DIREITO CIVIL ATUAL

O que é um professor universitário? Em memória de Alcides Tomasetti Júnior

Autor

  • Rodrigo Xavier Leonardo

    é advogado e professor de Direito Civil na UFPR (Universidade Federal do Paraná). Doutor em Direito pela USP (Universidade de São Paulo). Membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

24 de janeiro de 2022, 17h50

O que é um professor universitário?

Não muito tempo atrás, Natalino Irti formulou essa provocativa indagação e sugeriu, como resposta, três tipos ou figuras recorrentes de docentes: haveria o professor encontro, imerso em um extenuante grupamento de aulas e de alunos; existiria, também, o professor colega, atento à relação com os seus pares, nos colóquios acadêmicos, disponível para as intermináveis bancas de exames e, por fim, o professor-insegnante[1].

Spacca
Não ousei traduzir o termo italiano "insegnante" justamente porque Irti, em um exercício de filologia, extrai dessa palavra muito mais do que aparentaria, num primeiro lance de vista, conter: insegnante seria aquele que in segna, que colhe o segno (sinal, marca) impresso por outrem para, a partir do seu próprio labor, elaborar e deixar o seu próprio segno no coração e na inteligência dos demais.

Justamente por isso, o professore-insegnante seria o símbolo da ininterrupção e a Universidade seria o seu habitat, pois, segundo o mesmo Irti: "A Universidade é o lugar da ininterrupção — isto é, de um saber, que, oriundo do passado, atravessa o presente e perspectiva o futuro — ou não é mais Universidade" [2].  

Ao memorar o Professor Alcides Tomasetti Júnior encontrei nessas reflexões de Natalino Irti uma trilha para tentar homenagear o mestre que precocemente deixou tantos alunos órfãos. Exatamente um ano atrás. Em 24 de janeiro de 2021.

Seria até mesmo difícil não estabelecer essa relação. Algumas vezes, com um tom severo e profundo, o Professor Alcides Tomasetti Júnior me confidenciou que o maior sonho de sua vida fora se tornar Professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Olhar para a sua história e para a sua vida, portanto, também é uma oportunidade para se perquirir, tal como antes fez Irti, o que vem a ser um professor universitário.

Alcides Tomasetti Júnior foi um professore-insegnante. Investigou, refletiu, absorveu e compreendeu o Direito, em especial o Direito Privado, para, a partir daí, atribuir o seu segno, a sua contribuição pessoal, e posteriormente entregá-la às gerações de alunos que tiveram o privilégio de acompanhá-lo.

Assim o fez, levando às últimas consequências, a ciência como vocação, tal como refletido na obra de um de seus pensadores prediletos: Max Weber.

Essa vocação, sabe-se bem, objetivou especialmente o Direito Privado, ainda que o Professor Alcides Tomasetti Júnior (que além da Faculdade de Direito, também cursou Letras e Filosofia na USP), nunca tenha restringido sua dupla atividade, de investigação e de ensino, a este campo do conhecimento.

Na Ciência Jurídica, dentre os juristas brasileiros, não há como olvidar a relação muito particular havida entre a obra de Pontes de Miranda e a elaboração do Direito Privado por Alcides Tomasetti Júnior.

O Professor João Alberto Schützer Del Nero — na erudita e comovente laudatio ao Professor Alcides Tomasetti Júnior, proferida por ocasião da aposentadoria —, captou o vínculo entre Tomasetti Jr. e Pontes, comparando-a com a relação entre Dante e Virgílio, imortalizada na Divina Comédia:

"Parece-me não haver meio mais adequado para demonstrar toda a nossa admiração e imenso carinho pelo Prof. Tomasetti que discerni-lo em Pontes de Miranda, sua firme, constante e a cada passo proclamada fonte de inspiração intelectual desde os bancos escolares da graduação.

