Opinião

O controle judicial na recusa do MP ao oferecimento da proposta de ANPP

Autores

  • Stephanie Carolyn Perez

    é advogada criminal doutoranda em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires (UBA – Argentina) mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professora das disciplinas de Direito Penal Direito Processual Penal e Execução Penal nos cursos de graduação e pós-graduação e autora de artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior.

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  • Ulisses Augusto Pascolati Junior

    é juiz de Direito do TJSP professor de Direito Penal doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca e em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura (EPM).

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19 de janeiro de 2022, 16h07

1) Considerações iniciais
A Lei 13.964/2019, conhecida como lei "anticrime", previu, no artigo 28-A do CPP, o acordo de não persecução penal (ANPP), conferindo trateamento negocial aos delitos de média potencialidade lesiva.

Trata-se de mecanismo de solução consensual celebrado entre o titular da ação penal (promotor de Justiça) e o autor do fato delituoso, assistido por seu defensor, por meio do qual o autor do fato confessa formal e circunstancialmente a prática de um delito, sujeitando-se ao cumprimento de determinadas condições não privativas de liberdade em troca do compromisso do Ministério Público de não oferecer denúncia, o que representa uma verdadeira mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, já que, embora o Ministério Público possua justa causa para o oferecimento da denúncia, não o fará caso o acusado cumpra todas as condições pactuadas.

Ao regulamentar o ANPP, o legislador estabeleceu requisitos de natureza objetiva e subjetiva.

Preenchidos os requisitos legais no plano concreto-normativo, Ministério Público e investigado, este sempre acompanhado de defesa técnica, estabelecerão algumas condições (artigo 28-A, incisos I a V, CPP) e, sendo estas cumpridas, ao final declara-se extinta a punibilidade do agente (artigo 28-A, §13, CPP). O problema surge nas situações em que o Ministério Público, mesmo havendo o preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos, se nega a oferecer a possibilidade da solução consensual. Nessa situação, o que pode ser feito?

2) Instrumento limitado de política criminal
Imperioso anotar que a discussão não gira em torno da natureza jurídica do ANPP, é dizer, se seria ou não direito subjetivo do autor do fato. Nesse momento a discussão cinge-se a que, presentes os requisitos delineados pela lei, o não oferecimento da proposta de acordo sob o argumento de se tratar de instrumento de política criminal de avaliação discricionária revela-se em ato arbitrário, passível de controle externa corporis, mesmo que a decisão do Ministério Público seja arrimada na "necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime".

O ANPP é, de fato, instrumento de política criminal e objetiva evitar o encarceramento de pessoas investigadas pela prática de crime de média potencialidade lesiva. Entretanto, a compreensão de se tratar de instrumento de política criminal não pode funcionar como meio de se evitar a Justiça consensual e, por conseguinte, após regular processo, contribuir justamente com possível encarceramento.

A política criminal, como um setor da política que envolve decisões sobre a vida na polis, é exercida em todos os níveis do sistema de Justiça Criminal e, assim, por óbvio, não é infensa ao Ministério Público, que é o titular da ação penal pública e órgão da persecução penal. Logo, é aceitável e se coaduna com possível orientação político-criminal recrudescedora (para "reprovação e prevenção do crime") à elaboração de estratégias, táticas, métodos ou diretrizes para o controle formal do delito por meio do não oferecimento do ANPP. Entretanto, o que não é aceitável é a utilização de um instrumento de política criminal de forma arbitrária, até porque, não se pode olvidar, os princípios de política criminal são ferramentas fundamentais para combater possível intervenção arbitrária do Estado [1].

É inegável que o oferecimento da possibilidade do acordo seja prerrogativa institucional do Ministério Público, até porque o legislador mitigou, mais uma vez  como já o fizera quando tratou da transação penal e da suspensão condicional do processo , o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Todavia, essa prerrogativa deve ser exercida dentro do esquadrinhamento legal previsto pelo legislador, limitador, portanto, de qualquer compreensão de que se trata de atividade discricionária plena.

O legislador permitiu, no caput do artigo 28-A do CPP, uma avaliação discricionária quanto ao oferecimento do ANPP. Entretanto, a possibilidade de ofertar ou não a solução consensual do conflito penal é juridicamente vinculada aos requisitos firmados na lei, ou seja, o Ministério Público até pode não ofertar o acordo se entender que o instrumento político-criminal não é apto (necessário e suficiente) à reprovação e prevenção do crime, contudo, essa atividade discricionária, representada pela escolha ótima e sinalizada pela necessariedade e suficiência, deve vir balizada pela presença ou não dos requisitos legais.

Em outros termos, se os requisitos previstos no artigo 28-A não estiverem atendidos, a conclusão é que o acordo não é suficiente e necessário à reprovação e prevenção do crime. Mas, por outro lado, se os requisitos estiverem presentes, a discricionariedade representada pela "reprovação e a prevenção" do caput deve ser interpretada juntamente com os demais requisitos, ou seja, o legislador indica que, se o autor dos fatos preencher os requisitos para celebração do ANPP, a celebração do acordo é o caminho indicado para a solução negocial do conflito penal, ou, de outra forma, necessário e também suficiente para prevenção e reprovação do crime.

