Opinião

'Caso Robinho': transferência da execução penal é impossível

Autores

  • André Fini Terçarolli

    é advogado criminalista pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e mestrando em Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

  • Frederico Ma

    é assessor jurídico na Procuradoria Regional da República na 3ª Região pós-graduado em Direito Penal Econômica pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre em Política Ibero-americana em Políticas Anticorrupção pela Universidade de Salamanca.

21 de janeiro de 2022, 20h35

Com grande repercussão na mídia nacional, foi veiculada a condenação proferida pelo Poder Judiciário italiano do jogador de futebol conhecido como Robinho. Ao mesmo tempo, também foi iniciado intenso debate jurídico sobre a possibilidade de transferência da execução da pena imposta no estrangeiro para o Brasil, tendo alguns juristas se manifestado a favor sobre o tema em razão da aplicação do instituto previsto no artigo 100 da Lei de Migração [1], de modo a possibilitar o cumprimento, no Brasil, de pena privativa de liberdade imposta no estrangeiro contra brasileiro nato.

Com todas as vênias, discordamos dos argumentos lançados e, principalmente, com a conclusão sobre a possibilidade da transferência, em desfavor de brasileiro nato, da execução da pena imposta no estrangeiro para o Brasil.

A primeira premissa está disposta no artigo 9º do Código Penal [2], que disciplina taxativamente as hipóteses em que a sentença alienígena pode ser homologada no Brasil para que produza seus efeitos. Tal norma jurídica viabiliza a homologação de sentença estrangeira exclusivamente para eventual reparação de dano e cumprimento de medida de segurança, o que torna clara a impossibilidade de proceder à referida medida quando voltada para a execução de pena corporal.

A segunda premissa reflete na necessidade de análise sobre o âmbito de incidência da Lei de Imigração, voltada exclusivamente para tutelar e acolher apenas a figura do migrante e visitante, de modo a resguardar os direitos e deveres para quem estiver em tal situação jurídica. Não por outro motivo, o artigo 1º da Lei de Imigração dispõe claramente que a "lei dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante" [3].

A limitação na abrangência da Lei nº 13.445/2017 para os migrantes e os visitantes, inclusive, é reforçada no próprio artigo 100 do mencionado diploma legal, que dispõe claramente que o instituto da transferência de execução da pena poderá ser solicitada ou autorizada quando "couber solicitação de extradição executória" [4], o que evidencia a impossibilidade de aplicar o referido instituto para os brasileiros nato, tendo em vista a proibição de extradição da pessoa com nacionalidade originária, conforme previsto no artigo 5º, inciso LI, da Constituição da República Federativa do Brasil e no artigo 82, inciso I, da Lei de Imigração.

Ressalte-se, no ponto, que o fato de o artigo 100, caput, da Lei 13.445/2017 ter condicionado a transferência de execução da pena à mera solicitação de extradição executória não permite a conclusão de que o brasileiro nato possa ser submetido à execução de pena privativa de liberdade estrangeira sob o argumento de ser possível solicitar a extradição de pessoa com nacionalidade originária, ainda que esse pedido venha ser indeferido por falta de requisito.

Isso porque, diante da manifesta proibição constitucional e legal da extradição do brasileiro nato, eventual pedido de extradição executória em desfavor da pessoa com nacionalidade originária sequer deveria ser conhecido para análise, tendo em vista a impossibilidade jurídica do pedido [5].

Portanto, considerados os argumentos expostos, a Lei de Imigração e o instituto da transferência de execução da pena não alcançam os brasileiros que possuem a nacionalidade originária.

Ainda que assim não fosse, caso se entenda pela aplicação da Lei da Imigração ao brasileiro nato, questão admitida apenas para fomentar o debate, encontramos a terceira premissa. O parágrafo único do artigo 100 da Lei 13.445/2017, ao estabelecer que a transferência de execução da pena será possível quando preenchidos os requisitos e "sem prejuízo do disposto no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940" [6], estabelece a obrigatoriedade de respeitar o Código Penal, de modo que eventual aplicação do instituto ora discutido deve ocorrer em harmonia com o diploma penal.

Pois bem. Como dito na primeira premissa, o Código Penal não permite a homologação da sentença estrangeira para o cumprimento, no Brasil, de pena privativa de liberdade. Dessa maneira, deve-se coordenar a aplicação conjunta de ambas as legislações, sem que ocorra sobreposição de uma sobre a outra. Como bem lembrado pelo ex-ministro Eros Grau "(…) cada norma é parte de um todo, de modo que não podemos conhecer a norma sem conhecer o sistema, o todo no qual estão integradas" [7].

Inclusive, quanto ao caso de condenação imposta pelo Poder Judiciário italiano, necessário apontar a inexistência de tratado entre o Brasil e a Itália para a execução de condenações criminais, tanto que o Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal entre Brasil e Itália definiu, em seu artigo 1º, §3º, que "a cooperação não compreenderá a execução de medidas restritivas da liberdade pessoal nem a execução de condenações" [8].

Logo, na visão desses autores, eventual decisão judicial franqueando a transferência da execução de pena imposta no estrangeiro em desfavor de brasileiro nato para o Brasil afrontaria o próprio artigo 100 da Lei de Imigração e o artigo 9º do Código Penal.

No ponto, importante rememorar que tal situação não acarretaria em uma total impunidade para o brasileiro nato, tanto que o Direito Penal pátrio, já prevendo uma situação como essa, estabeleceu, no artigo 7º, inciso II, alínea "b", do Código Penal, uma hipótese de extraterritorialidade para os casos de crime cometidos no estrangeiro por brasileiro nato, o que viabiliza a persecução criminal no Brasil por fatos cometidos fora do país.


[1] BRASIL. Lei nº 13.445/2017. Institui a Lei de Migração. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

[2] BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848/1940. Código Penal. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

[3] BRASIL. Lei nº 13.445/2017. Institui a Lei de Migração. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

[4] BRASIL. Lei nº 13.445/2017. Institui a Lei de Migração. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

[5] Estes autores estão conscientes sobre a ausência de previsão expressa da impossibilidade jurídica do pedido no Código de Processo Civil de 2015 e a discussão quanto à sua previsão tácita ou não no referido diploma legal.

[6] Idem.

[7] GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 19.

[8] BRASIL. Decreto nº 862, de 09 de julho de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0862.htm>. Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

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  • é advogado criminalista, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Direito Processual.

  • é assessor jurídico na Procuradoria Regional da República na 3ª Região, pós-graduado em Direito Penal Econômica pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre em Política Ibero-americana em Políticas Anticorrupção pela Universidade de Salamanca.

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