(…)

Virgílio, o poeta romano que, na Divina Commedia, guia Dante na caminhada pelo inferno e pelo purgatório, mas não o acompanha no paraíso, em que não pode entrar porque, não sendo batizado e cristão, lhe são estranhas as virtudes teologais, embora para Dante seja o poeta pagão de mais elevadas e perfeitas virtudes intelectuais e morais.

Dante e Virgílio. Virgílio e Dante: guia e seguidor. Pontes de Miranda e Tomasetti"[3].

Ao longo de sua carreira, não há sombra de dúvidas, Pontes de Miranda foi o principal referencial brasileiro, colhido, refletido e elaborado. Este ponto de partida, todavia, nunca limitou o caminho, nem tampouco o ponto de chegada. Além de um invulgar conhecimento das fontes e da história do Direito, o Professor Alcides Tomasetti Júnior permanentemente trouxe consigo as mais recentes literaturas europeia continental, anglo-americana e latino-americana.

Cultor dos livros, era comum que as obras chegassem às suas mãos quase simultaneamente à publicação ao redor do mundo (na era digital) e, antes disso, pela amizade com os principais livreiros no Brasil. Por muitos anos poder-se-ia vaticinar que se o Professor Tomasetti Jr. não estava na Universidade de São Paulo, provavelmente, poderia ser encontrado na LAEL ou na livraria DANIEL GUEDES.

O Professor Alcides Tomasetti Júnior também foi um professor colega. O apreço de seus pares na Universidade de São Paulo e nas diversas outras escolas foi marcante. Nunca deixou de reverenciar os seus grandes mestres na USP (em especial o Professor Mauro Brandão Lopes e o Professor Antônio Junqueira de Azevedo) e manter intenso diálogo e amizade com tantos outros privatistas espalhados pelo mundo. Em nossa Universidade do Federal do Paraná, por exemplo, foi interlocutor privilegiado do Prof. Titular José Antônio Peres Gediel, do Prof. Titular Luiz Edson Fachin, do Prof. Titular Luiz Guilherme Marinoni, do Prof. Eroulths Cortiano Jr., do Prof. Edson Ribas Malachini e do também precocemente falecido, Prof. Victor Bonfim Marins (este, da UniCuritiba).

Cabe recordar que, nos últimos anos de docência na Universidade de São Paulo, quando as dificuldades de saúde o conduziram aos limites mais restritivos, o Professor Tomasetti Jr. recebeu de seus colegas na Universidade de São Paulo um especial auxílio e compreensão para concluir exitosamente a sua trajetória (em especial dos chefes de Departamento de Direito Civil, Professores Carlos Alberto Dabus Maluf, Silmara Juny de Abreu Chinellato e Fernando Campos Scaff), e de colegas docentes que constantemente se dispuseram a lecionar em sua substituição nos afastamentos de saúde (como, nos últimos anos, pelo auxílio do Prof. Otavio Luiz Rodrigues Júnior).  

Por fim, seguindo o tripartite arquétipo, Alcides Tomasetti Júnior foi um professor do encontro. A sala de aula era o seu lugar privilegiado. Ali o nosso homenageado entregou-se literalmente.

Muitas foram as frutificações de suas aulas em livros, artigos, dissertações e teses. Acerca disso, dizia-lhe o seu Mestre e dileto amigo, Professor Antônio Junqueira de Azevedo: "Alcides, não faça isto! Você fala demais!".

Invariavelmente, e para a sorte de seus aprendizes, o Professor Tomasetti prosseguia e entregava, inadvertidamente e sem pudor, as suas referências, as suas ideias, reflexões, leituras e pesquisas bibliográficas.

De fato, tal como sublinhado pelo Professor Antônio Junqueira de Azevedo, o Professor Alcides Tomasetti Júnior falava muito. E como era bom ouvi-lo! As paredes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo ainda ecoam os protestos dos vigilantes que queriam ir embora… Explica-se. Já próximo da meia-noite, após cinco ou seis horas de aulas ininterruptas, e com um esforço físico e intelectual exasperador, ali estava o Professor Tomasetti tentando entregar, mais e mais de si mesmo, fazendo pouco caso do horário limite para se encerrar as atividades no Largo São Francisco, no centro de São Paulo.

