Opinião

Reflexões críticas sobre o Projeto de Lei Henry Borel

Autor

  • Paulo Henrique Lima

    é mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pelo Introcrim/CEI pós-graduando Direito Digital pelo ITS/Uerj advogado criminalista com atuação nas áreas de Direito Penal Compliance Antidiscriminatório pesquisador palestrante e sócio do escritório Paes Leme Ramos.

22 de janeiro de 2022, 14h16

Antes de mais nada é necessário destacar o profundo respeito que dispensamos à família, aos amigos e a todos os que se sensibilizaram com a triste história do menino Henry Borel, assassinado em 7/3/2021, no apartamento onde vivia com sua mãe e seu padrasto.

A divergência que será exposta em face do Projeto de Lei nº 1.386/2021 não afasta a solidariedade que sentimos pela dor da família. Com efeito, o Estado democrático de Direito mantém em sua gênese dois pilares fundamentais. De um lado, a discussão sobre democracia e de outro, a necessidade de observância dos direitos fundamentais. Nesse sentido, contemporaneamente, um Estado que se pretende democrático não pode se pautar exclusivamente pelo anseio popular, principalmente no que tange à edição de institutos incriminadores. Por isso, em que pese ser necessária a construção de políticas públicas para o enfrentamento dos homicídios contra crianças e adolescentes no Brasil, entendemos que o Projeto de Lei nº 1.386/2021 e seus similares, em trâmite no Congresso Nacional, são equivocados, não só pela crença depositada no poder punitivo, mas, sobretudo, pela ausência de estudos científicos que verifiquem empiricamente a necessidade de edição da causa de aumento de pena para padrastos e madrastas que cometam crimes contra menores de 14 anos.

O PL se ampara na iniciativa de Leniel Borel, pai do menino Henry Borel, que através de abaixo-assinado pleiteou o "aumento de pena para assassinatos de crianças quando cometido por padrastos e madrastas". Segundo matéria divulgada pela ISTOÉ, o senhor Leniel Borel teria declarado que: "A gente precisa de alguma forma endurecer a lei desse país para que isso não volte a acontecer. Por isso que eu decidi, junto com meus advogados, criar essa petição online para pedir que acelere a votação dessa lei para que a gente tenha uma medida urgente para que as pessoas pensem duas vezes antes de cometer esses crimes bárbaros".

Embora nosso respeito pela dor desse pai seja imenso, infelizmente, mesmo que o PL seja aprovado, essa finalidade anunciada pelo pai do menino Henry provavelmente não se concretizará. Isso porque é pouco crível que um padrasto ou madrasta que tenha a intenção de cometer tamanha covardia seja inibido da prática delituosa simplesmente porque a pena foi elevada. Isso é um mito, muito utilizado para justificar os agravamentos de penas, mas pouco comprovado na prática.

Existem inúmeros fatores que podem influenciar para o aumento ou para a redução de uma prática delituosa: econômicos, culturais, sociais/educacionais, morais etc., mas nenhum deles está relacionado com o endurecimento de penas. Principalmente em casos em que a punição já é consideravelmente elevada. Será que se a pena atribuída ao crime de tráfico for aumentada de um terço à metade, teríamos a redução da prática desse crime? A resposta é simples: não.

O discurso que se fundamenta na ideia de impunidade ou de baixa reprovabilidade não encontra amparo na prática. O Ministério Público acusa Jairinho (padrasto) e Monique Medeiros (mãe) de terem praticado o assassinato do menino Henry, imputando-lhe penas que, respectivamente, chegam a aproximadamente 80 e 60 anos de reclusão. Ambos seguem presos e, se condenados, provavelmente não sairão da cadeia tão cedo. Por isso, por mais que se respeite a dor da família paterna, o caso não nos permite falar em impunidade, tampouco em penas brandas, mesmo porque essas penas ultrapassam, inclusive, o limite de cumprimento de pena privativa de liberdade no Brasil, que é de 40 anos, confere preceitua o artigo 75 do Código penal.

Segundo dados produzidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e a Unicef, "mais de 35 mil crianças e adolescentes foram assassinados em 5 anos no Brasil". Diante desses números, não há dúvida de que é necessário desenvolver políticas públicas que observem todo o contexto de violência em que essas crianças estão inseridas. Mesmo porque a Constituição Federal e o ECA asseguram proteção integral às crianças e aos adolescentes (artigo 227, CF, e artigo 3º, ECA), sendo certo que o Estado e toda a sociedade possuem obrigação de preservar a vida e quaisquer outros direitos dos menores. Porém, não se pode concordar com o projeto analisado, em que alega-se que a legislação criminal do país não seria capaz de punir adequadamente padrastos e madrastas que cometem crimes contra seus enteados, menores de 14 anos. Isso porque, na própria denúncia que recai contra a mãe e o padrasto do menino Henry Borel, verificamos que o somatório das penas atribuídas às condutas que teriam sido praticadas pelo casal chega a 140 anos.

Jairinho foi acusado como incurso nas penas do artigo 121, §2º, incisos I, III e IV (30 anos) e §4º do Código Penal (mais um terço = 40 anos); artigo 1º, II, c/c § 4°, I e II, da Lei 9.455/97 (três vezes) (32 anos); artigo 347, parágrafo único (fraude processual  quatro anos); artigo 344 (coação no processo  quatro anos), tudo na forma do artigo 61, "f"' e "h" (agravantes), nos termos do artigo 69 do Código Penal (concurso material), sob a égide da Lei 8072/90 (Lei de Crimes hediondos)  aproximadamente 80 anos.

