Processo Tributário

Entre o que se disse e o que se quis dizer: a Súmula STJ 392

Autor

  • Esdras Boccato

    é procurador da Fazenda Nacional mestre e doutor em Direito Constitucional pela USP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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23 de janeiro de 2022, 8h00

Não foi o que eu quis dizer. Quem de nós já não teve de dizer, de outro modo, o que já havia dito antes, para eliminar mal-entendidos? Como é difícil pronunciar as palavras certas, enunciar, em linguagem, o que se quer relatar — nem mais, nem menos.

Para a boa comunicação, não há como prescindir de uma criteriosa construção frasal diante do farto cardápio de palavras que a língua portuguesa nos apresenta. Sem isso, a disparidade entre declaração e vontade declarada tende a ser perigosamente significativa, com perdas óbvias ao êxito comunicacional.

Com frequência, os conflitos intersubjetivos surgem justamente dos ressentimentos ou incompreensões de quem, recebendo mensagens com baixa clareza, interpreta-as em significado e extensão diversos dos que subjetivamente pretendeu o emissor.

Os prejuízos de uma má compreensão advinda da dissonância entre mensagem e intenção são sobremaneira dramáticos na fenomenologia jurídica. Afinal, "ao disciplinar a conduta humana, as normas jurídicas usam palavras, signos linguísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser" [1]. A desorientação produzida por vaguezas, ambiguidades, contradições e imprecisões metonímicas [2] invariavelmente presentes na composição linguística das regras jurídicas distancia-as da propalada razão de ser do Direito, que seria a regulação uniforme e estável da conduta humana.

Na indefinição de qual é a "regra do jogo", cada qual se orienta por aquilo que supõe. Age, conforme diz o relato bíblico, tal como quando não havia rei em Israel, ocasião em que "cada um fazia o que parecia bem aos seus olhos" (Livro dos Juízes 21:25).

Tradicionalmente, o desafio da enunciação clara, precisa e lógica dos preceitos normativos é posto à prova no processo legislativo. Tanto é assim que até a Assembleia Constituinte de 1987/88 teve por bem inserir no texto constitucional o dever de legislar regras metodológicas para a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis (artigo 59, parágrafo único, Constituição Federal/88). Não à toa foi editada a Lei Complementar nº 95/1998, cujo artigo 11 pretende parametrizar formas redacionais idôneas a fim de evitar os mal-entendidos sobre o que se objetivava ser a "regra do jogo" e o que se depreende enquanto tal a partir do conteúdo do texto legal posto. Entre outros propósitos, quer-se, com isso, que os textos legais não apresentem disparidades semânticas entre as clássicas metáforas da mens legislatoris e da mens legis, especialmente quando recém editadas.

Nas últimas décadas, porém, as preocupações com as dissonâncias semânticas entre "o que se diz" e "o que se quer dizer" passaram a ter mais um objeto peculiar de análise: as súmulas editadas pelos tribunais superiores.

Se, antes, apenas os órgãos legislativos eram o locus para o qual se dirigiam os esforços linguísticos de construções normativas consequentes, desde a reforma do Poder Judiciário com a Emenda Constitucional 45/2004, com o adensamento do exercício da competência de sintetizar jurisprudência em verbetes sumulares, também os órgãos judiciais passaram a figurar nesse espaço.

Enunciar, em poucas palavras, a reiterada interpretação judicial acerca de determinada questão jurídica mostrou-se tarefa tão ou mais desafiadora do que aquela já empreendida pelos parlamentos na produção de textos normativos, especialmente porque, diferentemente do que é a atividade legislativa, a de consolidação jurisprudencial não tem respaldo constitucional para inovar o sistema jurídico com a força da soberania popular representada (artigo 1º, parágrafo único, da CF/88).