O Professor encontro, todavia, não se circunscrevia à sala de aula. Havia grupos de estudo, reuniões de orientação e tantos outros momentos nos quais, muito mais que as lições jurídicas, os ensinamentos de vida eram partilhados. Aos mais próximos, o nosso professor costumava-se lamentar: "É uma pena que seja preciso envelhecer para entender certas coisas…".

Se o maior sonho do Professor Alcides Tomasetti Júnior foi ser Professor na Universidade de São Paulo, pode-se dizer que o seu projeto de vida foi realizado no sentido mais estrito que o termo professor universitário pode significar.

O Professor Tomasetti Jr. não ambicionou degraus na hierarquia acadêmica. Tampouco lhe provocava brilho nos olhos ser um escritor, ainda que as suas obras tenham significativo impacto para a cultura jurídica nacional. Apesar de ter sido um brilhante advogado, carreando luz e solução para problemas e questões de alta indagação, para além do atendimento aos seus clientes, o nosso homenageado descobria em cada instrumento contratual analisado, litígio avaliado ou peça processual uma oportunidade para pensar o Direito, elaborá-lo, e retornar com os resultados para a sala de aula.

Nalguma medida, o sonho e a vocação do Professor Alcides Tomasetti Júnior até parecem se prenunciar nas entrelinhas de sua tese de doutoramento acerca do contrato preliminar.

O contrato preliminar é a espécie contratual cuja causa se encontra, justamente, em assegurar aos contraentes a introdução diferida de um ulterior contrato[4]. A razão de ser do contrato preliminar, em geral, não se encerra em si. Está no outro.

Ao escolher a docência universitária como vocação, o Professor Alcides Tomasetti Júnior estudou, trabalhou e ensinou para introduzir, em moldes diferidos, a sua vida na existência de outras pessoas. Tomasetti elaborou e propagou a cultura, os valores e a prosperidade na história daqueles que tiveram o privilégio de tê-lo como professor.

Sob essa perspectiva, ao lembrar do Professor Alcides Tomasetti Júnior, encontramos alguém como o desbravador original de caminhos pela neve, personagem no conto de Chalámov.

Tomasetti Jr., preliminar, desbravador, abriu caminhos para o futuro, para que as centenas de alunos que lhe seguiram, ao longo de mais de trinta anos de magistério, pudessem melhor caminhar. Tomou o trabalho maior para si, ciente que o desbravador cansa mais.

Encontramos no conto de Kolimá um pouco dessa história, com certo tom trágico: "O primeiro cansa mais do que os outros e, quando as suas forças se esgotam, um dos cinco restantes passa à frente. Dos que abrem caminho, todos, até o menor, o mais fraco, em algum momento tem de pisotear um pedaço de terra virgem coberta de neve e não a pegada alheia. Quem vai de trator e a cavalo não são os escritores [poderíamos completar, nem muito menos os docentes universitários!], mas sim os leitores [ou, em nosso caso, os alunos]"[5].

Mas… Qual o porquê disso? Qual razão para se escolher este tipo vida?

É difícil responder. Mais uma vez, porém, um dos pensadores mais importantes para Tomasetti Jr. talvez possa nos ajudar.

Max Weber, lá pelas tantas na já aqui citada "ciência como vocação", imagina um peculiar diálogo com um imaginário jovem que almejaria seguir a profissão da docência universitária.

Quando leio Weber, tendo sido aluno de Tomasetti Jr. por mais de duas décadas, chego a pensar que posso entrever essa mesma conversa, não mais realizada “em tese”, porém havida entre o conhecido sociólogo alemão e um dedicado e jovem brasileiro que sonhava ser professor na Universidade de São Paulo.