Já Monique Medeiros, mãe do menino Henry Borel, foi denunciada como inclusa nas penas do artigo 121, §2º, incisos I, III e IV, e §4º, c/c artigo 13, §2º, "a" (40 anos), ambos do Código Penal; artigo 1º, II, c/c §2º (quatro anos) e 4° (mais um terço) da Lei 9.455/97 (duas vezes) (10,6 anos); artigo 299, caput (três anos); artigo 347, parágrafo único (fraude processual  quatro anos); artigo 344 (coação no processo — quatro anos), tudo na forma do artigo 61, "e", "f", "h", nos termos do artigo 69, todos do Código Penal, sob a égide da Lei 8072/90 = aproximadamente 61,6 anos. O somatório das penas atribuídas a esses crimes pode chegar, respectivamente, a 80 anos para Jairinho (padrasto) e mais de 60 anos para Monique (mãe). Ou seja, por mais grave que sejam os crimes (e eles são), certo é que o Direito Penal brasileiro possui os devidos institutos que permitem uma dura condenação, tanto de pais e mães quanto de padrastos e madrastas.

Por isso, por maior que seja o clamor social em torno do assassinato do menino Henry, se o nosso intuito for o de "coibir atos reiterados de homicídios contra menores de 14 anos", a edição de uma causa de aumento de pena contra madrastas e padrastos não é útil, tampouco necessária. Por outro lado, nos pareceria correta e adequada com a evolução de outros ramos do Direito brasileiro, eventual reforma do Código Penal que equipara-se, para todos os efeitos, madrastas e padrastos aos pais e às mães. Todavia, no projeto de lei, o deputado Hélio Lope, busca somente alterar o artigo 121 do Código Penal para inserir no §2° o inciso IX ("Contra menor de 14 anos") e inserir o §8° ("A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até metade, no caso do parágrafo segundo, inciso IX, se o crime for praticado contra descendente ou filho do seu cônjuge ou companheiro"). O deputado afirma que "o número de homicídios de adolescentes hoje no Brasil é maior do que em países afetados por conflitos, como Síria e Iraque".

O homicídio contra crianças reveste-se de uma crueldade inimaginável, que por si só já merece uma reprimenda do Estado, mas, quando essa crueldade é praticada justamente por ascendentes, padrastos, madrastas ou com quem coabitam com esses menores e que têm a obrigação diária de cuidar e proteger, torna-se exponencialmente mais grave e repugnante. Não é possível saber qual a fonte consultada pelo parlamentar para chegar a essa conclusão, mas esse dado é similar ao que está disponibilizado no site da Unicef, segundo o qual o número de homicídios de adolescentes do sexo masculino no Brasil é maior, inclusive, do que em países afetados por conflitos, como Síria e Iraque.

Em 2015, 11.403 adolescentes de dez a 19 anos foram assassinados no Brasil, dos quais 10.480 eram meninos. No mesmo período, na Síria, um total de 7.607 meninos morreram, a maioria em decorrência da guerra. No Iraque, foram registradas 5.513 mortes de meninos no mesmo período, em decorrência da violência. Ainda que o parlamentar tenha razão ao apontar a gravidade dos "números de homicídios de crianças no Brasil", esse dado leva em consideração não só os crimes cometidos por padrastos e madrastas, mas também qualquer homicídio cometido contra crianças, inclusive os que são praticados pelo Estado.

Só no Rio de Janeiro, segundo estudo produzido pelo Instituto Fogo Cruzado e divulgados pelo El País, entre 2016 a 2021 30 crianças foram mortas, 70 feridas e cem baleadas, dessas um terço foram atingidas durante ação ou operação policial e seis em cada dez foram alvejadas no Rio de Janeiro, mesma cidade em que o menino Henry foi assassinado. Em geral, diante de qualquer tragédia se utiliza o mito da impunidade para justificar uma expansão acrítica do poder punitivo, criando leis incriminadoras batizadas com o nome das vítimas como resposta rasa aos pleitos de grupos sociais que, embora tenham pautas legítimas, não necessariamente são comprovadas quando confrontadas por dados empíricos.

Infelizmente, quando estamos diante de casos de grande repercussão social, os interesses políticos costumam ignorar os princípios que regem nosso sistema jurídico e, sobretudo, as ciências criminais, desprezando a verdadeira função do Direito Penal, que é a contenção do poder punitivo (como ensina o professor Nilo Batista), e não a de atender aos anseios da sociedade. Por isso, concluímos que eventual reforma no que tange aos padrastos e madrastas em matéria criminal só deve ocorrer se tiver como escopo a equiparação, para todos os efeitos, aos pais e às mães. Nesse caso, independentemente da idade da vítima, os crimes cometidos por madrastas e padrastos seriam punidos como se pai ou mãe o criminoso fosse. Porém, além disso, o inverso também deveria ser verdadeiro, ou seja, nos casos onde o(a) enteado(a) praticar infrações contra seu padrasto ou madrasta, seria tal qual a prática de injusto contra seus genitores.

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