Território Aduaneiro

Avaria na importação: a discreta faxina no Regulamento Aduaneiro

Autor

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

25 de janeiro de 2022, 8h00

Bem-vinda! Bem-vindo! Que 2022 seja um ano profícuo e com muito mais saúde! Que as excelentes previsões do amigo Trevisan expressas semana passada nesta coluna se realizem todas sem exceção!

Spacca
São tantos tópicos interessantes e importantes para abordar! Desta vez, minha escolha fugiu um pouco dos grandes temas do Direito Aduaneiro, que têm nos guiado até agora. Na verdade, a seleção teve um aspecto mais pragmático: foi baseada na consulta de um colega com dúvidas sobre a exigência de tributos e multas sobre avaria de mercadoria importada. Assim, vou abordar uma grande mudança que aconteceu de forma discreta, talvez não percebida por muitos, no tratamento aduaneiro da mercadoria importada e avariada.

Em 2013, o Decreto nº 8.010 alterou, de forma sistemática, vários dispositivos do Regulamento Aduaneiro (Decreto no 6.759/2009, também denominado carinhosamente pelos aduaneiros de RA), que dispunham sobre avaria na importação e sobre a vistoria aduaneira, veiculando novo entendimento sobre a matéria e também procedimentos mais adequados ao controle aduaneiro.

O primeiro aspecto que merece atenção é a retirada do RA da previsão de vistoria aduaneira, com a revogação dos artigos 650 a 657 [1]. Era o próprio regulamento, não a lei, que dispunha sobre a vistoria aduaneira. Conforme o artigo 650 do RA, a vistoria aduaneira destinava-se a verificar a ocorrência de avaria ou extravio de mercadoria estrangeira entrada no território aduaneiro, a identificar o responsável e a apurar o crédito tributário dele exigível. Os artigos 651 a 654 e 656 do RA tratavam de aspectos procedimentais da vistoria aduaneira, e o artigo 655 permitia que o importador solicitasse dispensa da vistoria desde que assumisse a responsabilidade pelo imposto de importação e pelas penalidades pertinentes. Por sua vez, o artigo 657 atribuía à Receita Federal a competência para editar atos normativos para implementar as disposições dos artigos anteriores.

A questão é se, com a retirada do RA do procedimento de vistoria aduaneira, a autoridade fiscal não pode mais verificar avaria ou extravio na importação a fim de lançar os tributos e multas. Naturalmente que a competência da autoridade fiscal não derivava dos artigos revogados do RA. A atribuição é para exercer o controle aduaneiro e efetivar o lançamento de tributos e multas; as atividades de controle aduaneiro estão previstas nos artigos 15 a 25 do RA e têm respaldo na Constituição Federal (artigo 237) [2], no Código Tributário Nacional (artigos 142, 194 e 196), no Decreto-Lei nº 37/66 (artigo 36) e na Lei nº 10.593, de 2002 (artigo 6º).

Então, se a competência da autoridade aduaneira continua a mesma em relação às mercadorias importadas avariadas ou extraviadas, por que as alterações no RA?

O problema é que a vistoria aduaneira, que tinha por escopo apurar tributos e penalidades aduaneiras e indicar os responsáveis no caso de importação extraviada e avariada, passou a ser utilizada intensamente com propósitos diversos, como instrumento para comprovar a responsabilidade civil de transportadores, depositários e outros intervenientes no comércio exterior. Isso gerava uma carga muito grande de vistorias para a fiscalização, com prejuízo para as atividades de controle aduaneiro em geral.

Assim, o RA serviu para corrigir essa distorção. Sem qualquer mudança na competência da autoridade aduaneira, foi retirada do RA a previsão da vistoria aduaneira e foi explicitado quem são os responsáveis por tributos e multas no caso de extravios.

O §1º do artigo 660 do RA, introduzido pelo Decreto no 8.010/2013, passou a estabelecer uma regra simples: se a mercadoria for extraviada quando se encontrar sob responsabilidade do transportador, a responsabilidade pelos tributos e multas será dele; se o extravio ocorrer quando a mercadoria estiver sob responsabilidade do depositário, a responsabilidade pelo crédito tributário será deste; continua, ademais, a opção para o importador ou responsável pagar os débitos tributários voluntariamente a fim de agilizar o processo de importação das mercadorias remanescentes. De forma complementar, o artigo 661 do RA também sofreu mudança na definição dos contornos da responsabilidade tributária do transportador, e o artigo 662 foi alterado para excluir a responsabilidade tributária do depositário no caso de avaria.

Cumpre anotar que o Decreto no 8.010/2013, na mesma ocasião em que revogou os artigos sobre vistoria aduaneira e explicitou as responsabilidades tributárias do transportador e do depositário por tributos e multas no caso de extravio, também incluiu dois parágrafos no artigo 63 do RA, especificando os deveres do depositário no recebimento da mercadoria. Isso facilitou a averiguação do momento de transferência de responsabilidade tributária do transportador para o depositário.

Examinadas as novas disposições para as mercadorias importadas extraviadas, parece pendente de esclarecimento a situação daquelas avariadas. Verificando-se que antes do desembaraço aduaneiro ocorreu avaria das mercadorias importadas, não existindo mais a vistoria aduaneira e nem uma regra específica para atribuir responsabilidade, quem deve pagar os tributos e multas?