Peço perdão para compartilhar o fruto desse devaneio, dessa minha imaginação.

Suponhamos que o velho Weber encontrasse o jovem Alcides, prestes a se formar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, ambicionando se tornar professor daquela escola.

Após ouvir atentamente as ideias e os sonhos do jovem Tomasetti Jr., em especial o seu desejo de se tornar professor na USP, Weber lhe perguntaria: "Pensas que conseguirás suportar, sem amargura e sem prejuízo, que, ano após ano, sejas ultrapassado por mediocridade após mediocridade?".

A resposta do jovem Tomasetti Jr poderia bem ser: "Claro, vivo só para a minha 'vocação'".

Weber, por sua vez, após suspirar, talvez concluísse o diálogo com certo amargor e tristeza: "(…) da minha parte, pelo menos, conheci muito poucos que tenham suportado isto sem dano interior"[6].

Alcides Tomasetti Júnior faleceu em virtude de um infarto fulminante na madrugada do dia 24 de janeiro de 2021, após lutar contra uma depressão profunda por mais de vinte e cinco anos. Ao seu lado, como sempre, estava o seu anjo da guarda, a sua incansável e amável companheira, a Professora Maria Bernadette Mercadante Neves. Deixou dois filhos amados, Márcio e Luiza. Deixou centenas de alunos. Órfãos.

 


[1] IRTI, Natalino. Un professore-insegnante (Per Giuseppe Benedetti). In: IRTI, Natalino. Occasioni novecentesche sul cammino del diritto. Napoli : Editoriale Scientifica, 2012, p.117.

[2] IRTI, Natalino. Obra antes citada, p.118.

[3] NERO, João Alberto Schützer Del. Laudatio ao Professor Alcides Tomasetti Jr. Revista de Direito Civil Contemporâneo. V.17. ano 5. p.329-333. São Paulo : Ed. Rt, out-dez, 2018.

[4] “A causa do contrato preliminar, em termos englobantes, pode-se dizer que está em assegurar às respectivas partes a introdução diferida, ou a conformação básica, do regramento de seus interesses, acerca de determinado objeto, mediante um segundo contrato (definitivo), cujo dever de conclusão ou de complementação e conclusão, está vinculativamente previsto no primeiro” (TOMASETTI JR., Alcides. Execução do contrato preliminar. Tese. Universidade de São Paulo, 1982, p.09).

[5] CHALÁMOV, Varlam. Pela neve. In: Contos de Kolimá. Trad. Denise Sales e Elena Vasilevich. São Paulo : Editora 34, 2016, v.1, p.24.

[6] A íntegra do hipotético diálogo, encontrado na “Ciência como vocação” de Weber, é a seguinte: “A vida académica é, portanto, um acaso incontrolável. É quase impossível arcar com a responsabilidade de aconselhar o jovem que vem pedir orientação em vista da sua habilitação. Se for um judeu, diz-se lhe naturalmente: lasciate ogni speranza. Mas a qualquer outro deve, em consciência, perguntar-se: ´Pensas que conseguirás suportar, sem amargura e sem prejuízo, que, ano após ano, sejas ultrapassado por mediocridade após mediocridade?´. Em seguida, a resposta que se recebe é, evidentemente, esta: ´Claro, vivo só para a minha “vocação´ – da minha parte, pelo menos, conheci muito poucos que tenham suportado isto sem dano interior” (WEBER, Max. A ciência como vocação. Tradução de Artur Morão. In: http://www.lusosofia.net/textos/weber_a_ciencia_como_vocacao.pdf, p.9). Dentre as inúmeras edições, preferi citar esta, pela facilidade de acesso.

Autores

  • é advogado, professor de Direito Civil na Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Direito na Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Alcides Tomasetti Júnior, de quem foi sócio no escritório de advocacia TOMASETTI JR & XAVIER LEONARDO, entre 1999 e 2021. Atualmente é chefe do Departamento de Direito Civil e Processual Civil na UFPR.

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