Opinião

Precisamos falar sobre o Ministério Público

Autor

  • Giuseppe Cammilleri Falco

    é advogado criminalista do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados presidente da Comissão de Direito Criminal Política Criminal e Penitenciária da 12ª Subseção da OAB de Ribeirão Preto — Seção de São Paulo.

22 de janeiro de 2022, 7h11

Nesta semana, foi publicado texto do professor Lenio Luiz Streck, que merece sempre a melhor das homenagens e cumprimentos, nesta ConJur [1], acerca da atuação do Ministério Público e, principalmente, sobre o papel do Ministério Público na nossa democracia. Entre todas as reflexões feitas no texto, as quais, vale dizer, são absolutamente pertinentes, destaca-se a convocação de que precisamos falar sobre o MP. Logo, instado por essa provocação é que humildemente escrevo o presente texto, não em resposta ao escrito pelo professor Lenio, mas para tentar contribuir ao debate, talvez mais com perguntas do que com soluções, pois, da mesma forma, estou certo de que precisamos falar sobre o MP.

O debate, certamente, é mais amplo do que o presente artigo, pois falar do papel do Ministério Público e, também, abordar o modelo de Estado de Direito e, por que não?, de legitimidade do poder punitivo, assuntos que extravasam — e muito — as linhas deste escrito. No entanto, vejamos se conseguimos trazer algumas questões ao debate, restringindo-se, desde já, o alcance das reflexões à atuação do MP perante a Justiça Criminal.

A questão que se coloca não é somente sobre o papel do MP em nossa democracia, mas, também, e por consequência, como melhorar a atuação do MP. Isso porque, e aqui concordando com o professor Lenio, a atuação do MP não vem cumprindo o melhor papel para a funcionalidade do sistema de Justiça Criminal. Basta lembrar a súplica do ministro Rogério Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, que já ocupou as fileiras do MP, quando do julgamento do HC 705.522, para que os membros do MP deixassem de ser "despachantes criminais".

O citado texto da lavra do professor Lenio Luiz Streck, em resumo, defende um MP que atue tal qual uma "magistratura", ou seja, como órgão de resguardo e fiscalização da lei. É verdade que essa é a posição adotada pela Constituição Federal, no entanto, me pergunto se é conciliável a função de custus legis com a função de parte (ou, se preferirem, órgão acusatório) no processo penal.

Diante da lógica do processo, me parece um tanto quanto estranho que, por exemplo, em um recurso de apelação em que o MP é a parte apelada, tanto é que faz contrarrazões de apelo, esse mesmo MP lance parecer nos autos e, ainda, quando da sessão de julgamento profira sustentação oral em defesa dos termos do recurso do MP atuante perante o primeiro grau. Nesse caso, o MP exerce um verdadeiro cerco ao julgamento, afinal, o órgão do Estado que é fiscal da lei está avalizando o argumento da parte recorrida. Em outras palavras, como julgar em desacordo ao órgão estatal fiscalizador da lei?

A estranheza é a mesma na primeira instância, em que o MP fiscaliza a lei, investiga em nome da lei e acusa sob o fundamento da lei. De modo que a paridade de armas está absolutamente comprometida, afinal, repita-se, como e por que contrariar o órgão estatal fiscalizador da lei? A melhor imagem dessa dupla estranha função do MP é nítida a todos aqueles que já assistiram uma sessão do plenário do júri em que o(a) promotor(a) de Justiça iniciou sua fala sustentando que ele era parte isenta e fiscal da lei, tanto é assim que poderia estar ali ter estar pedindo a absolvição do acusado, mas que porque tem certeza da culpa do acusado pedia a condenação.

No mais, é estranho que o Estado necessite do Judiciário, notada e legitimamente o órgão fiscalizador da lei, para vigiar e, por vezes, tolher a atuação do próprio Estado que atua como fiscalizador da lei (MP). Mesmo assim, com dois fiscais da lei (Judiciário e MP), veem-se processos caricaturais e notadamente injustos, levando, por exemplo, a necessidade de absolvição pelo ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal de pessoa acusado de um furto de uma peça de picanha avaliada em R$ 52 [2]. Como, no caso relatado, justificar uma atuação de fiscal da lei?  

Ainda nesse contexto, deve-se perguntar de que se presta a defesa diante do órgão estatal que, ao mesmo tempo que fiscaliza, é o legitimo acusador no processo penal. Isto é, como e por que rebater o isento fiscal da lei? Pedindo escusas pela ironia da pergunta, quer parecer que, na realidade, a dita paridade de armas é (se muito!) uma diretriz axiológica do âmbito do processo. Ao cabo, parece-me que hoje o único fiscal da lei é a defesa, que atua para fazer valer, ainda que com a condenação, os direitos do acusado como sujeito. Afinal, o que seria do caso do citado furto de picanha sem um advogado (independentemente se defensor público ou não) para chegar a Suprema Corte, por via de um recurso em Habeas Corpus, e fazer valer a lei?