Não tardou para que ficassem notórias as dificuldades inerentes a essa atividade: escritos em formato mimético [3] a dos textos de lei, por vezes os verbetes sumulares assumem grau de generalidade e abstração incompatível com a posição servil que a jurisprudência há de ter em relação à controvérsia jurídica subjacente à sua formulação. Não raro, uma súmula é redigida — ou pior, aplicada — como se fosse um texto de lei, a se relacionar com as demais normas do sistema jurídica sob a mesma lógica de antinomias prevista no artigo 2º, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, tal como se estivesse desprendida dos limites contextuais fático-jurídicos que serviram de pano de fundo para a produção dos reiterados julgados.

Talvez o exemplo mais emblemático dessa dissonância comunicacional tenha advindo da já cancelada Súmula 276 do Superior Tribunal de Justiça, a enunciar que "as sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado". Escrita de forma assertiva e atemporal, traduzia uma enganosa percepção de esgotamento da controvérsia jurídica sobre a isenção ou não daquelas entidades. Em função disso, por vários anos foi utilizada pelo próprio STJ como fundamento central para a rejeição da incidência do artigo 56, Lei nº 9.430/96, cujo preceito era justamente o de tributar com a Cofins as sociedades civis anteriormente isentas pelo artigo 6º, inciso II, Lei Complementar nº 70/91, ignorando-se que os precedentes que conduziram sua enunciação centravam-se na questão da ilegalidade do Parecer Normativo Cosit n° 34/94 perante a Lei Complementar nº 70/91 (recurso especial 260.960/RS), nada que ver com a previsão contida na Lei nº 9.430/96. Resultado: por sua aplicação desconectada com a questão de fato apreciada nos precedentes que culminaram na sua edição e consequente incompatibilidade com a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário 377.457, foi cancelada quando do julgamento da ação rescisória 3.761/PR no STJ, menos de cinco anos de sua edição.

Entre outros, ainda remanesce um enunciado que, se não cancelado, precisa ser reescrito, sob pena de reverberar a mesma insegurança jurídica que sua formulação inicial pretendeu solucionar. A referência é à Súmula STJ 392, segundo a qual "a Fazenda Pública pode substituir a certidão de dívida ativa (CDA) até a prolação da sentença de embargos, quando se tratar de correção de erro material ou formal, vedada a modificação do sujeito passivo da execução". Em parte, é mera repetição do conteúdo do artigo 2º, §8º, da Lei de Execuções Fiscais (LEF), que assegura a prerrogativa de substituição da CDA até a decisão de primeira instância. Em outra parte — o que aqui importa —, é a enunciação de uma regra de exceção, ou, melhor dizendo, a explicitação de uma limitação à faculdade processual assegurada à Fazenda Pública pelo §8º do artigo 2º: a de ser descabida a substituição da CDA para a modificação do sujeito passivo da execução fiscal.

Lida da forma como foi escrita, é natural que a inferência a partir do texto da súmula seja a de que a jurisprudência consolidada do STJ rejeita a alteração processual do polo passivo da execução fiscal por ato da parte exequente. A assertividade da expressão "vedada a modificação do sujeito passivo da execução" não abre margem a exceções da exceção ou ressalvas da limitação ali contida — o que é errôneo.

Expliquemos: segundo o teor sumulado, já vimos, não é admissível substituir a CDA no curso de uma execução fiscal se essa substituição provocar a modificação na relação jurídico-processual inicialmente instaurada com a CDA originária. Isso porque, também conforme se pode concluir do texto do verbete sumular, a alteração do sujeito passivo indicado na CDA não pode ser considerada correção de erro material ou formal do título executivo extrajudicial, única hipótese que autorizaria o exercício da prerrogativa prevista no artigo 2º, §8º, LEF. O texto da Súmula STJ 392 sugere, portanto, que a questão jurídica resolvida pela corte foi a de uma potencial controvérsia sobre a suficiência e exclusividade da limitação temporal "até a decisão de primeira instância" contida no §8º do artigo 2º, acerca da qual teria prevalecido orientação agregadora de outras limitações processualmente preclusivas daquela inicialmente prevista na Lei das Execuções Fiscais e que estariam descritas nos diversos acórdãos formadores da súmula.

