Público & Pragmático

Contratos estatais e o Enunciado 17 da I Jornada de Direito Administrativo

Autor

23 de janeiro de 2022, 8h00

O tema relacionado às regras aplicáveis aos contratos celebrados pelas empresas estatais tem gerado debates na teoria e na prática de tais ajustes. Uma das principais questões trata da aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/1993 (a Lei Geral de Licitações e Contratos — LGL) — e, mais recentemente, da Lei nº 14.133/2021 (a Nova Lei Geral de Licitações e Contratos — NLGL) — como forma de integrar contratos firmados sob a Lei nº 13.303/2016 (o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais).

O debate da aplicação subsidiária da Lei 8.666/1993 às licitações das empresas estatais chegou aos Tribunais de Contas [1] — dele não trataremos aqui —, mas a questão relativa ao regime contratual ainda não possui contornos definidos em órgãos de controle. A nosso ver, o debate dessa temática é importante por suas razões.

De um lado, a demora do legislador em editar o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais, previsto no artigo 173, §1º, da Constituição Federal, desde a EC 19/98, acabou por gerar a aplicação da Lei nº 8.666/1993 às licitações e contratos das empresas públicas e sociedades de economia mista. Logo, por décadas, o mesmo regime licitatório e contratual aplicável à Administração direta, autárquica e fundacional foi aplicado às entidades empresariais públicas. Assim, a prática dos contratos das empresas estatais esteve muito baseada nas ideias de prerrogativas da administração e unilateralidade na relação com o contratado.

E isso não parece ser um aspecto de pouca relevância para a entrada de um novo regime legal, especialmente diante de uma lei geral que muitas vezes é interpretada como lei exclusiva a reger essa matéria. Vale lembrarmos do debate ocorrido no início dos anos 2000 a respeito do grau de vinculação das licitações realizadas pelas empresas estatais à Lei nº 8.666/1993 ou a regulamento próprio editado por cada entidade, como ocorreu na discussão travada entre a Petrobras e o Tribunal de Contas da União, quando a estatal passou a realizar contratações com base no Decreto nº 2.745/1998 (que regulamentou o artigo 67 da Lei 9.478/1997), considerado inconstitucional pelo órgão de controle [2], com a expedição de determinação para que a empresa seguisse a LGL nas suas licitações e contratos. O que estava em jogo nesse ponto era a possibilidade de a empresa estatal realizar procedimento licitatório customizado para a sua realidade, sendo a resposta do órgão de controle negativa, submetendo-a à Lei nº 8.666/1993.

De outro lado, o artigo 68 do Estatuto Jurídico das Empresas Estatais afirma que "os contratos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta Lei e pelos preceitos de direito privado", aspecto que inverte a regra até então vigente para os ajustes de tais entidades, baseado no artigo 54 da LGL, que estipula que os "contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado". Dispositivo com a mesma regra de fundo está no artigo 89, caput, da NLGL [3].

Com isso, troca-se a chave de abordagem dos contratos das empresas estatais: das regras baseadas na verticalidade e exorbitância, típicas dos "preceitos de direito público", passa-se para a maior horizontalidade que marca os "preceitos de direito privado". E qual o efeito prático dessa alteração?

Parece que o efeito prático é o de afastar a aplicação de "preceitos de direito público" nas hipóteses de lacunas contratuais, como é o caso das cláusulas exorbitantes não previstas expressamente.

Para que fique claro: a chave da Lei nº 13.303/2016 não impede que o contrato preveja cláusulas exorbitantes em favor da empresa estatal, inclusive estipulando sanções a serem aplicadas ao contratado (artigos 82 a 84), bem como a possibilidade de rescisão unilateral em caso de atraso injustificado na execução do ajuste (artigo 82, §1º). Nesses casos, a definição pormenorizada de tais regras para o caso concreto é cláusula obrigatória dos contratos, de acordo com os incisos VI e VII do caput do artigo 69.