Alguns, em desacordo legitimo a esse texto, poderão sustentar que o MP não pode ser somente parte no processo, pois o órgão estatal fiscalizador da lei não pode ter uma atuação estratégica perante o processo penal. Porém, ante essa afirmação, pergunto: como, então, explicar a legitimidade do MP na formulação de acordos de colaboração premiada, acordos de não persecução penal, transações penais e outros instrumentos do chamado processo penal negocial? Afinal, nesses casos, há uma clara visão estratégica do MP para, por exemplo, no âmbito de uma colaboração premiada expandir a investigação a demais pessoas ou, ainda, conseguir mais provas para sustentar a acusação. Aliás, mais recentemente, vimos no caso da Boate Kiss, o MP requerer a suspensão dos efeitos de decisão liminar proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul em Habeas Corpus, unicamente para ver presos os réus condenados por decisão do conselho de sentença do caso. Novamente uma clara atuação estratégica do Ministério Público, a qual, no particular, foi referendada pelo Supremo Tribunal Federal.

No entanto, não podemos confundir pensamento estratégico processual com ânsia punitiva, sobretudo porque o MP faz parte do Estado. O MP não detém a meta de alcançar a condenação do acusado, no processo penal não há vencedores ou perdedores. O que quer dizer que o MP não pode deixar de apresentar uma declaração feita no interior do MP porque irá absolver o réu, isso seria má-fé processual. Aliás, nesse caso, o MP sequer poderá prosseguir a ação penal sob pena de abuso de autoridade, pois sabe que o sujeito é inocente e mesmo assim estaria a insistir na persecução penal [3]. Porém, o MP tem, sim, a liberdade (dentro da licitude e da boa-fé), por que não dizer estratégica?, de escolher qual medida cautelar vai pedir para o deslinde de uma investigação. Em resumo, o MP não é órgão isento, tanto é que está submetido à fiscalização do Poder Judiciário, porém, não deixa de ser órgão de Estado que não pode atuar fora dos limites ou em desrespeito à Constituição Federal, o que equivale a dizer que não pode compactuar com injustiça, com o desrespeito ou ignorância ao princípio da presunção da inocência ou com má-fé processual.

O professor Lenio Streck, me parece (sempre com a possibilidade de eu estar errado), clama aos membros do MP por uma maior racionalidade no uso da liberdade funcional. Acompanho o professor adicionando que a todos os chamados atores do processo penal é necessária racionalidade, porém, mais que isso, é necessária uma melhor forma de controle. Por isso, além de precisarmos falar sobre também o CNMP, é necessário admitir o MP como parte do processo penal e afastá-lo do Judiciário, colocá-lo em pé de igualdade à defesa e, principalmente, conceder ao Judiciário — esse, sim, verdadeiro fiscal da lei — maior legitimidade para controlar os limites de atuação do MP. Não por outro motivo o juiz é o presidente do processo, justamente, entre outras funções, para manter a liberdade da atuação das partes, mas, especialmente, a licitude dessa atuação.

Enfim, como se vê, o problema não é somente de prática processual, mas, sobretudo, sobre a funcionalidade do sistema de Justiça Criminal, que, da forma que está, mais se assemelha à Torre de Babel, onde, uma vez que cada andar dialoga por uma língua, não se consegue alcançar o mínimo de integralidade. Espero, aqui, ter contribuído ao debate, o qual precisa ser feito com serenidade, seriedade e voltado à melhoria das funções institucionais, o que, certamente, levará a mais justiça.

 


[1] Texto do professor doutor Lênio Luiz Streck publicado em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-20/senso-incomum-min-schietti-promotor-zilio-digo-precisamos-falar-mp

[2] RHC 210.198/DF. Relator ministro Gilmar Mendes. Decisão Mesocrática. Data julg. 14/01/2022.

[3] Art.30 da Lei 13.869/2019.

Autores

  • é advogado no escritório Alamiro Velludo Salvador Netto – Advogados Associados, mestrando em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista – UNESP/FCHS, coordenador do Grupo de Estudos Avançados em Escolas Penais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Estado de São Paulo (GEA/IBCCrim), membro da Comissão de Direito Criminal e Política Penitenciária da 12ª Subseção da OAB/SP.

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