Opinião

Na carona das associações: consórcios de transporte coletivo e a recuperação judicial

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26 de janeiro de 2022, 9h16

A Lei nº 11.101/2005 ("LRF") dispõe que a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência são destinadas aos empresários e às sociedades empresárias [1]. O texto legal vai além, listando expressamente os agentes econômicos que não poderiam se valer daqueles institutos para lidar com situações de crise, como é o caso das empresas públicas, sociedades de economia mista, instituições financeiras públicas ou privadas, cooperativas de crédito, consórcios, entidades de previdência complementar, sociedades de plano de assistência à saúde, seguradoras, sociedades de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.

Tais dispositivos (artigo 1º e 2º) estão vigentes desde a entrada em vigor da LRF e não sofreram qualquer alteração com as reformas legais ocorridas ao longo dos anos [2]. Do modo como redigidos, esses artigos sugerem que só poderiam fazer uso dos regimes recuperatórios e só estariam sujeitos aos efeitos da falência quem fosse empresário ou sociedade empresária por essência.

A jurisprudência e a doutrina, contudo, acabaram relativizando o alcance dessa norma legal. Prova disso são os casos de associações civis que tiveram seus pedidos de processamento da recuperação judicial deferidos (ou, como no caso do Figueirense Futebol Clube, tiveram seu plano de recuperação extrajudicial homologado) [3].

As associações fundamentam a legitimidade para a recuperação judicial no argumento de que, na prática, efetivamente exercem atividade empresária, a despeito de sua natureza jurídica.

Neste sentido, vale destacar, por exemplo, o caso da Universidade Cândido Mendes [4], no qual o argumento utilizado pela requerente foi o de que, apesar de não ter fins lucrativos, seria uma associação que se organiza como empresa, coordenando fatores de produção e colocando bens e serviços no mercado, o que foi acolhido pelo Tribunal do Estado do Rio de Janeiro.

Diante de precedentes como aquele, o que esse pequeno texto se propõe a fazer é provocar o debate quanto à regra da legitimidade prevista na LRF e o seu alcance, trazendo uma nova discussão acerca da suposta legitimidade de consórcios, constituídos na forma dos artigos 278 e 279 da Lei nº 6.404/1.976 ("Lei das S.A."), para ajuizarem pedidos de recuperação judicial.

Nos últimos meses, três consórcios [5]  formados por empresas de ônibus do município do Rio de Janeiro recorreram, quase que de forma concomitante, a pedidos de recuperação judicial em razão da crise que se instalou no setor de transporte coletivo na capital fluminense [6].

Os requerentes não ignoraram o fato de que um consórcio, constituído nos termos dos artigos 278 e 279 da Lei das S.A., não possui personalidade jurídica, mas argumentaram que os consórcios em geral desempenham suas atividades de forma habitual, coordenando fatores de produção para a prestação de um serviço, o desenvolvimento de um empreendimento ou a produção e circulação de bens. No entendimento dos requerentes, o exercício de uma atividade econômica de natureza empresarial seria o suficiente para atrair a incidência das regras da LRF.

Para justificar sua legitimidade, o Consórcio Intersul, por exemplo, defendeu que suas atividades seriam "idênticas às desenvolvidas por sociedades empresárias, em muitos casos atuando, inclusive, em regime de concorrência com essas últimas" e não poderiam ser prestadas "pelas consorciadas de forma alheia à figura do Consórcio".

O Juízo da 1ª Vara Empresarial do TJRJ deferiu o processamento dos pedidos com base em uma "interpretação sistêmica e global do microssistema de insolvência brasileiro", cujo objetivo principal é a preservação da empresa. Embora o juízo recuperacional tenha reconhecido que a LRF não disciplina expressamente a recuperação judicial de consórcios de transporte [7], ao apreciar o pedido formulado pelo Consórcio Transcarioca, foi categórico ao afirmar o caráter mercantil dessa atividade.

 O Ministério Público interpôs recursos contra todas aquelas decisões tendo a 11ª Câmara Cível do TJRJ determinado a suspensão dos respectivos processos até o seu julgamento final [8].

Na contramão do que os Consórcios argumentam  e do que foi acolhido em primeira instância , o Ministério Público defende que os pressupostos processuais para o pedido de recuperação judicial não teriam sido preenchidos, na medida em que a capacidade dos requerentes estaria restrita ao objeto do contrato de consórcio. Indo além, o Ministério Público defendeu que apenas as empresas integrantes desses Consórcios  por terem personalidades jurídicas, dívidas e empregados próprios, patrimônios independentes e administrarem autonomamente suas operações  poderiam buscar a reestruturação de suas dívidas, como já o fizeram em outras oportunidades.

Sem entrar no mérito dos motivos da crise que se instalou no transporte público municipal carioca, fato é que, nos últimos anos, diversas empresas do setor recorreram à recuperação judicial para reestruturar suas dívidas sem que haja a interrupção do serviço [9]. Da mesma forma, várias outras empresas do setor encerraram suas operações.

Considerando todos os argumentos trazidos pelos Consórcios e pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, bem como os recentes precedentes nos casos das associações, será necessário acompanhar de perto como a questão será decidida pelo TJRJ e pelos tribunais superiores, pois essa decisão poderá redefinir o alcance da recuperação judicial (e extrajudicial) no Brasil.


[1] À luz do artigo 966 do Código Civil, exercerá atividade empresarial o sujeito ou a sociedade cuja atividade econômica estiver "organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços". Nos termos do parágrafo único desse mesmo dispositivo, estarão excluídos do conceito de empresário e sociedade empresária aquele que "exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa".

[2] A mais expressiva, certamente, foi a reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020.

[3] Processo nº 5024222-97.2021.8.24.0023, em trâmite perante o Juízo da Vara Regional de Recuperações Judiciais, Falências e Concordatas da Comarca de Florianópolis do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.

[4] Processo nº 0093754-90.2020.8.19.0001, em trâmite perante a 5ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

[5] Consórcios constituídos por meio de acordo de vontade entre duas ou mais partes e não das empresas que se dedicam às operações de consórcio para aquisição de bens e serviços através de financiamentos. As empresas administradoras de consórcio estão sujeitas às regras do Decreto-Lei nº 2.321/1987.

[6] Processo nº 0198046-92.2021.8.19.0001, distribuído pelo Consórcio Intersul de Transportes; processo nº 0205381-65.2021.8.19.0001, distribuído pelo Consórcio Santa Cruz de Transportes; e processo nº 0222211-09.2021.8.19.0001, distribuído pelo Consórcio Transcarioca de Transportes.

[7] Não disciplina acerca da possibilidade do pedido de recuperação, mas também não a veda expressamente, haja vista que a referência ao termo "consórcio", prevista no artigo 2º, inciso II, da LRF, trata das empresas que se dedicam às operações de consórcio para aquisição de bens e serviços através de financiamentos.

[8] Respectivamente, agravos de instrumento nº 0072384-24.2021.8.19.0000; 0074593-63.2021.8.19.0000; e 0075990-60.2021.8.19.0000.

[9] Até setembro de 2021, mais de um terço das empresas de ônibus da cidade do Rio de Janeiro estava em recuperação judicial (https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/09/04/rio-tem-mais-de-um-terco-das-empresas-de-onibus-em-recuperacao-judicial.ghtml. Acesso em 7.12.2021)

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