Porém, contrariamente ao que seria de se esperar, a jurisprudência do STJ não diz o que o texto da Súmula 392 expressa. Não, pelo menos, da forma ampla e absoluta com que a vedação contida no verbete se apresenta. Um ligeiro passar de olhos nas ementas dos acórdãos formadores da Súmula 392 é suficiente para fazer notar, com efeito, que apenas nos casos em que a modificação do executado radicar-se na alteração do sujeito passivo da relação jurídica constituída pelo lançamento tributário é que estará vedada a substituição da CDA desencadeadora de tal efeito processual. Nos demais casos, por exclusão, vale a abertura semântica que a redação do artigo 2º, §8º, LEF, assegura à prerrogativa da Fazenda Pública, limitada somente à anterioridade de sentença em embargos de devedor. A exemplificar, cite-se o acórdão proferido no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 815.732/BA, de cujo voto desponta clara delimitação da expressão sumular "vedada a modificação do sujeito passivo da execução" (verdadeira exceção da exceção), ao prescrever que é "inviável a substituição da CDA nos casos em que haja necessidade de se alterar o próprio lançamento".

O vetor interpretativo adotado pela jurisprudência do STJ sobre o alcance da prerrogativa processual prevista no artigo 2º, §8º, LEF não se conecta minimamente com a literalidade do texto da Súmula 392.

Se, de um lado, os acórdãos e a súmula convergem quanto à existência de outros limites à substituição da CDA, divergem quanto a quais seriam esses. De acordo com a súmula, o limite é processual: vedada a substituição da CDA que modifique o polo passivo da execução fiscal — e ponto. Já de acordo com os acórdãos que embasaram a súmula, o limite é material: vedada a substituição da CDA que faça as vezes da revisão de lançamento (artigo 149, CTN), como se lhe fosse um sucedâneo.

Pelo teor da súmula, por exemplo, seria inadmissível substituir uma CDA inicialmente formalizada somente contra o contribuinte (artigo 121, inciso I, CTN) por outra CDA a incluir os demais responsáveis tributários (artigo 121, inciso II, CTN) após o esgotamento da discussão sobre a responsabilidade dos sócios-administradores perante os tribunais administrativos. Pela jurisprudência do STJ, por sua vez, seria possível, desde que respeitado o limite temporal previsto no artigo 2º, §8º, LEF.

Diferença semântica abissal e, por isso, absolutamente indesejável: indo na contramão da razão de ser de uma súmula jurisprudencial, porque geradora de decisões judiciais completamente diferentes para controvérsias idênticas.

É certo — já o dissemos — que nenhuma súmula deve ser aplicada de modo desconectado da controvérsia jurídica cuja solução se reiterou na jurisprudência. Há sempre de se ter em mente a questão fática e jurídica julgada, que nem sempre está posta adequadamente no texto sumular.

Porém, temos de convir: se uma súmula não dialoga com a jurisprudência que a fundou, não lhe resta serventia, que não apenas a de tumultuar a segurança jurídica que se pretende(ia) com a consolidação jurisprudencial. Deve ser revista, ou revogada, como é justamente o caso da Súmula STJ 392, sob pena de agravar a conflituosidade. Afinal, em se tratando de Direito, se for para dizer "não foi o que eu quis dizer", melhor é que não se diga nada.

 


[1] FERRAZ JR., Tércio Sampaio, Introdução ao estudo do direito, 4ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, p. 255.

[2] Metonímia, figura de linguagem que "consiste em designar um objeto por palavra designativa doutro objeto que tem com o primeiro uma relação de causa e efeito (trabalho por obra), de continente e conteúdo (copo, por bebida), lugar e produto (porto, por vinho do Porto), matéria e objeto (bronze, por estatueta de bronze), abstrato e concreto (um Camões, por um livro de Camões, a parte pelo todo (asa, por avião)" — in Novo Aurélio Século XXI. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1328.

[3] A palavra está sendo utilizada aqui no sentido de modificar-se por adaptação — in Novo Aurélio Século XXI. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1338.

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  • é procurador da Fazenda Nacional, mestre e doutorando em Direito Constitucional pela USP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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