Opinião

Uma retrospectiva de 2021 no Direito da Infraestrutura

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19 de janeiro de 2022, 15h11

Segundo a linguística, uma coisa passa a existir a partir do momento em que ela tem um nome, o que faz do Direito um grande produtor de novidades. Uma de suas obras recentes é o Direito da Infraestrutura, atualmente uma área reconhecida e autônoma, resultante da combinação de disciplinas jurídicas clássicas, como Direito Administrativo, Direito Econômico, Direito Financeiro, Direito Comercial e Civil. Nos últimos anos, passou a abranger temas de política anticorrupção e controle da Administração Pública.

A extensão e complexidade do Direito da Infraestrutura faz dele um tema apto à sua própria retrospectiva de 2021. Esta não se faz restrita à produção legislativa, pois a prática jurídica em infraestrutura não se faz apenas das leis, mas da jurisprudência dos tribunais e dos próprios negócios jurídicos. Para entender o Direito da Infraestrutura é preciso lançar um olhar transversal aos temas que envolvem negócios na área, pois, como diria o dileto professor Luís Fernando Massonetto, da Universidade de São Paulo (USP), "o fenômeno jurídico não se manifesta em caixinhas".

Acordo de leniência
Para começar, é preciso destacar o que pode ter sido o principal julgamento do ano para o setor, proferido em março pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança 35.435, 36.173, 36.496 e 36.526, os quais determinaram que o Tribunal de Contas da União (TCU) não pode declarar inidôneas para contratar com a Administração Pública empresas que tenham feito acordo de leniência com outros órgãos. Esse julgado inicia a tão necessária virada de chave do controle da Administração Pública, do pânico moral para a segurança jurídica, sem o que não reconstruiremos o mercado de infraestrutura.

Ressaltando a importância do enfrentamento à corrupção e o papel dos diversos órgãos nessa atividade, o ministro relator, Gilmar Mendes, decidiu que as empresas que fizeram acordo de leniência com MPF e CGU não poderiam ficar inabilitadas de participar de licitações por conta de pena de inidoneidade aplicada pelo TCU, o que levaria as impetrantes — todas empresas da construção civil — à bancarrota. Aquele que cometeu ilícitos e decide repará-los nos termos da lei não pode ficar à mercê da descoordenação institucional. Até porque evitar uma devastação em setores econômicos de importância central é matéria de interesse também público.

Recuperação judicial
A deterioração do ambiente econômico, agravado pela pandemia da Covid-19, levanta questões sobre a recuperação judicial envolvendo concessionárias de serviço público (nos últimos anos tivemos algumas, mesmo antes da pandemia, como Oi, Aeroporto de Viracopos, Rodovias do Tietê, para citar alguns). Nesses casos, credores privados precisam dar descontos substanciais em suas dívidas para permitir a sobrevivência da concessionária. Se o poder público não se coloca como aliado da recuperação, reconhecendo os créditos da concessionária, estará "pedalando" os credores privados, que pagarão sozinhos a conta do soerguimento da empresa. É importante reconhecer, em nome da manutenção do serviço público, o dever da Administração Pública de também renegociar os créditos dos quais pode dispor na recuperação judicial. Esses créditos são os não tributários, no entendimento da jurisprudência. Leia-se: o passivo regulatório.

O caminho para isso está pavimentado desde 2020, quando uma das reformas Lei de Recuperação Judicial e Falências passou a prever de forma expressa "conciliações ou mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, notadamente (…) em conflitos que envolverem concessionárias ou permissionárias de serviços públicos em recuperação judicial e órgãos reguladores ou entes públicos municipais" (artigo 20-B, II, da Lei 11.101/2005).

Nesse ponto, tivemos transações envolvendo o passivo regulatório do estado de São Paulo, o que trouxe precedentes importantes das transações com concessionárias de transporte rodoviário em 2021. Casos importantes para superarmos o entendimento do princípio da estrita vinculação ao edital (que não encontramos assim prescrito em lugar algum) como um entrave a qualquer transação nos contratos de concessão.

Novos contratos
Tivemos projetos de concessão licitados com sucesso em 2021, mesmo com a pandemia, com inovações dignas de atenção. Os contratos magrinhos de concessão dos anos 90 deram lugar a um conjunto robusto de documentos. Trazem fórmulas que permitem cálculos automáticos de reequilíbrio em diversas situações e retenção de recursos vinculados para pagamento de desequilíbrios. Trazem fórmulas que dão maior previsibilidade ao cálculo de indenizações em caso de término antecipado e possibilidade de se buscar apoio externo na gestão desses contratos, como verificadores independentes e dispute boards. Permitem certificação de projetos executivos junto a entidades privadas.