O legislador não deixou ao Ministério Público uma atividade discricionária plena, mas, sim, regrou-a, estabelecendo as balizas para a escolha político-criminal a ser implementada. Assim, o ANPP será necessário e suficiente quando estiverem presentes os requisitos legais. Ao se considerar o ANPP instrumento de política criminal de avaliação discricionária, sem a observância dos requisitos balizadores da escolha do Ministério Público, abre-se caminho para um decisionismo arbitrário, eis que impõe ao Direito uma aplicação relegada ao campo da "sorte ou azar". A casuística, nesse sentido, é incompatível com a segurança jurídica necessária dentro de um Estado democrático de Direito. Ademais, ressalte-se, a política criminal considerada de forma isolada, sem, portanto, os postulados da dogmática e dos princípios limitadores, é porta de acesso de legitimação de qualquer forma de atuar do Estado.

3) Controle externa corporis e a rejeição da denúncia por falta de justa causa
Considerar o ANPP como instrumento de política criminal de avaliação discricionária do Ministério Público é fonte de arbítrio, devendo, como todo ato estatal, ser passível de controle. O problema que surge, então, é: como controlar essa atividade do Ministério Público?

A Lei 13.964/19 previu apenas e tão somente uma forma de controle prevista no §14 do artigo 28-A, qual seja: havendo recusa por parte do membro do MP em propor o ANPP, o autor dos fatos/investigado pode requerer a remessa dos autos ao órgão superior, na forma do artigo 28 do CPP. Ora, ainda que seja o magistrado quem remete os autos à instância superior do Ministério Público, trata-se, na verdade, de controle interna corporis, sem interferência externa. Em outros termos, o que fazer se, mesmo com a remessa dos autos, a superior instância mantém o entendimento de que se trata de instrumento de política criminal de avaliação discricionária?

Inicialmente, urge deixar sublinhado que em qualquer Estado de Direito os poderes das autoridades são essencialmente limitados. Nos regimes democráticos não há poderes absolutos e, ao lado do importante dogma da separação dos poderes e funções, é imperiosa a necessidade de controle externo dos poderes e das instituições do Estado. O que se quer dizer com isso? Se não existir controle externa corporis, o acusado fica sujeito a eventuais arbítrios, sendo submetido a indevido e, por si só, estigmatizante processo penal.

Assim, sustenta-se que, ao negar o ANPP e sendo oferecida denúncia, consequência natural das investigações, é lícito ao magistrado, no exercício do controle da ação penal, rejeitar a denúncia uma vez que, mesmo havendo meio eficaz de solução do conflito, opta o Ministério Público por procurar o caminho mais burocrático e custoso, cuja solução final  resolução do conflito penal com aplicação de pena pelo magistrado  poderia ser alcançada no ANPP mediante assunção de algumas obrigações, entre elas a imposição de pena não privativa de liberdade.

Dessa forma, e como solução possível, entende-se que a via jurisdicional no caso em questão não pode ser acionada porque não se esgotou previamente a tentativa de autocomposição posta pela lei, ou seja, um meio alternativo mais rápido, econômico e menos estigmatizante para se alcançar a resposta penal. Vale dizer, não oportunizando a celebração de ANPP, o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, carecerá de justa causa para o ajuizamento da demanda (artigo 395, inciso III, do CPP).

Nesse mesmo sentido, há recente julgado da 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A justa causa, a seu turno, pode ser analisada sob duas dimensões: a) presença de indícios de autoria e prova de materialidade; b) controle processual do caráter fragmentário da intervenção penal. O termo justa causa, conforme advertência da ministra Maria Thereza de Assis Moura, é impreciso, na medida em que "causa possui significado vago e ambíguo enquanto que justo constitui juízo de valor". Além do mais, afirma a ministra, que a "justa causa" exerce uma função de mediação entre a realidade social e a realidade jurídica e, acima de tudo, representa um "antídoto, de proteção contra o abuso de direito". Não obstante Aury Lopes propor classificação que possua como pressupostos situações relativas à insignificância, e levando-se em conta que a justa causa exerce a função de mediar a realidade concreta e a realidade normativa, além de ser um filtro com relação ao abuso do direito de acusar, seria possível o exercício do "controle fragmentário" na hipótese aqui proposta, na medida em que, como salientado, havendo um instrumento processual menos invasivo para a solução do litígio e que, acima de tudo, não gere as consequências típicas de uma condenação penal (artigo 28-A, §12), é ele que  preenchidos todos os requisitos legais, e se orientando o Poder Judiciário por uma política criminal voltada à proteção do sujeito de direito  deve ser utilizado, ainda mais se considerado que a atividade do Ministério Público, em que pese discricionária na escolha, é vinculada aos pressupostos legais.

Referências bibliográficas
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.  17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

(Re)pensando as condições da ação processual penal desde as categorias jurídicas próprias do processo penal. In: FAYET JÚNIOR, Ney; MAYA, André Machado (org.). Ciências penais e sociedade complexa I. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008.

 


[1] TJ-SP; Recurso em Sentido Estrito 0000781-42.2021.8.26.0695; relator (a): Marcos Alexandre Coelho Zilli; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Criminal. Data do Julgamento: 26/11/2021.

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