso da Faculdade Nacional de Direito, em 1955, tendo como título "A Educação Jurídica e a Crise Brasileira", já tratava do assunto sugerindo a "[s]implificação extrema de todas as formalidades, ampliação máxima da liberdade de ensinar e de estudar … [f]azendo com que os alunos desenvolvam o senso jurídico pelo exercício do raciocínio técnico na solução de controvérsias, em vez de memorizarem conceitos e teorias, aprendidos em aulas expositivas.” Seria necessário dar “ao curso flexibilidade para que os alunos se possam aprofundar nas especialidades que preferirem; eliminando formalismos escusados e ampliando a liberdade educacional" [3].

Não se pode pensar em reforma do Judiciário sem, umbilicalmente, ser pensada a reforma do ensino jurídico e, como já ousamos dizer, uma reforma das profissões jurídicas como um todo. Como conjecturado acima: uma reforma do conceito maior de administração da Justiça.

As profissões jurídicas, como o próprio nome indica, não são um negócio. São professions, e não business. Historicamente, referia Roscoe Pound, existem três ideias envolvidas em uma "profissão": organização, aprendizagem e espírito de serviço público. Isso é essencial. A ideia restante, a de "ganhar dinheiro", é acidental (não é uma ideia irrelevante, anote-se, mas secundária). Levi Carneiro proclamou, quando da criação da Ordem dos Advogados: "A Ordem dos Advogados é uma imposição dos nossos dias, dos nossos ideais, do nosso patrimônio. É órgão de seleção e disciplina, de cultura e de aperfeiçoamento moral. Não nos proporciona regalias ou favores, cria-nos um regime de árduos deveres". Se vivo estivesse, Levi Carneiro estaria sendo execrado pelos adeptos do discurso demagógico, pois atualmente todos são tão avessos ao reconhecimento da função primordial de uma profissão organizada (seleção, disciplina, cultura, aperfeiçoamento, serviço público e auto-organização).

O debate a respeito de mandatos em tribunais (especialmente os Superiores), a revogação ou não PEC da Bengala, as alterações para a prisão em segunda instância são temas relevantes para a arena pública. Mas de igual modo o é a modernização da Lei 8906/94, que rege a advocacia. Para tocar apenas em um ponto, a advocacia privada (mesmo que seja prestadora de verdadeiro serviço público) ainda padece com a ausência de um sistema de seguridade social (matéria que se reclama há mais de 50 anos), especialmente para advogados e advogadas praticantes-solo, que são a esmagadora maioria da profissão. Na particular questão do acesso à Justiça, é preciso trazer ao debate a posição da advocacia em início de carreira, tão necessitada de um primeiro contato com as lides forenses, mas ainda vivendo na insegurança de uma falta de regulamentação adequada dos sistemas de advocacia dativa. É fundamental ainda atualizar a estrutura do órgão ministerial, das Defensorias e das Procuraturas.

Sendo ainda mais ousados, é necessário recordar uma defesa do advogado e constitucionalista Luiz Otávio Rodrigues Coelho, que desde o final da década de 1980 alertava sobre a necessidade de reintrodução dos municípios no discurso da administração da Justiça, ao menos para situações assemelhadas aos Juizados Especiais. Ainda que fossem mantidos os recursos para os órgãos judicantes estaduais, isso permitiria repensar os custos envolvidos na jurisdição de pequenas causas e como poderia ser diluído com órgãos municipais as fases de conciliação e até sentença em matérias singelas. Se a posição dos municípios nesse campo pode soar estranha, inovadora ou desarrazoada, precisamos recordar que até bem pouco tempo era voz corrente que os poderes locais sequer teriam permissão para a manutenção de serviço de advocacia para a população hipossuficiente. Em 2021, o Supremo Tribunal julgou a ADPF 279, com voto condutor da ministra Cármen Lúcia, e reconheceu a constitucionalidade de serviços de assistência jurídica municipais, ou um "serviço público para auxílio da população economicamente vulnerável do Município, facilitando a cada pessoa o acesso à jurisdição".

O trabalho é árduo e  como já se pode notar — os interesses cartoriais serão imensos, contra ou a favor.

A única certeza que parece transparecer a este autor é a seguinte: pensar apenas na reforma do Poder Judiciário será uma obra infrutífera.

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