Tudo isso torna as licitações mais competitivas porque os projetos, menos arriscados, têm maiores chances de obter financiamento. O papel do financiador nos projetos de concessão ganhou o destaque que merece nos últimos anos, e o fundo público, em formato "semiprivado" do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), continua sendo fundamental em grandes projetos e na construção de soluções inovadoras na infraestrutura.

Marco Legal do Saneamento
Aprovamos o Marco Legal do Saneamento, que foi chancelado pelo Supremo. Leilões importantes foram realizados. Mas o marco tinha uma ambição de inviabilizar as estatais de saneamento que não tinham como prestar serviços adequados, o que pode ter ido longe demais. Algumas companhias importantes para as regiões onde atuam estão em situação de insegurança, lidando com prazos irreais de adaptação. Resta ainda saber como ficará a governança regionalizada em blocos que necessitam somar dezenas de municípios para serem viáveis. Uma discussão importante sobre a representatividade dos municípios na governança de unidade regional de saneamento está em discussão no STF (ADI 6.339/BA).

O novo marco deixou claro que saneamento também envolve a coleta e tratamento dos resíduos sólidos urbanos e, nesse campo, estabeleceu que municípios que não apresentassem proposições de cobrança pela prestação de tais serviços até agosto de 2021 estariam renunciando receita. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) iniciou o ano suspendendo a eficácia da lei que instituía a cobrança em Cotia, como noticiou a Conjur, gerando novas dúvidas.

Free flow
Em rodovias, mercado maduro, a maior inovação, além das mudanças contratuais citadas, ficou por conta da aprovação da lei do free flow (Lei nº 14.157/2021), que permite a cobrança de pedágio por sistema de leitura de placas situadas em pórticos. Há trechos experimentais de free flow em contratos como o da Via Dutra, recentemente licitado. Se a implementação for exitosa, poderá permitir a substituição de parte das praças de pedágio por um número maior pórticos (de instalação e operação mais barata), permitindo cobranças mais proporcionais ao trecho percorrido pelos usuários. Resta saber quais tecnologias e sistemas de pagamento as concessionárias vão desenvolver, como se dará a cobrança de multa em caso de evasão e como serão gerenciados os riscos de "subfiscalização" das infrações.

Mobilidade urbana
Na mobilidade urbana, o impacto da Covid-19 exigiu aportes massivos do poder público para fazer face à brutal quebra de demanda, chamou a atenção para a necessidade de se dar transparência aos sistemas de bilhetagem e remuneração e buscar outras fontes de financiamento. Com esse espírito, foi apresentado o PL da Mobilidade Urbana (PL 3.278/2021), trazendo proposições como exigência de contrapartidas e a compensação pela valorização de áreas decorrentes da implementação de infraestrutura de transportes, abrindo uma importante discussão.

Ferrovias e portos
Em tempos de fortíssima restrição fiscal, a solução quase mágica para a histórica falta de planejamento e de investimento público no setor ferroviário veio na Medida Provisória nº 1065/2021, que previa a exploração de trechos ferroviários em regime de autorização, por prazo de até 99 anos, prorrogável por igual período, modelo repetido na Lei 14.273/2022, aprovada logo depois. A autorização é perfeita para short lines — os trechos menores que ligam eixos troncais até as cargas  —, mas seria o caso de ter ferrovias exploradas em regime privado nos eixos estruturantes, sem controle de preço e acesso? A aposta na criação de mercados competitivos de logística ferroviária foi ousada, e questões de assimetria regulatória parecem ter sido deixadas para depois.

O setor de portos seguiu se expandindo à base de investimentos privados, convivendo em razoável harmonia com assimetria regulatória entre terminais arrendados (públicos) e terminais privados. Discussões mais acirradas surgiram em torno de questões relativas a eventuais práticas anticompetitivas por parte de operadores verticalizados (aqueles que, além da operação portuária, atuam em outros elos da cadeia de transportes) e da concentração do setor, um debate que passa necessariamente pela definição de qual seria o tamanho do mercado relevante no setor portuário, num país de dimensões continentais e cadeia logística fragmentada como o Brasil. O tema mais novidadeiro de 2021 talvez tenha sido o dos projetos de desestatização das Companhias Docas e sua formatação, trazendo questões como o debate sobre a participação de operadores de terminais nos leilões, gerando possível conflito de interesses.

Há outros setores da infraestrutura sobre os quais poderíamos ficar lançando o olhar de Janus (para o passado e para o futuro). O setor elétrico, sempre se reinventando, também teve mudanças e traz suas expectativas. Há a liberalização inacabada do mercado de gás. Mas deixo esses temas para outros(as) colegas e outra oportunidade. Que neste ano a infraestrutura e as instituições se fortaleçam.

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