Sabemos que se considera ocorrido o fato gerador, para efeito de cálculo do imposto sobre a importação [3], no momento do registro da declaração de importação. Então, uma primeira inferência poderia ser feita: se a avaria ocorreu antes da declaração, não caberia cobrança de tributos sobre o valor original da mercadoria, pois a base de cálculo deve ser apurada de acordo com o elemento temporal do tributo. Mas ficaria mais um problema que sobrecarregaria o Fisco, ter-se-ia que realizar uma apuração, uma "vistoria", para tentar descobrir em que momento ocorreu a avaria. Além disso, continuava pouco adequado cobrar tributos sobre uma "avaria" ocorrida antes da efetiva introdução da mercadoria estrangeira na economia nacional e ainda atribuir ao Fisco a trabalhosa missão de descobrir o responsável.

Esse é um ponto importante, e o RA, na sua função regulamentadora, considerando a efetividade e o objetivo do controle aduaneiro, estabeleceu um novo e importante parâmetro. A ideia é controlar e cobrar os tributos sobre os produtos que efetivamente adentrarem o território aduaneiro e saírem para a zona secundária [4], tendo em conta não somente o aspecto temporal do imposto, mas a hipótese de incidência como um conjunto. Não deve ser fato gerador de tributo na importação o descuido, o lapso ou qualquer outro ato que gere avaria ou deterioração em mercadoria estrangeira. Ademais, o que vai adentrar efetivamente não é uma mercadoria no valor original, mas uma mercadoria avariada, cuja base de cálculo dos tributos sobre a importação deve ser revista.

Assim, especificamente em relação ao imposto sobre a importação, o artigo 73, II, "c", do RA foi alterado pelo Decreto nº 8.010/2013 para retirar das hipóteses de incidência do imposto a avaria, restando apenas o extravio [5]. O artigo 238, §1º, do RA também foi alterado pelo Decreto nº 8.010/2013 para não incluir na hipótese de incidência do IPI a avaria. O artigo 252, II, do RA, da forma semelhante, foi alterado pelo mesmo decreto para retirar do âmbito de incidência da contribuição para o PIS/Pasep/importação e da Cofins/importação a avaria.

Cumpre mencionar também o artigo 89 e o artigo 110, II, também alterados pelo Decreto nº 8.010/2013. O artigo 89 determina que, no caso de avaria, o interessado pode solicitar que o valor aduaneiro da mercadoria seja reduzido proporcionalmente ao prejuízo, para efeito de cálculo do imposto sobre a importação. No artigo 110, II, do RA continua a previsão de restituição de tributos no caso de avaria ou extravio [6], mesmo sem a vistoria aduaneira.

Nessa sistematização, houve ainda alterações nos artigos 570, §1º-A, e 663 do RA. Em ambos, o sentido foi de excluir responsabilidade tributária na hipótese de avaria.

Dessarte, cabe ter presente que essas novas disposições do Regulamento Aduaneiro que afastaram tributos e multas sobre avaria de mercadoria estrangeira ocorrida antes do desembaraço são interpretativas e, portanto, devem ser aplicadas de forma retroativa nos termos do artigo 106, I, do CTN [7].

Ao passo que o Trevisan nos brindou na semana passada com alvissareiras previsões para nosso futuro aduaneiro (e também futebolístico), eu tento esboçar alguma vidência para o passado, pois, infelizmente, no Direito, não temos certeza nem quanto ao que já passou, ficamos sempre na expectativa de posteriores interpretações e decisões de nossos tribunais.


[1] No mesmo sentido, foram alterados os artigos que tratavam da Vistoria Aduaneira no regime aduaneiro especial de trânsito aduaneiro: o Decreto no 8.010/2013 deu nova de redação o artigo 345 do RA e revogou os artigos 346 a 349.

[2] Sobre a base constitucional da competência da autoridade aduaneira, recomenda-se a leitura do texto
MEIRA, Liziane Angelotti. Comentários ao artigo 237 da Constituição do Brasil. In: J. J. Gomes Canotilho; Gilmar Ferreira Mendes; Ingo Wolfgang Sarlet; Lenio Streck. (Org.). Comentários a Constituição do Brasil. 2ed.Brasília: Saraiva, 2018, v. 1, p. 2266-2268.

[3] E também da Contribuição para o PIS/Pasep/importação e da Cofins/importação. No caso do IPI vinculado, mesmo tendo em conta que se tem por ocorrido o fato gerador no momento do desembaraço, havia previsão no Regulamento Aduaneiro (na redação original do inciso I do artigo 252 do RA) para exigir tributo e multa sobre avaria ocorrida antes do desembaraço. Para mais detalhes acerca dos impostos, taxas e contribuições incidentes na importação, recomenda-se remissão à obra MEIRA, Liziane Angelotti. Tributos sobre o Comércio Exterior. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

[4] Sobre território aduaneiro, remetemos à leitura dos dois primeiros artigos dessa coluna.

[5] No extravio, a cobrança de tributo e multa se sustentam porque se trata de perda dentro do Brasil de mercadoria que se encontrava na zona primária. Neste caso, as circunstâncias permitem concluir que houve uma efetiva entrada da mercadoria estrangeira, sem desembaraço pela autoridade aduaneira, e, consequentemente, exigir os tributos e a multa.

[6] A restituição caberia ao importador no extravio somente no caso de a responsabilidade ser do transportador ou depositário, nos termos do § 1º do artigo 660 do RA. Na avaria, o direito de restituição depende especificamente da verificação de ocorrência de avaria antes do desembaraço aduaneiro.

[7] O entendimento do presente artigo foi adotado, de forma mais sucinta, no Acórdão do Carf no 3301-011.576, de minha relatoria.

Autores

  • é conselheira e presidente de Turma no Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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