O que esse novo regime demanda é que elas estejam devidamente previstas e regulamentadas no contrato, que é um ajuste baseado no direito privado, de modo que "exige-se que o exercício de atribuição desta ordem seja o resultado de faculdades concedidas pelo próprio contrato, e não mais a aplicação direta de preceitos legais que incidem praeter contrato" [4].

É dentro desses preceitos que o artigo 40 confere grande importância aos regulamentos internos de licitação e contrato, como forma de complementar e adaptar as regras da Lei nº 13.303/2016 para a realidade de cada entidade, contrastando com o regime único pretendido pela LGL para os contratos de tais entidades. Coloca-se, portanto, para o intérprete, a necessidade de analisar, além das regras legais, aquelas específicas de cada entidade, que devem guardar lógica com o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais.

Abre-se, nessa linha, maior espaço para que a empresa estatal analise, dentro de sua realidade e das finalidades buscadas em cada contrato, como manejar as cláusulas contratuais, de modo a garantir maior aderência entre o regramento contratual e a necessidade a ser atendida. O regime único e padronizado da LGL é substituído por um regime mais amplo e diversificado, a ser calibrado pelas empresas estatais de acordo com a realidade na qual inseridas e as necessidades de cada contrato.

Em atenção a tais regras foi editado o Enunciado nº 17 na I Jornada de Direito Administrativo, que afirma: "Os contratos celebrados pelas empresas estatais, regidos pela Lei nº 13.303/2016, não possuem aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/1993. Em casos de lacuna contratual, aplicam-se as disposições daquela Lei e as regras e os princípios de direito privado".

O texto deixa claro que o regime contratual da Lei nº 13.303/2016 é diverso do da Lei nº 8.666/1993, especialmente por possuírem amplitude subjetiva diversa — enquanto aquela lei se aplica às empresas estatais, a LGL regulamenta as contratações dos órgãos e demais entidades administrativas. E justamente por regrar relações que o legislador pretendeu como submetidas às regras de direito privado, a aplicação da Lei Geral resta comprometida, devendo as lacunas contratuais serem resolvidas pelas regras e os princípios que regem os contratos firmados entre particulares.

O enunciado foi editado antes da promulgação da Lei nº 14.133/2021, que é expressa no sentido da sua não aplicação às licitações e contratos das empresas estatais, salvo as disposições penais, conforme a redação do artigo 1º, §1º [5], o que afasta a aplicação subsidiária da NLGL aos ajustes celebrados pelas entidades empresariais estatais, em convergência normativa à proposição interpretativa [6].

 


[1] No TCU, cf. o Acórdão 1.020/2019, parcialmente reformado pelo Ac. 739/2020. No TCE-SP, cf. os acórdãos proferidos nos TCs 014949.989.17-2 e 012599.989.20-9.

[2] Cf. a esse respeito, o Acórdão 663/2002, rel. ministro Ubiratan Aguiar.

[3] "Artigo 89 – Os contratos de que trata esta Lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado".

[4] Bernardo Strobel Guimarães; Leonardo Coelho Ribeiro; Carlos Vinícius Alves Ribeiro; Isabella Bittencourt Mäder Gonçalves Gublin; e Juliana Bonacorsi de Palma. Comentários à Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016). Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 384.

[5] "Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no artigo 178 desta Lei".

[6] Cf. Christianne de Carvalho Stroppa, in Augusto Neves Dal Pozzo, Márcio Cammarosano e Maurício Zockun (coords.). Lei de Licitações e Contratos Administrativos Comentada: Lei 14.133/21. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 30-31.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP, pesquisador visitante na Université Paris 2 – Panthéon-Assas (2018-2019), especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP, ex-assessor na Secretaria de Governo do Estado de São Paulo (2015-2018) e advogado no escritório Pessôa Valente | Motta Pinto, especializado em Direito Público e Regulação.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!